Lampião, o proto revolucionário das lutas camponesas
A
classificação de “proto revolucionário das lutas camponesas” é de Rui Facó, em
seu livro Cangaceiros e Fanáticos (1968), e pode ser considerada talvez
o marco original da historiografia no Brasil sobre o tema. Inspirada no
marxismo e com ideias que se aproximam das de Eric Hobsbawm, em Bandidos
(1976), sua interpretação do cangaço parte do pressuposto que os cangaceiros
representam uma forma de luta ativa contra a opressão do latifúndio. Segundo
Silva (1996), sua obra é um elemento capital do processo de apropriação do
imaginário, no qual o cangaceiro se transforma em um proto-revolucionário,
símbolo da luta por uma reforma agrária. Defende Facó (1983, p. 21),
referindo-se à desdita que marcava a vida do sertanejo e que, segundo ele,
teria sido elemento promotor de seu ingresso no cangaço:
Nas terras dos grandes proprietários, eles
não gozam de direito algum político, porque não têm opinião livre; para eles o
grande proprietário é a polícia, os tribunais, a administração, numa palavra,
tudo; e afora o direito e a possibilidade de os deixarem, a sorte desses
infelizes em nada difere da dos servos da Idade Média [...]
Era mais
do que natural, era legítimo, que esses homens sem terra, sem bens, sem
direitos, sem garantias, buscassem uma “saída” nos grupos de cangaceiros [...] sonhando a conquista de uma vida melhor. E muitas vezes
lutando por ela a seu modo, de armas nas mãos. Eram eles o fruto da decadência de um sistema
econômico-social que procurava sobreviver a si mesmo. (Grifos nossos).
O
contexto histórico onde se constrói esse simbolismo em torno do cangaceiro e,
consequentemente, em torno de Lampião, é o que se situa dos finais dos anos
1950 e início dos anos 1960. Esse espaço de tempo é o cenário onde atuará
Francisco Julião Arruda de Paula, advogado e fundador das Ligas Camponesas em
Pernambuco, que vai, segundo Sá (2006, p. 177), “reivindicar os cangaceiros
como elementos pioneiros de seu combate”. Considerando os cangaceiros como
ancestrais das Ligas Camponesas, segundo Silva (1996), os intelectuais
marxistas transformaram os cangaceiros em um instrumento político,
historicamente determinado e ainda de acordo com Sá, tal visão sobre o cangaço
é (...) uma resposta
à opressão do latifúndio e a um aparelho judicial corrupto e ineficaz, constituiu-se,
por longo tempo, na base das interpretações sobre o fenômeno, que vai,
inclusive, reverberar no resgate da memória do cangaço elaborado pelos
militantes dos movimentos sociais no Nordeste. (SÁ, 2006, p.177)
A
afirmação do teórico citado encontra ratificação em ações protagonizadas, por
exemplo, em Serra Talhada, na década de 1990, quando da comemoração do
centenário de nascimento de Lampião, em 1997. Naquela ocasião, o produtor
cultural Anildomá Willians de Souza, fundador e presidente da Fundação Cultural
Cabras de Lampião, a quem, Sá (2006, p. 176), atribui o resgate positivo da
imagem do cangaceiro naquela cidade, chamou a atenção da imprensa pernambucana
ao convidar Jaime Amorim, líder maior do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem-Terra (MST), em Pernambuco, para participar do Tributo a Virgulino.
Entrevistado
pelo Jornal do Comércio, o produtor cultural justificou o convite,
reportando-se à questão do latifúndio: “Os coronéis continuam mandando do mesmo
jeito, enquanto a polícia, por sua vez, age com a mesma violência dos soldados
da volante quando o objetivo final é acabar com as ocupações do MST”,
(TINOCO,1997, p. 4). Posteriormente, dessa feita falando ao jornal O Estado de
São Paulo, demonstra insistir na existência de uma relação histórica entre MST
e cangaço e, segundo Luiz Athias (1998, p.03), assim se expressa: “Os dois
movimentos chamaram a atenção para o abandono do Sertão”.
A
primeira edição do evento criado por Anildomá Willians em Serra Talhada, O
Tributo a Virgulino, 1995, tem, em seu panfleto convocatório, expressa a ideia
do seu organizador, ideia que corrobora com o pensar de Facó (1983): a postura
ideológica dos cangaceiros e, consequentemente, envergada por Lampião.
Vendo
seus irmãos sertanejos tombarem de fome, pela falta da terra, mão-de-obra
semi-escrava, os coronéis mandando e desmandando nos sertões, o jovem Ferreira
passou a ser uma esperança de claridade, entrando nas vilas, povoados e
cidades, fazendo justiça e clamando em alto e bom tom, que era preciso devolver
aos mandatários o que eles davam ao povo. (Tributo a Virgulino, 1995)
Percebe-se
clara, lendo-se o texto, a presença de ideologia no agir de Lampião. Por ele,
estaria o cangaceiro engajado em um ideal previamente definido. Ou seja, Lampião
estabelecera leitura do seu mundo e, posterior a ela, convencido da exploração
sofrida pelos da sua classe, empreendera, então, ação. Seria, pela ótica
marxista, a vivência, por parte do cangaceiro, de uma ação política consciente
e transformadora, de uma práxis.
Outro
exemplo do reflexo das ponderações de Facó (1983) é observado na cidade de
Triunfo, localizada no Sertão pernambucano do Pajeú. Ali, o significado
positivo da imagem de Lampião resulta de trabalho exercido por um grupo
cultural intitulado Lampeônico.
Também no
ano do centenário de nascimento de Lampião, Ruy Trezena Patu, juiz aposentado e
vereador, apresentou projeto à Câmara de Vereadores de Triunfo, onde
objetivava, dentre outras coisas relacionadas ao cangaço, a construção de uma
estátua de Lampião, que seria esculpida pelo artista plástico pernambucano
Aberlardo da Hora, autor de peças grandiosas da cultura popular, como a de Frei
Damião de Bozzano, em Guarabira, na Paraíba.
A atitude
do vereador repercutiu significativamente na imprensa de Pernambuco e lhe
gerou, dentre outras críticas, a proveniente de Ariano Suassuna que, em artigo
publicado no Diário de Pernambuco, de 24 de agosto de 1999, contraponteou o
vereador, afirmando não ser Lampião merecedor da homenagem do povo triunfense.
Revidando à crítica, em documento chamado Carta de Patu (apud SÁ, 2006,
p. 179), o vereador diz que Lampião foi o “maior guerrilheiro da América Latina
e o maior andarilho com armas na mão que se conhece no mundo e, por esta e
outras razões, Lampião merece ser estátua, se não fora os preconceitos dos
políticos e das elites reacionárias”.
Sua
leitura do cangaço se aproxima das linhas gerais da historiografia marxista do
cangaço, onde as ações cangaceiras são efeitos da estrutura injusta. Chamar
Lampião de guerrilheiro é interpretação do cangaço que encontra respaldo na
invenção de uma tradição revolucionária, realizada por pensadores e artistas de
esquerda dos anos 1950 e 1960, que, segundo Sá (2006, p. 180), viam os
cangaceiros como a “ante-sala da revolução” e marcou, indelevelmente, o
imaginário social.
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Fonte:
JOSÉ FERREIRA JÚNIOR: “A APROPRIAÇÃO DA MEMÓRIA LAMPIÔNICA COMO ELEMENTO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE SERRA TALHADA – PE”. (Dissertação apresentada para obtenção do título de Mestre, junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande, sob a orientação da Profª. Drª Elizabeth Christina de Andrade Lima. Área de Concentração: Sociologia. Linha de Pesquisa: Cultura e Identidades). Campina Grande, 2010.
JOSÉ FERREIRA JÚNIOR: “A APROPRIAÇÃO DA MEMÓRIA LAMPIÔNICA COMO ELEMENTO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE SERRA TALHADA – PE”. (Dissertação apresentada para obtenção do título de Mestre, junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande, sob a orientação da Profª. Drª Elizabeth Christina de Andrade Lima. Área de Concentração: Sociologia. Linha de Pesquisa: Cultura e Identidades). Campina Grande, 2010.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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