A fim de melhor compreender o tratamento dado pelo Correio do
Povo à morte do poeta Garcia Lorca, convém que tentemos resgatar, através
de poucas considerações, alguns aspectos da importância já adquirida por tal
personalidade no ano de 1936.
Com efeito, Garcia Lorca já era, quando do início da Guerra Civil
Espanhola, uma figura de acentuado
renome no meio artístico-literário internacional. Três anos antes, sua presença
em Buenos Aires, acompanhando o sucesso da encenação de peças de sua autoria, tornaram-no,
segundo Ian Gibson, “o poeta e dramaturgo espanhol mais famoso na América”. Em suas relações com expoentes da cultura
ibero-americana, conquistou a admiração e o reconhecimento de alguns dos
melhores poetas latino-americanos que, através da evocação de sua figura em contraposição à
ascensão do fascismo, contribuíram mais tarde para fazer de seu nome uma
verdadeira referência sobre o poder da barbárie e da desumanidade que cercaram
a Guerra Civil Espanhola. A presença de referências ao escritor espanhol em
poemas possivelmente datados ainda do início do conflito ou do ano de 1937serve
como verdadeiro indício da penetração de
sua obra em terras brasileiras, ao menos nos círculos de maior sofisticação
cultural.
A imagem difundida durante o regime franquista, de que Lorca seria
uma pessoa não preocupada com questões políticas, parece já haver sido
desmontada através do trabalho de Gibson, que reconstrói os últimos dias de
vida do poeta espanhol, ressaltando sempre sua participação em eventos
anti-fascistas e sua preocupação em que a cultura fosse difundida entre a
população, não tornando-se desta forma um patrimônio apenas das elites. Embora fosse filho de uma família abastada,
reconhecida como tal em uma das regiões de maior concentração de terras na
Espanha, Lorca mostraria ser, ao longo de sua vida, uma pessoa preocupada com a miséria humana e com as
condições de sua supressão, o que não significa que pudesse ser rotulado como um radical de
esquerda, mesmo porque em momento algum esteve
filiado a agremiações políticas.
Seria surpreendente que o desaparecimento de uma figura com
semelhante biografia passasse
despercebido pela imprensa mundial. Embora a data precisa de sua morte, bem
como as condições em que a mesma
aconteceu, sejam ainda hoje fatos controversos, acontecimento não deixou de criar versões
diversas, tal qual ocorreria posteriormente com o já citado bombardeio de Guernica. Em sua obra,
Rizzoni cita ao menos quatro versões distintas e correntes na historiografia
para o assassinato do poeta cujo corpo até hoje está por ser identificado:
Lorca teria sido morto a pancadas logo após ser preso; teria sido um crime perpetrado por pessoas ligadas ao seu círculo
de relações pessoais; por falangistas em uma atitude de represália; ou ainda
por jovens católicos incitados por autoridades eclesiásticas. A par
de tais versões, que creditam o crime aos partidários de Franco, a imprensa
nacionalista da época, a partir de seus principais jornais, buscou incutir a culpa aos republicanos, a quem acusavam de desunião e de haverem assassinado
Lorca quiçá por motivos passionais, relacionando
o fato à sua possível homossexualidade.
A notícia de sua morte teria sido divulgada pela primeira vez nos
jornais republicanos em 30 de agosto de 1936. Já os periódicos identificados
com o nacionalismo, na impossibilidade de negar o ocorrido, passar a divulgar a
possibilidade de o poeta ter sido assassinado pelos “vermelhos” em conflitos
intra-republicanos, somente a partir de 10 de setembro do mesmo ano.
O fato peculiar para nossa análise neste caso não reside em
versões díspares que surgiram na imprensa mundial a partir da suspeita do
assassinato de Lorca, versões que como vimos,
acompanham as próprias posições em antagonismo, mas sim o tempo em que o processo anteriormente apontado por Pierre
Nora, para a transformação do fato em acontecimento,189 levou para se efetivar no caso do orreio do
Povo, que acompanhava o conflito em praticamente todas as edições,
abordando aspectos que por vezes beiravam o detalhismo. Igualmente chama-nos a
atenção, para além da demora em surgir a informação da morte do poeta – praticamente um ano – o pouco
espaço por ela ocupado: tão somente uma pequena nota, creditada à Agência
Brasileira.
MADRID, 17 (A.B.) –
Frederico Garcia Lorda (sic), um dos mais brilhantes poetas jovens da Espanha,
foi executado pelos rebeldes em sua cidade natal, Granada, conforme informa o jornal nacionalista de
Valência, “Adelante”.
Já que a notícia do assassinato de Lorca foi divulgada pelos meios
noticiosos espanhóis poucos dias após o acontecimento, somos levados a pensar
nos motivos que fizeram com que o fato não encontrasse aqui a devida
repercussão na mesma época. Embora seja uma tarefa complexa – e fora de nosso propósito –
reconstituir aqui o “espírito da época” a fim de estabelecer uma aproximação
exata da forma com que as notícias repercutiam, não podemos nos furtar ao dever
de cogitar algumas possibilidades quanto ao atraso na divulgação da morte do poeta. Em primeiro lugar, tal fato pode
haver sido uma decorrência das fontes que serviam ao Correio do Povo e a
Agência Brasileira a partir da Europa. Para que tal possibilidade seja plausível, porém, devemos cogitar que as
agências internacionais, que telegrafavam diariamente a partir da Espanha,
tenham, no ano de 36, simplesmente ignorado o desaparecimento de um renomado
homem público ligado à cultura. Assim, a notícia apareceria no ano seguinte, de
uma forma “requentada”, sem informar datas, embora se pretendesse ainda atual.
O problema principal, assim, não estaria no periódico em si, mas na ineficácia
dos órgãos que lhe serviam a partir de pontos distantes, órgãos estes que, é
bom que lembremos, são consideradas por Sodré como os agentes possibilitadores
do jornalismo moderno.
Outro ponto, este não tão ligado ao tempo decorrente entre o
acontecimento e a notícia, mas sim
quanto à repercussão por ela encontrada, é o destaque mínimo dado ao texto – no
caso, poucas linhas, verdadeiramente escondidas em meio a uma página tamanho standard,
dividida em várias colunas impressas em letras pequenas – embora ostentasse um
título em negrito de letras diminutas. O espaço dado à notícia, neste caso, é
irrisório, ante a ampla divulgação que encontravam os comunicados emitidos
pelos Quartéis Generais, ou mesmo os constantes
avanços e retrocessos de ambos lados nas frentes de combate. Em outras
palavras, a morte de Lorca parece ocupar um lugar irrisório na hierarquia do
jornal, o que não deixa de ser ao menos curioso, se lembrarmos aqui que o Correio
do Povo era reconhecido como um espaço de divulgação das letras gaúchas e
abrigo aos intelectuais.
Podemos ainda pensar aqui se era conveniente ao Correio do Povo,
naquele momento, oferecer uma ampla repercussão ao assassinato de um expoente
cultural identificado com a República
Espanhola. Muito embora nossa fonte principal ostentasse publicamente o
discurso da neutralidade política, seu
posicionamento ante os fatos já estava plenamente afirmado através de seus
editoriais. Ao mesmo tempo, à época da divulgação da notícia, o clima de cerceamento
às liberdades políticas e a grande repressão contra aqueles elementos que pudessem
ser classificados como “comunistas” ou “subversivos” poderia pesar na hora de selecionar-se
o que era digno ou não de maior destaque no noticiário internacional. Mais do que
isto, Garcia Lorca sabidamente havia colaborado na redação de um manifesto, em
março de 1936, exigindo a libertação dos presos políticos brasileiros – entre
eles Luís Carlos Prestes – sendo ainda co-assinante de um telegrama enviado por
membros da intelectualidade espanhola
que protestavam junto ao governo brasileiro pelo reconhecimento dos direitos democráticos.
Mais do que isto, Lorca havia acompanhado a mãe de Prestes quando esta passou
pela Espanha, divulgando uma campanha internacional pela anistia aos presos políticos
do Brasil. Podemos desta forma levantar a possibilidade
de que, aos olhos daqueles setores da imprensa brasileira mais comprometidos
com o regime varguista – e o Correio do Povo seria tão somente um
exemplo em um conjunto de periódicos que apoiavam o regime em maior ou menor medida – levantar o
assunto da morte de Garcia Lorca equivaleria a levantar a bandeira das causas
com as quais sua figura estava envolvida, não sendo desta forma um assunto cuja
publicação conviesse naquele momento específico. A publicação tardia pode tanto
sinalizar um momento onde a divulgação do ocorrido não mais causaria comoções
(e neste sentido o pouco espaço dado à notícia talvez seja mais compreensível),
mas talvez igualmente à impossibilidade de ignorar por mais tempo um fato que quiçá já se tornara público, embora ainda
não oficializado pelas letras sagradas da imprensa.
Há, contudo, um detalhe que julgamos importante na nota acima
citada, e que reflete o cuidado com que devemos nos aproximar das fontes jornalísticas
no momento de analisar quaisquer
acontecimentos através da visão da imprensa. Trata-se da fonte citada pelo
texto atribuído à Agência Brasileira. Com efeito, Valência foi uma das últimas
localidades a ceder ao movimento franquista, tendo resistido inclusive após a
queda de Barcelona. O texto nos parecerá ainda mais estranho se tivermos em
mente que a fonte primordial da informação – o Adelante – é aqui
identificado como sendo um jornal nacionalista. Ora, sabemos através do trabalho
de Gibson que os nacionalistas não tinham o menor interesse em divulgar suas atrocidades,
quanto mais em estampá-las nos jornais. Desta forma, acreditamos tratar-se o Adelante
de uma “fonte republicana”, muito embora não possamos afirmar tal fato peremptoriamente.
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Fonte:
Gerson Wasen Fraga: “BRANCOS E VERMELHOS: A GUERRA CIVIL
ESPANHOLA ATRAVÉS DAS PÁGINAS DO JORNAL CORREIO DO POVO (1936-1939)”.
(Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em
História. Orientador: Prof. Dr. Cesar Augusto Barcellos Guazzelli -
Universidade Federal Do Rio Grande Do Sul). Porto Alegre, fevereiro de 2004.
Notas:
A imagem
inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e
referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente
catalogadas na citada obra.
O texto
postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma
compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua
totalidade.
Disponível
digitalmente no site: Repositório Digital
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Direitos autorais:
Segundo
Portaria n 5068, de 13/10/2010, da UFRS: “Os
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Commons.”
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