A POLÍTICA INDIGENISTA NO BRASIL IMPERIAL


A política indigenista no Brasil Imperial

No início do século XIX, não havia um conjunto de leis específicas que apontassem uma política indigenista oficial do governo português, quer seja em relação ao Brasil ou à Amazônia, em particular.

José Oscar Beozzo (1983: 71) destaca que com a queda do regimento pombalino, em 1798, foram instituídas algumas normas onde não se enquadrava o índio em nenhum regime especial. Contudo, ficava proibida a prática do “descimento” e escravização, ficando a força de trabalho indígena submetida às normas reguladoras da relação entre amo e criado, ou seja, subordinada aos comerciantes de escravos.

Com a chegada de D. João VI ao Brasil em 1808, o tratamento priorizado foi a prática da repressão ao indígena através da instituição das guerras ofensivas (Carta Régia, de 13/05/1808).

Mais tarde, com o processo de independência do Brasil e a construção de uma Constituição, um elemento acabará adquirindo relevo para os fins deste trabalho: a apresentação, em 1823, na Assembléia Constituinte, do projeto de José Bonifácio de Andrada e Silva “Apontamentos sobre a Civilização dos Índios Bravos do Império do Brasil”. Deveria fazer parte da constituição de 1824 e apresentava uma proposta para o trato das populações nativas no império. Também pregava a brandura no trato com os povos indígenas, fazendo um contraponto às Cartas Régias que incentivavam a violência. Como afirma Beozzo (1983:74), “a dissolução da Assembléia Constituinte impediu que se tomasse resolução sobre o assunto”.

Embora os “Apontamentos...” de José Bonifácio de Andrada e Silva não tenham sido incluídos na Constituição de 1924, seu discurso tornou-se importante para as legislações que viriam a seguir: em 1831, por exemplo, são revogadas as Cartas Régias de 1808 e 1809, quando os índios passam à condição de órfãos e, portanto, tutelados.

No ano de 1943, a Lei nº 285, de 21 de junho, autorizou a vinda de missionários capuchinhos italianos para o trabalho de catequese, o que seria ratificado pelo Decreto 426, de 24 de julho de 1845, quando é criado o “Regulamento acerca das Missões de catechese e civilização dos índios”. Era uma tentativa de reproduzir, através dos capuchinhos, o que os jesuítas teriam representado no período colonial.

O regulamento de 1845 trazia poucas novidades em relação à legislação que o inspirou – o Diretório dos Índios (1758-1798). De acordo com Beozzo (1983:78-79), a figura central era do Diretor Geral dos Índios. Cabia um para cada uma das províncias do Império. Este funcionário era o principal responsável por toda a administração e gozava de amplos poderes, cobrindo o campo administrativo, econômico, religioso e judicial. Por outro lado, segundo Manuela Carneiro da Cunha, do ponto de vista da autonomia missionária, se comparada à dos jesuítas, a diferença era significativa e os capuchinhos possuíam pouca mobilidade. (Cunha,1992: 12)

O interesse pelas terras indígenas ganhava cada dia mais importância no cenário econômico. Beozzo já havia avaliado que o Regulamento de 1845 constituía-se em uma estratégia clara para disciplinar a questão do acesso às terras dos índios, senão vejamos:

Por isso, em 1845 a política indigenista parece ter objetivos: a primeiro, por fim aos choques armados nas áreas de expansão da sociedade nacional. A atração e o aldeamento dos índios retira-os da linha de fogo dos que avançam sobre seu território. A sua sedentarização libera terra para a ocupação dos nacionais. O segundo objetivo patente no novo Regimento é a questão da destinação das terras indígenas. As que estavam abandonadas deviam ser indicadas pelo Diretor do Governo, sugerindo o destino a ser dado às mesmas. Aos índios que não cultivassem suas terras, essas deviam ser retiradas. Os pequenos grupos deviam ser reagrupados. A terra não utilizada numa determinada aldeia devia ser arrendada. O regimento é de 1845 e precede de pouco a Lei de Terras de 1850. O problema estava no ar. O índio não devia ser um obstáculo ao aproveitamento da terra. Ele mesmo devia transformar-se em lavrador, cessando com sua vida nômade. O estatuto dos aldeamentos indígenas é o de “colônia agrícola” e mesmo os missionários que aí trabalham estão funcionalmente subordinados ao Ministério da Agricultura. Beozzo (1983:79-80).

Em 18 de setembro de 1850 foi editada a Lei nº 601, que viria a ser conhecida como “Lei de Terras”.

Para Cirne Lima (1931) essa Lei

assegurava os direitos dos possuidores ou posseiros, atribuindo-lhes, assim, legitimidade e, pois, pressupondo a eficácia jurídica do costume, no qual se fundavam. Atento o caráter administrativo da Lei de 1850, verdadeira lei de administração que realmente o era, força é, porém, constatar que o reconhecimento desses direitos e desse instituto reveste feição francamente transacional. A transação, no caso, entretanto, nada representa senão a declaração de direitos preexistentes, contestados ou contestáveis, e, nesta hipótese, - a prova do costume jurídico, de que se geraram, o qual se poderia provar, igualmente, por transações idênticas entre particulares. (...) Pelas suas disposições penais, com efeito, a ocupação passou a constituir ação punível e, desta forma foi indiretamente afastada da órbita das relações privadas. (Lima, 1931:27-28).

Prossegue, ainda, Cirne Lima, na interpretação da Lei 601:

Além das finalidades práticas, há que considerar, entretanto, o aspecto jurídico. Deste, a origem é inteiramente diversa. Na Constituição do Império, ficara firmado o princípio da inalienabilidade relativa de todos os bens públicos. Este princípio, historicamente encontra fundamento na defesa do patrimônio público, formada dentro dos antigos parlamentos, contra as disposições da realeza. A evolução política dos povos, modificou-lhe, porém, inteiramente o sentido: - não se trata mais de cercear o poder dos reis, senão de declarar que o direito de disposição dos bens públicos é atributo eminente da nação, coletivamente representada pelo Legislativo. E neste sentido, deve ser entendida aquela nossa disposição constitucional. Importa acentuá-lo, pois que, a esse dispositivo, é que se prende a promulgação da Lei de 1850. Esta, realmente, autoriza a venda das terras públicas, depois de medidas e discriminadas, e bem assim proíbe que a sua alienação se faça de modo diverso, exceto as terras situadas nas fronteiras do Império com países estrangeiros. (Lima, 1931:33-34).

A Lei 601, de 18 de setembro de 1850, tem sido interpretada por antropólogos (Almeida, 2006:34) como uma forma de criar obstáculos de todas as ordens, para os povos indígenas, os escravos alforriados e os trabalhadores imigrantes que começavam a ser recrutados, com a proibição do tráfico negreiro (1850) não terem acesso legal às terras.

Coibindo a posse e instituindo a aquisição como forma de acesso à terra, tal legislação instituiu a alienação de terras devolutas por meio de venda, vedando, entretanto, a venda em hasta pública, e favoreceu a fixação de preços suficientemente elevados das terras, buscando impedir a emergência de um campesinato livre. A Lei de Terras de 1850, nesta ordem, fechou os recursos e menosprezou as práticas de manter os recursos abertos seja através de concessões de terras, seja através de códigos de posturas, como os que preconizavam o uso comum de aguadas nos sertões nordestinos, de campos naturais na Amazônia ou de campos para pastagem no sul do País. (Almeida, 2006:34-35).

Vale anotar aqui, no entanto, que embora tenha ocorrido expropriação de terras indígenas, até de forma deliberada, em algumas Províncias          também ocorreram doações oficiais e demarcações de terras indígenas, Gomes (1991:82-83), afirma que “pesquisas recentes em arquivos de registros de documentos de terras do Maranhão mostram que havia pessoas dessas comissões (provinciais) que tomaram iniciativas nesse sentido. Em outras províncias deve ter havido casos semelhantes, pois em algumas delas, como Pernambuco, São Paulo e Bahia, alguns lotes foram demarcados para os índios”. Esse autor relaciona vários lotes de terras que foram demarcados, segundo dados colhidos no “Mapa Estatístico dos Aldeamentos de Índios de que há notícia na Repartição Geral das Terras Públicas”, nas Províncias da Bahia, Alagoas e Paraíba. Informa, também, que o número de aldeias reconhecidas chega a mais de 160 e, supostamente, deveriam ter suas terras demarcadas, porém não constam mais registros nos mapas emitidos posteriormente.
O Regulamento das Missões foi extinto em 1866, em meio a enormes críticas. Contudo, na prática, continuou em funcionamento, como é o caso da Província do Amazonas onde, até a década de 1870, o cargo de Diretor Geral de Índios continuava provido e os diretores parciais prosseguiam sua atuação no imprescindível serviço de recrutamento de trabalhadores.

Para além da questão das terras indígenas, havia outras discussões que tomavam corpo na segunda metade do século XIX. Uma delas estava ligada à forma de como deveria ser praticada a catequese dos povos indígenas, se leiga ou missionária, à medida que o modelo utilizado pelos jesuítas no Brasil Colônia não mais obteve sucesso, quando da instituição do Regulamento das Missões, pelos padres capuchinhos. Esta discussão ganha novos elementos com a presença do Apostolado Positivista no cenário político, reforçando o argumento em defesa da catequese laica.

Com o advento da República, os questionamentos sobre a legitimidade da catequese, que a Igreja Católica vinha realizando historicamente, tornaram-se mais contundentes. Enquanto uma corrente defendia a catequese religiosa, como única capaz de dar conta da condução dos indígenas à sociedade nacional por conta da reconhecida experiência, outra defendia a catequese laica, mais adequada ao novo Estado fundado pelo movimento republicano.

Mais do que isso, assegurava que a assistência aos indígenas deveria ser função privativa do Estado. (Ribeiro, 1962:13-14)

O Apostolado Positivista, uma das agências contrárias à catequese religiosa, teve um de seus membros nomeado como primeiro ocupante da pasta da Agricultura na nova ordem que se estabeleceu pós-1889. Mais que ministro, Demétrio Ribeiro foi um dos autores do projeto de separar a Igreja do Estado, no Brasil (Lins, 1964: 344). Sem dúvida, o novo projeto significava uma vitória da corrente positivista, mas as coisas não pareciam ser tão simples. Arthur Reis assegura que esse espírito laico ao tomar conta do país nos primeiros anos da República parecia indicar que a autoridade da Igreja seria contestada tanto quanto no período pombalino. Mas,

Essa impressão, todavia, não durou muito tempo, apesar da Constituição de 1891, imbuída dos princípios filosóficos da geração comtista que liderara o novo regime. É que as fileiras positivistas não dispunham de elementos suficientes para nortear em definitivo a nação, levando-a aos excessos de negar ou esquecer a gigantesca contribuição da Igreja Católica na formação nacional. (Reis, 1942:82).

Ainda no âmbito das discussões, quando da elaboração da primeira Constituição no novo regime, os membros do Apostolado Positivista apresentaram, em 1890, um projeto no qual defendiam um novo tratamento em relação aos povos indígenas para que pudessem “evoluir”, com a ajuda dos missionários positivistas, do “estágio primitivo” em que se encontravam.

Atribuíam ao Governo a função de proteger esses povos e seus territórios contra qualquer tipo de violência. De uma forma ambiciosa, o projeto propunha a criação de territórios ocupados por indígenas, nos quais só se poderia penetrar com seu prévio conhecimento e de forma pacífica (Gagliardi, 1989: 56-57).

O projeto não foi incorporado à nova Constituição e é razoável supor que grupos econômicos ligados à expansão capitalista, com fortes interesses nas terras ocupadas por indígenas, tenham sido elementos destacados para justificar sua não–aprovação naquele momento.

Afinal, a Constituição de 1891 não abordou, em seu texto, a questão indígena. Por outro lado, em seu artigo 64, transferiu para os Estados as terras devolutas e, com isso, houve uma confusão que se disseminou a partir de 1891. Durante algum tempo, acreditou-se que as terras indígenas haviam passado ao domínio dos respectivos Estados. Na realidade, o que passou à administração dos Estados foram as terras devolutas, entre as quais, as terras dos aldeamentos extintos.

Em várias regiões do Brasil, no início do século XX, os índios eram vistos por diferentes grupos econômicos, como obstáculos a uma fronteira econômica em franca expansão.

Ainda no último quartel do século XIX, com a elevação nos preços do café, a questão a ser resolvida de forma imediata era o suprimento da mão-de-obra. A solução encontrada pelos governos provinciais do sul foi trazer imigrantes da Europa. De acordo com Celso Furtado,

estavam, portanto, lançadas as bases para a formação da grande corrente imigratória que tornaria possível a expansão da produção cafeeira no estado de São Paulo. O número de imigrantes europeus que entram nesse Estado sobe de 13 mil, nos anos 1870, para 184 mil no decênio seguinte e 609 mil no último decênio do século. O total para o último do século XIX foi 803 mil, sendo 577 mil provenientes da Itália. (Furtado, 2006:188)

Enquanto os imigrantes vindos para o Estado de São Paulo eram direcionados para a lavoura cafeeira, aqueles chegados aos Estados de do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, como informa Gagliardi (1989:61), encontravam facilidade por parte dos governos locais na aquisição de pequenas propriedades. Essa forma de ocupação permitiu a formação de unidades econômicas que serviam ao abastecimento do mercado interno.

É possível perceber o forte impacto que causa a imigração europeia sobre os povos indígenas, especialmente nos Estados de Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina e Paraná. Como exemplo, em São Paulo, a expansão da economia cafeeira afetaria, diretamente, as terras indígenas e, em particular, dos Kaingang. As reações dos índios eram imediatas e, com elas, a consequente represália por parte dos fazendeiros, que se efetivava pela contratação de matadores profissionais, os “bugreiros”. Em Santa Catarina, a situação era semelhante à de São Paulo, só que ali o confronto era com os Xokleng.

Em relação à Amazônia, as mudanças também foram significativas, considerando que a expansão da economia da borracha, a partir dos anos de 1870, representou um avanço sistemático sobre territórios indígenas. A força de trabalho indígena já vinha sendo utilizada no processo de exploração da borracha desde o princípio do século XIX. Com a intensificação da exploração desse produto, a força de trabalho indígena não é suficiente para dar conta da demanda. Passa-se, então, ao recrutamento de nordestinos. O avanço sobre os espaços territoriais ocupados por indígenas vai gerar conflitos sociais graves.

Exemplar, nesse sentido, é o fato de que, na segunda metade do século, recrudesceram as ações dos povos indígenas localizados nas áreas prioritárias de expansão da extração de borracha, como é o caso dos Parintintin, no rio Madeira, permitindo associar as ações guerreiras dos índios à intensificação das entradas sistemáticas em seus territórios.

Enquanto, no sul, os agentes sociais do conflito com os indígenas eram os imigrantes, na Amazônia, era a empresa seringalista e suas formas de opressão da força de trabalho indígena, bem como da utilização em larga escala de nordestinos.

Embora existisse uma legislação que garantia inúmeros direitos aos povos indígenas como, por exemplo, às terras por eles ocupadas, a prática caminhava na contramão das leis. Nesse sentido, os indígenas viviam em constantes sobressaltos, ora tendo suas terras invadidas, ora sendo utilizados como mão-de-obra compulsória, como são inúmeros os relatos nessa direção.

Ao longo de toda a história da colonização portuguesa, em particular, na região mais tarde conhecida como Amazônia, os povos indígenas não tiveram uma atitude passiva em relação àqueles que chegavam com o intuito de ocupar seus territórios ou tentar explorá-los, como podemos confirmar, por exemplo, em Francisco J. Santos (2002). Ele assegura que as revoltas, rebeliões e ataques sempre foram uma constante em todo o processo de ocupação. O que estava acontecendo no delinear do surgimento da República não se constituía em completa novidade.


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Fonte:

JOAQUIM RODRIGUES DE MELO: “A POLÍTICA INDIGENISTA NO AMAZONAS E O SERVIÇO DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS: 1910-1932”. (Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas, sob            a orientação do Prof. Dr. Alfredo Wagner Berno de Almeida). Manaus, 2007.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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