O que é o
politicamente correto? De certo, ele se tornou um jargão da mídia. A expressão
politicamente correto, e suas variantes feminina e plural são facilmente
encontradas quando lemos os jornais diários. Em reportagens, artigos, resenhas,
editoriais, a expressão é utilizada normalmente como um adjetivo, para designar
pessoas, situações, comportamentos e ações, tendo um caráter polivalente nas
suas formas de uso. No caso da saúde alimentar, por exemplo, a nutrição
politicamente correta é a que não peca em exageros. A pessoa que ingere uma
combinação equilibrada de carboidratos, proteínas, gorduras, fibras, frutas e
legumes e não excede o consumo de carnes, doces, álcool e massas está em
consonância com o adjetivo. O excesso de alimentos, a comilança, a gula, a
bebedeira são todos comportamentos que não se enquadram no esquema
politicamente correto. No ramo da moda, politicamente correta é a coleção de
tecidos que não utiliza pele de animais. Aliás, a dieta politicamente correta
mais determinada é vegetariana. O respeito ao próximo, seja ele bípede ou
quadrúpede, é preceito fundamental. O equilíbrio é, talvez, a palavra mestra que
defina o conceito. Quem não se recorda da proposta Politicamente correto
e direitos humanos, publicação da Secretaria de Direitos Humanos do governo
brasileiro lançado em 2005, que propunha substituições para expressões
corriqueiras do cotidiano brasileiro? Aludindo ao título O preconceito nosso
de cada dia, o prefácio da publicação escrito por James Pinsky alertava que
o comportamento informal do brasileiro pode ocultar, na realidade, preconceitos
arraigados da sociedade, dando ênfase aos bairrismos. Segundo o autor,
expressões tradicionais como “baianada”, “paraíba”, “caipira”,
“barbeiro”, “branquelo” deveriam ser abolidas, e os brasileiros deveriam ser
mais moderados na forma de tratar os outros, os diferentes.
Todos nós (...) utilizamos palavras, expressões e anedotas,
que, por serem tão populares e corriqueiras, passam por normais, mas que, na
verdade, mal escondem preconceitos e discriminações contra pessoas ou grupos
sociais. Muitas vezes ofendemos o “outro” por ressaltar suas diferenças de
maneira francamente grosseira e, também, com eufemismos e formas
condescendentes, paternalistas. (CIPRIANO, 2005: 11).
O filósofo
esloveno Zizek (2003) apresenta uma contribuição interessante para a reflexão
da temática, pois, conforme suas análises, na atual vida pós-moderna
“existe a liberdade de desconstruir, duvidar e distanciar-se” (op.cit:17) das
coisas, não sendo mais vergonhoso desconstruir as tradições, como a Bíblia, os
contos de fadas, as noites de Natal, provérbios... Conforme o autor, vivemos na
era das rupturas, dos desmoronamentos, das guerrilhas contra as velhas
tradições que nos aprisionavam. Tal fato pode ser observado claramente no
desmantelamento das instituições, com o fim dos regimes estritamente
disciplinares. A desestruturação da própria concepção de sujeito moderno,
confluindo as identidades híbridas, multifacetadas e flexíveis também aponta
essa tendência. A indústria da moda, por sua vez, cede cada vez mais espaço
para negros, gays, lésbicas, gordinhas e deficientes físicos... Parece que vivemos
todos numa grande aldeia global, onde todas as figuras até então condenadas ao
ostracismo podem brilhar. Presenciamos um rendoso mercado aberto para as
diferenças, que, conforme Zizek demonstra a ascensão de uma “ideologia
multiculturalista liberal hegemônica” (op.cit:83).
O filme
produzido para o público infantil de imenso sucesso Shrek, expressa,
para Zizek, o funcionamento dessa lógica hegemônica da diferença: a princesa é
uma ogra, a fada madrinha e o príncipe são os vilões, o herói também é um ogro,
o ajudante do herói é um ex-matador reformado, o dragão é um benfeitor, entre
outras “referências anacrônicas a costumes modernos e cultura popular” (op.cit:
87).
Na mesma
linha, podemos colocar o hiper sucesso de vendas Politically correct bedtime
stories que em 1995 vendeu 2,5 milhões de cópias nos Estados Unidos e foi
traduzido para 20 línguas, inclusive o português. Nesse livro humorístico
há um deslocamento dos perfis dos personagens. Na fábula A cigarra e a
formiga a primeira é uma pacifista, hippie, musicista absolutamente alheia
aos interesses do capital enquanto a segunda é uma autêntica workhalic,
ambiciosa e compulsiva, cuja principal pretensão é acumular terras e riquezas.
Nesse sentido, os papéis de vilã e mocinha converteram-se. Em uma outra
estória, que se refere à Pequena Sereia de Andersen, não é a sereia que se
transforma em humana para viver na terra, mas o príncipe que vira um camarão e
vai morar no mar.
Segundo
Zizek, entretanto “contou-se a mesma velha história” (ZIZEK, 2003:89) e não
podemos considerar o livro de Garner e o filme da Dreamworks fora da lógica do
multiculturalismo liberal. Para ele, “a função desses deslocamentos e
subversões é tornar relevante para nossa era pós-moderna a história tradicional
e evitar que ela seja substituída por uma nova narrativa” (op.cit:90), pois,
apesar de parecermos zombar de antigas crenças, ainda nos apoiamos nelas como a
estrutura oculta de nossas práticas diárias. Aludindo ao Homo sacer de
Agamben, Zizek conclui que o modo liberal dominante de subjetividade hoje
é o Homo otarius, que imagina estar zombando da ideologia dominante
quando está apenas aumentando o controle deste sobre ele próprio.
No entanto,
a crítica em relação a essas políticas da minoria travadas no cotidiano
já era formulada por Pasolini, ensaísta, cineasta e homossexual italiano na
década de 70. Ele expunha o caráter fascista das atitudes de tolerância
na Itália de então. Afirmava que o poder reformador emergente no final dos anos
60 incutiu uma falsa liberalização nos jovens daquele país, criando uma
liberdade sexual moderada onde os casais poderiam comprar nas lojas
especializadas os mais variados artigos para incrementar suas relações sexuais.
A Itália, que após a guerra entrava na era do consumo, percebeu que o sexo era
um grande atrativo para tal. Segundo o autor, essa liberdade que era oferecida,
porém, não trazia felicidade, e sim criava “erotomaniacos neuróticos”
(PASOLINI, 1990:154). A ansiedade pelas reformas, inclusive a sexual, foi
perpetrada pela burguesia, e se expressava em “verbalismos
e terrorismos” (op.cit:156), fruto de um programa geral de tolerância do poder
que, de certo, “nunca foi tão intolerante” (idem). A tolerância de um poder que
necessitava então de “uma absoluta elasticidade formal das existências”
(op.cit:166), uma sociedade sem preconceitos, livre e, consequentemente, ávida
por bens de consumo. Assim, tolerância virou modelo cultural, expressando uma
“nova moral da pequena burguesia” (op.cit:180). A partir disso, liberdade
sexual se tornou obrigação, dever social, gerando na sociedade italiana uma
verdadeira “ansiedade social” (idem). O cineasta, muito combatido por conta de
sua homossexualidade assumida, declamava que nada era mais humilhante do que
pedir pra ser tolerado. Segundo o autor, tal ansiedade de quebrar tabu a
qualquer custo deveria levar a pensar num retorno do preconceito com força
total e não o contrário. Pasolini pressentia os sinais da adequação do diverso
ao igual, o slogan do multiculturalismo atual, a luta da diferença que,
de certo, é a luta pela normatização de todos.
Oz (2004)
utiliza o termo fanático para escrever sobre os fanáticos não óbvios,
que exercem um fanatismo que está no cotidiano, de forma civilizada, como os
antitabagistas, os vegetarianos e os pacifistas. A adoção de “uma atitude de
superioridade moral que não busca o compromisso” (OZ, 2004:24) é a semente do
fanatismo. É usual o fanático civilizado acreditar ser realmente generoso e
altruísta. Ele crê que suas escolhas devam ser unânimes, desejando que todos ao
seu redor sintam a felicidade que ele sente. A benevolência desse tipo de
fanático é tanta que ele quer sempre libertar, ajudar, curar, salvar... Ele
acredita de fato que é uma figura bondosa, capaz de realizar auto-sacrifícios,
abrir mão de seus desejos para atualizar o desejo do outro.
Porém, esse
tipo de fanático quer impor regras, submeter o outro às suas crenças, convencer
as pessoas que somente a sua própria opinião é a verdadeira. O fanático é um
intolerante radical com a diferença e não o seu defensor, não tolerando as
escolhas que um indivíduo
pode realizar. Se a princípio parece haver uma predisposição para ajudar o
outro, essa ajuda voluntária pode resultar, de fato, em um meio extremamente
eficaz de controle.
Dessa forma,
o extremado liberal que brada contra o terrorismo, a violência e o
fundamentalismo antidemocrático pode terminar eliminando a liberdade e a
democracia que tanto defende se isso for necessário na luta contra os elementos
do “eixo do mal”, ou seja, tudo aquilo que trai a ordem da nova democracia
multiculturalista pacífica.
O
politicamente correto, portanto, cria um antagonismo em relação ao qual pode se
comportar de forma fanática: o politicamente incorreto. Para Volkoff (2005), o
politicamente correto como “observação da história em termos maniqueístas, em
que o PC o bem e o politicamente incorreto é o mal” consiste em buscar no outro
suas opções e diferenciações, desde que elas não sejam politicamente
incorretas. Assim, manifestando amiúde uma conduta da tolerância, o PC acaba
por gerar, também, novas expressões da intolerância. Esse é o papel dos
politicamente corretos “de carterinha”.
O fanatismo
pode estar presente em frases da babá, como a seguinte, que finaliza o e-mail:
“Precisamos lutar contra essas lembranças, meus amigos!”, ao se referir ao que
ela alude como incorreto. O politicamente correto também pode vir a ser
considerado como algo fanático, no entanto é o uso que se faz dele que
determinará tal condição.
O fanatismo
ocorre quando o PC se torna uma bandeira idealizadora a ser hasteada, e o seu
outro, o politicamente incorreto configura-se como o seu opositor, seu natural
inimigo - conduta polarizada que remete menos a um posicionamento ético, e mais
a uma nova moral: nessa frente, o outro é enxergado como o mal, e para alcançar
a pureza do espírito ele deve ser eliminado de hábitos e condutas. Nesse
sentido, o PC não nos remeteria a uma filosofia da diferença, e as letras que
expressam a não violência e o pacifismo seriam características de uma atitude
moral, muito mais uma ideologia do que uma filosofia, onde o outro não está
sendo realmente levado em consideração. Balizar ética e moral, tal qual Suely
Rolnik (1995) postula, torna-se tarefa sine qua non para compreender
como o PC vem sendo considerado um modo progressista de definir como ética o
que é moral, e esclarecer o posicionamento desse texto em relação ao conceito.
Segundo a
autora, na vida societária o homem pode escolher entre assumir uma posição
ética ou uma posição moral. Ambas incluem uma problematização da relação com o
outro. Dentro de sua perspectiva, entretanto, Rolnik afirma que outro não é
aquele que é reconhecido enquanto um ser que se distingue de outro, por exemplo
- aquilo que é exterior a um eu, tendo sua própria individualidade, seu corpo, sua
unidade. Digamos assim: o outro não é quem não ocupa o meu espaço.
Desconsiderar essa última proposição seria entender o outro, a alteridade, como
parte do plano do visível, do plano da percepção apenas. Mas a realidade não se
restringe ao visível, e a alteridade é justamente a extrapolação dessa
visibilidade. O outro emerge quando nos libertamos das aparências, das imagens
e da rotina – as normas gerais que incluem também o nosso próprio corpo, nosso
próprio eu, nossa identidade – esse objeto de afeição ao qual nos apegamos com
afinco e que acreditamos ser o real. Considerar o outro é aceitar o rompimento
com o principium individuationis proposto por Nietzsche, a emancipação
do eu - instância aprisionadora. Tal liberação só é conquistada com um certo quantum
de violência, pois se soltar das amarras da identidade não é tarefa fácil. A
diferença que se impõe a partir desse estado de independência é a emergência do
outro, é a dimensão alteritária de que fala Rolnik. A partir disso,
instauram-se novas “composições (...), que geram em nós estados inéditos,
inteiramente estranhos em relação àquilo de que é feita a consistência
subjetiva de nossa atual figura” (ROLNIK, 1995:148). Nesse sentido, o outro
está menos próximo de um reconhecimento do que de um desconhecimento. O
dionisíaco nietzschiano e a alteridade de Rolnik se aproximam quando a autora, enfim, admite que o outro é o caos, e a
ativação da potência de acesso ao invisível, ao outro, ou seja, ao caos é um
trabalho do homem da ética. É a superação do espaço - pois já não se define o
outro a partir de uma matemática espacial – que constitui o outro, e a
instituição do tempo, que é simultâneo. A dimensão alteritária está, na
realidade, sempre em nós, parte do inconsciente, desejando e querendo destroçar
nossa identidade, ela é simultânea. Nesse caso, se o homem da ética admite a
existência dessa violência, dessa realidade atroz e a partir dessa configuração
se recria, o homem da moral de defende, evitando o terror que pode ser
desencadeado pela referida destruição. O homem da ética permite a irrupção de
novas sensações e afetos, conduzindo a destruição à criação, à inventividade de
si mesmo, já que o homem da ética não opta por caminhos. Ele segue, cria um
novo, “aquém e além do apenas correto” (op.cit: 169). O homem da ética não
suporta ter que escolher entre dois lados opostos entre si, ele quer inventar
um novo modo de ser – a partir daquilo que supostamente iria extingui-lo.
A criação da
doutrina politicamente correta não pode, portanto, fazer referência ao homem da
ética, pois ela se formula a partir de uma diferenciação com o “politicamente
incorreto”, realizando uma oposição. Os defensores do PC condenam as ações
politicamente incorretas e os defensores de um modo “incorreto” de existência
se esforçam, a todo custo, para não serem corretos demais. Não se constitui o
PC, portanto, uma tomada ética da ideia do diferente e das diferenças que
povoam nossas cidades. O PC encontra-se preso a caminhos já conhecidos, quiçá
previsíveis, do correto e do incorreto, do bem e do mal, não vislumbrando os
espaços indeterminados que, de fato, qualificam a condição alteritária da
existência. O politicamente correto seria pois, um clichê – “uma política
apenas possível” (ZOURABICHVILI, 2000:350), que dialoga com um real já acabado,
determinado, enredado a convicções. Ora, mas a diferença é justamente uma impossibilidade
de ser, o diferente assim se denomina por não caber em nenhuma categoria
convencional, já instituída. Inovar, assim, é ir para além do não e do sim,
do bem e do mal, do correto e do incorreto, permitindo a abertura para
respostas outras que tracem novos caminhos. O homem da moral é aquele que está
sempre fortalecendo a opção por um caminho, preso a identidades e
representações, com uma série de regras a serem admitidas, convicto em suas
opiniões e inflexível com as alheias – aquelas que se contrapõem ao seu modo de
viver.
Não
obstante, pesquisar o politicamente correto em instituições implica
considerá-lo não como um mero conceito, mas como um uso. Tal uso pode indicar,
ou não, tendências fanáticas, intolerantes com o outro. A popularização do
termo, tomando como referência o conceito de Certeau dos usos, designa que nos
“modos de fazer” as atribuições do politicamente correto podem ganhar outro
feitio, para além do simplesmente moral.
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Fonte:
Fonte:
BEATRIZ DE SOUZA BESSA: “NÃO
ATIRE O PAU NO GATO: O POLITICAMENTE CORRETO NA EDUCAÇÃO INFANTIL”. (Dissertação
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) como requisito parcial para obtenção
do título de Mestre em Memória Social. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Josaida de
Oliveira Gondar). Rio de Janeiro, 2007.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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