A ESQUERDA CATÓLICA




A esquerda católica


A esquerda católica foi constituída através dos meios católicos que reagiram contrariamente à “concordata não-escrita” e à “neocristandade”, que por sua vez, foram elaboradas pela reação católica a partir da década de 1920 e efetivada a partir de 1930.64 A condição de avalista moral da ordem temporal estabelecida perdera a legitimidade. Entretanto, esses setores não se viam como os promotores de “uma nova estrutura de Igreja”. Ao contrário, elaboraram um combate pelo patrimônio simbólico da fé cristã traduzido pelo catolicismo romano. Legitimaram-se legitimando a tradição.

Essa esquerda coexistiu num conflituoso esforço contra-hegemônico diante outros grupos e mentalidades dentro do catolicismo. Para melhor defini-los e situá-lo diante dos demais, as tipologias elaboradas por Scott Mainwaring e Danièle Hervieu-Léger são bastante úteis.

Mainwaring identifica três grupos distintos dentro do catolicismo brasileiro, a partir de meados da década de 1950. São eles: 1) os tradicionalistas, que continuaram na defesa do projeto de neocristandade e no combate à secularização; 2) Os modernizadores conservadores, que acreditavam que o catolicismo deveria mudar para poder enfrentar com maior eficácia as questões do mundo moderno; eles se preocupavam com a secularização, com o avanço do protestantismo e com o comunismo e 3) Os reformistas, que se preocupavam com o trabalho pastoral mais intenso e com uma educação religiosa mais eficaz; enquanto “os conservadores modernizadores enfatizavam a necessidade de lutar contra o comunismo, os renovadores se preocupavam mais com a mudança social como um fim em si. Durante a década de 50, esse grupo iniciou alguns experimentos que inspiraram outras inovações posteriores”.

Luiz Alberto Gómez de Souza cita o trabalho de Danièle Hervieu-Léger sobre estudantes franceses. Ela se propõe, segundo Gómez de Souza, a descobrir tipos de combinações entre os estudantes católicos diante da questão da política e do mundo moderno. Nesse esforço, Hervieu-Léger distingue três tipos:

a) “cristianizar a sociedade (o religioso contra a política): ‘estender a Igreja até as extremidades da terra’”; b) evangelizar o meio (humanizar a sociedade): penetrar a sociedade com valores cristãos, transformar as relações sociais cristianizando as mentalidades; c) construir o reino (criar uma sociedade): ‘a utopia política aparece ao mesmo tempo e inseparavelmente como a versão sacralizada do projeto político’”.

A análise tipológica é sempre redutora, entretanto, pode ser bastante útil para elaborarmos uma compreensão do grupo que estudamos. Essa utilidade é maior quando um tipo é colocado ao lado de outro que lhe é diferente ou, ainda, que são mutuamente excludentes. Os tipos elaborados por Maiwaring e Hervieu-Léger revelam simetrias bastantes significativas, em que pese o dado de terem sido elaboradas pensando o catolicismo em países diferentes.

O terceiro tipo das duas definições importa-nos de maneira especial porque descobrimos nele a compreensão que constitui o universo de assertivass da esquerda católica brasileira. Ela passa da problemática apologética para a propositiva. Este setor do catolicismo fundou-se nas efervescentes elaborações acerca da ideia de que a história, o grande ato do drama humano, é o lugar onde principia a salvação. A “bandeira do humano” é empunhada e torna-se o objeto de sentido e coesão da esquerda católica, que nega que o Cristo seja um mero episódio sem consequências para todos os tempos do homem e para o homem todo em todos os tempos.68 Essa esquerda propunha que o Cristo era alcançado na medida em que se avançava na direção do drama do humano. Se a revolução se impõe como único ato eficiente no sentido da emancipação humana, ela torna-se o ato privilegiado para a marcha em direção ao Cristo.

Segundo Pedro Ribeiro de Oliveira, o uso propriamente sociológico do termo “esquerda católica” foi feito por Cândido Mendes de Almeida em 1966, “para designar o posicionamento político, até então inédito no Brasil, de grupos e intelectuais católicos em favor de teses capazes de provocar uma ruptura na estrutura sócio-econômica que mantinham o país no subdesenvolvimento.” Ainda, segundo Oliveira, antes do trabalho de Cândido Mendes, essa “expressão era usada pelo pensamento conservador para desqualificar aqueles grupos e intelectuais, porque, no contexto de combate religioso ao ‘comunismo ateu’ quem fosse de ‘esquerda’ não poderia ser autenticamente católico.”

Esse setor do catolicismo é melhor compreendido quando o situamos dentro de um mundo em efervescência. O catolicismo todo sentiu os grandes eventos-força desse período. Internamente, o papa João XXIII anuncia o Concílio Vaticano II e publica as encíclicas Mater et Magistra e Pacem in Terris. Externamente, os impactos da revolução cubana e a sua pedagogia: o Estado pode ser tomado das mãos das seculares oligarquias. No plano da política brasileira havia a luta pelas reformas e as ligas camponesas.

Descobria-se que o marxismo fazia constatações plausíveis da realidade. Vale lembrar, ainda, o padre Camilo Torres, que foi, segundo Bresser-Pereira, o maior herói revolucionário da América Latina, depois de Che Guevara.

Esse autor ajuda-nos a compreender melhor o profundo processo de transformação da Igreja Católica no mundo todo e particularmente na América Latina. Ele defende que essa mudança se deve ao seu descomprometimento com a ordem estabelecida e com a adoção de ideologias e de práticas políticas que vão desde o pleito por reformas profundas na sociedade latino-americana até a defesa da revolução socialista e a sua prática na conscientização popular e na guerrilha.

Esse processo se estabelece ao mesmo tempo em que a Igreja Católica no Brasil vai perdendo os privilégios que ela julgava merecer pelo seu apoio ao sistema.

À medida que esse fenômeno de descomprometimento vai ocorrendo, a Igreja vai se tornando uma fonte de críticas do sistema. A intensidade dessa crítica varia muito. Se entendermos a Igreja em um sentido restrito, definindo-a como uma hierarquia de padres e freiras, burocraticamente estruturados, então teremos que limitar grandemente o alcance dessa crítica. O máximo que uma organização burocrática consegue ser é reformista. Sua crítica pode ser severa, mas jamais é revolucionária. Uma burocracia é um sistema social racionalmente organizado, que não pode se aventurar a uma revolução. Muitos são os interesses constituídos em torno de uma burocracia. E quando ela é milenar, como é o caso da Igreja Católica, além dos interesses que a rodeiam, é preciso lembrar que sua estrutura formal tende a possuir grande inflexibilidade, dificultando o processo de renovação.

O descomprometimento permite ao catolicismo constituir-se, portanto, numa força reformista dentro da sociedade. Não obstante o seu peso inercial e burocrático, de seu meio surgem movimentos de reforma e revolução. Seus setores à esquerda passam a negar o então ambiente social econômico e político, bem como a situação do operário e do trabalhador rural. Eles passaram a propor a superação do capitalismo como sistema econômico.

Ainda segundo Bresser-Pereira, esse processo de mudança no catolicismo teve um caráter exemplar no Brasil. Sua ideia-chave era a conscientização. E muitos dos seus objetivos convergiam com o dos marxistas: defesa da reforma agrária, nacionalização de empresas e a resistência ao imperialismo. Entretanto, os católicos tinham uma postura crítica diante dos regimes socialistas existentes, sobretudo no que se refere à questão das liberdades.

Essa palavra “conscientização” foi inicialmente proposta, no começo dos anos 60, pelo educador brasileiro católico Paulo Freire, que desenvolveu um extraordinário e revolucionário método de alfabetização de adultos baseado nesse princípio. Seu método, que se constituiu em uma das principais bases teóricas do importante movimento de Educação de Base, (...) e, principalmente, do movimento de cultura popular do Recife, alcançou uma profunda repercussão no Brasil. Com a Revolução de 1964 seu autor e o próprio método foram banidos sob a acusação de subversivos (...).

Segundo Bresser-Pereira, o método Paulo Freire não era, em si mesmo, subversivo. Entretanto, ele constituía-se numa ameaça à ordem estabelecida.

Em primeiro lugar, o método era eficiente, e isso já o tornava perigoso. Educar rapidamente e em massa adultos, que, depois de alfabetizados, não encontrariam na estrutura econômica e social do país oportunidades de progresso, era arriscado. Por outro lado, a filosofia pessoal do grande educador católico, embora não fosse marxista, nem pregasse a revolução, caracterizando-se por um reformismo básico, tinha afinal um sentido revolucionário dentro de seu humanismo.

O livro Educação como prática de liberdade de Paulo Freire “revela uma filosofia católica particularmente influenciada por autores como Alceu Amoroso Lima, Emmanuel Mounier, Gabriel Marcel, Karl Jaspers e Simone Weil”. Sobre a conscientização, Bresser-Pereira afirma, em seu trabalho, cuja primeira edição data ainda dos anos 60:

Esta concepção de conscientização proposta por Paulo Freire é provavelmente, hoje, a estratégica política revolucionária por excelência da esquerda católica na América Latina. Nascida de um católico, ela tem grande apelo nos meios católicos. O humanismo cristão que a inspira, seu caráter ao mesmo tempo neutro e ideológico, sua ênfase na liberdade e na responsabilidade, seu claro relacionamento com a “conversão”, a prioridade que dá à mudança de mentalidade, ao invés de mudança das estruturas. Todos esses aspectos têm um forte apelo para os católicos e ajudam-nos a explicar a adoção da conscientização como sua estratégia básica”.

O jornal Brasil, Urgente é uma das expressões da esquerda católica. Antes, entretanto, de iniciar a discussão específica sobre ele, é adequado compreender melhor este setor do catolicismo. Para tanto, concentraremos nosso esforço intelectual em três eixos, ou ideias-chaves nativas de suas próprias compreensões mas por nós sistematizadas. A primeira refere-se à consciência histórica e à consciência da história; a segunda trata da inserção na grande tradição do cristianismo católico e a terceira, por sua vez, trata das ideias acerca da revolução.


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Fonte:
Wellington Teodoro da Silva: “Brasil, Urgente: experiência de esquerda no catolicismo brasileiro - 1963 – 1964”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião do Instituto de Ciências Humanas e de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Religião. Área de Concentração: Ciências Sociais da Religião. Linha de Pesquisa: História Social e Cultural da Religião. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Ayres Camurça). Juiz de Fora, 2008.


Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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