Os palestinos como um grupo étnico




A análise das trajetórias dos imigrantes e dos seus filhos nascidos no Brasil nos ajuda a entender a formação de um circuito de relações que fabricam os padrões sociais e a identidade étnica, tomando-a como um idioma que organiza essas relações. 

Tratar a etnicidade como um idioma é algo pertinente e recente na antropologia. Cunha  (1986) lembra que o termo linguagem significa, nessa disciplina, não só formas institucionais, mas também crenças, práticas e valores. Assim, um ponto fundamental é organizar as representações com a organização da vida material. Nos estudos de grupos étnicos, o objetivo é  compreender como esse idioma regula a vida social.

A etnicidade é um tema fundamental nas Ciências Sociais. Segundo Poutignat & Streiff-Fenart (1988) até os anos 70 o conceito era quase ignorado. No entanto, com a intensificação dos conflitos étnicos na década de 60, o étnico transformou-se num conceito que permite definir um  objeto e salientar a importância social dos sentimentos coletivos relacionados a mesma origem. A partir da década de 70 os estudos de F. Barth (1969) representam um avanço na conceitualização  dos grupos étnicos, contrapondo-se às análises funcionalistas, as quais trabalhavam com a idéia de assimilação do grupo étnico expressa na teoria do melting pot; às análises estruturalistas, que  enfatizavam a idéia de padrões lógicos e às teorias primordialistas, em que a etnicidade e a constituição de grupos étnicos eram tratadas como próprios da condição humana. No entanto, a abordagem situacional de Barth partiu da teoria de Max Weber (1969). Segundo esse último, é impossível definir a identidade étnica com base em traços objetivos, pois uma comunidade étnica  só existe quando é sentida subjetivamente como característica comum pelos seus membros.

Assim, esse sentimento de solidariedade étnica é despertado no embate entre um “nós” e os  “outros”, elaborado numa situação de constraste. Dessa forma, as comunidades étnicas são também formas de organização política na medida que é possível manipular a etnicidade em prol  da comunidade. Assim, coloca Cunha (1986), descobriu-se que a etnicidade poderia ser uma linguagem no sentido de permitir uma comunicação.

Barth (1969) entende a cultura como um processo de produção de significados e sentidos  compartilhados por um grupo de indivíduos frente a outros e que embasa um sentimento de  coletividade. Um grupo étnico caracteriza-se por ser uma entidade social que emerge da  diferenciação estrutural de grupo em interação, proposta outrora apresentada por Weber. Portanto, para Barth, a identidade baseada em sentimento de “mesma origem” é relacional, na  medida que ocorre na interação, é processual e é construída em contextos específicos. As  fronteiras subjetivas são centrais em sua análise, pois vão constituir a identidade do grupo étnico  cada qual acionando sinais diacríticos como instrumentos de diferenciação e de pertença.

Utilizando as idéias propostas pelo autor para pensar os palestinos e seus descendentes em  Porto Alegre e Canoas, o que significa olhar para a fronteira e não par ao conteúdo cultural que acionam? A identidade étnica é tratada por Barth como uma característica da organização social, mais do que uma expressão da cultura. Ele não nega que existam traços culturais, mas eles não definem o grupo por si só, são acionados num aspecto situacional de acordo com o contexto da  interação. Assim, são os próprios palestinos que definem quais sinais diacríticos (ou seja, traços  que as pessoas procuram para demonstrar sua identidade como vestuário, língua, etc.) ou valores  fundamentais que estabelecerão essa fronteira. Ao antropólogo cabe fazer a leitura de como esses signos se manifestam.

Eu poderia tomar o casamento entre primos como algo da cultura, entendendo-a como  algo substantiva, homogênea e imutável independente da situação histórica, social, enfim  conjuntural na qual o grupo se insere. Entretanto, não é a proposta desse estudo, tampouco dos  teóricos interacionistas. A idéia de pensar a fronteira significa desmistificar o próprio conceito de  cultura tomando-o como substrato para pensar a etnicidade. Ao tratar a cultura como algo essencial de um grupo que o acompanha desde todos os tempos é um purismo sem base. Da mesma forma que as famílias estudadas fabricaram um padrão de matrimonio tido como  tradicional, nada garante que as próximas gerações não transformarão esse padrão, modifiquem  os elementos e mesmo assim continuem se identificando como árabes. 

Por isso, o que Barth propõe é uma idéia tida como pós-moderna de cultura. A cultura não como algo que se tem ou que se perde com o tempo, mas como algo constantemente fabricado pelos grupos sociais na interação. As diferenças que significam são aquelas que diferenciam. Essa  abordagem foi aprimorada por Barth (2001) no debate contemporâneo sobre etnicidade. Sublinha,  que a cultura é um fluxo, isto é, um processo contínuo em que o antropólogo deve levar em conta as experiências nas quais ela se manifesta. Os processos étnicos têm como base a continuidade ou descontinuidade desse fluxo dinamizado pela cultura. Assim a descontinuidade faz os sujeitos  convergirem em ação ou estilo, gerando uma consciência partilhada dentro de um grupo de forma que se criam novas fronteiras.

Contudo, quando traça a história de um grupo étnico ao longo do tempo, não se está  traçando a história de uma cultura apesar de haver uma certa continuidade organizacional que delimita uma unidade.

Tanto os palestinos quanto qualquer outro grupo imigrante que se instale em uma nova coletividade, resignifica sua função a partir de um novo contexto. Inicialmente, a trajetória de imigrantes fora analisada a partir do conceito de “grupos minoritários” que frente aos “locais”  tecem meios de inserção na sociedade local. Entretanto, opto por debater o conceito de grupo  étnico por abranger sentimentos ambivalentes de pertencimento e não necessariamente de  inserção entre grupos locais como faria originalmente Wirth.

 Como aponta Cunha (1986) a cultura original de um grupo étnico na diáspora ou em  situações de intenso contato não se perde ou se funde, mas se torna uma cultura de contraste. Este princípio, segundo a autora, determina vários processos. Prossegue dizendo que a cultura torna-se  ainda mais visível, mas ao mesmo tempo se simplifica, reduzindo-se a um número menor de  traços diacríticos. Por exemplo, a língua é algo que se perde ao passar das gerações, a religião  pode ser adaptada a um novo contexto, assim como outros elementos. Assim, buscam-se os sinais diacríticos que sejam operativos para servir de contraste e essa escolha depende do contexto da  sociedade onde estão inseridos. Por isso, a cultura não é estática, é constantemente reinventada e resignificada na situação de confronto.

Essa perspectiva não desqualifica a existência de grupos étnicos na medida que todas as  “culturas” são fabricadas, são construções sociais. O fato de afirmar o caráter forjado do grupo não nega sua pertinência enquanto tal, pelo contrário demonstra o quanto a cultura não é um dado  natural, mas é socialmente produzida.

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Fonte:
ROBERTA PETERS: “IMIGRANTES PALESTINOS, FAMÍLIAS ÁRABES: UM ESTUDO ANTROPOLÓGICO SOBRE A RECRIAÇÃO DAS TRADIÇOES ATRAVÉS DAS FESTAS E RITUAIS DE CASAMENTO.” (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade  Federal do Rio Grande do Sul para a obtenção do título  de Mestre. Orientadora: Professora Dra. Denise Fagundes Jardim). Porto Alegre, março de 2006.


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Notas:
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