David Hume: “Razão: definição e finalidade”
Para o estudo do conceito de razão e sua
relação com os elementos determinadores das ações humanas, nos remeteremos à
passagem famosa da seção III do livro II do Tratado
intitulada: “Dos Motivos que Influenciam a Vontade”: A razão é, e deve ser
apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar a outra função além de servir
e obedecer a elas.
Ao falarmos dos afetos diretos e
indiretos, enquanto únicos motivadores das ações - e citarmos a famosa sentença
de Hume sobre a redução da razão como escrava das paixões - adentramos na
investigação relativa à abordagem feita por Hume entre os dois conceitos e suas
diferenças.
Direcionemos a pesquisa para o conceito de razão. A análise deste conceito possibilitará a ratificação da tese de Hume acerca da função da razão como “escrava” das paixões. Mas é essencial fazermos aqui um importante adendo: apesar de a subserviência da atividade racional aos afetos ocorrer na esfera da determinação da conduta e das ações, observaremos que há circunstâncias em que a atividade racional pode influenciar os afetos, pois a razão pode afetar, permutar e até extinguir desejos, influenciando indiretamente as ações.43 Esta questão nos levará à análise de alguns problemas relacionados com o terreno da motivação das ações humanas que, por sua vez, estão conectados com a teoria da origem e desenvolvimento da sociedade.
A razão possui um caráter passivo no
plano prático das ações dos homens, ao contrário do caráter ativo dos afetos
que são capazes de determinar a conduta humana. A faculdade denominada razão
não possui força necessária para determinar um indivíduo à ação. Ela não pode
preferir fazer ou não fazer tal coisa. Isto quer dizer que a razão não pode
impelir ou provocar qualquer ação humana. A única possibilidade de a razão
influenciar as ações será, indiretamente, através das paixões e, neste aspecto,
a razão estará subordinada aos afetos. Por fim, sua atuação deverá limitar-se
em se ocupar com as ações, observando a coerência lógica das mesmas.
Investiguemos agora um pouco mais acerca da natureza e do papel do conceito de
razão em Hume e sua relação com as paixões.
A razão, na filosofia humeana, poderia
ser analisada e definida basicamente por dois adjetivos. Ela seria indiferente
e impotente. A inatividade da razão decorreria basicamente da sua indiferença.
Poderíamos perceber esta indiferença, explicitamente, pela afirmação de Hume de
que “não é contrário à razão eu preferir a destruição do mundo inteiro a um
arranhão no meu dedo.” A razão, para Hume, possui um poder teórico e não
prático. Tal poder consistiria na capacidade de conhecer por demonstração,
estabelecendo relações entre as ideias e se informando junto à experiência
sobre as ligações constantes entre os fatos. É dentro desta perspectiva que
Hume afirma que “a razão é a descoberta da verdade ou da falsidade”, já que “a
verdade e a falsidade consistem no acordo e desacordo, seja quanto à relação real
de ideias, seja quanto à existência e aos fatos reais.” Portanto, a razão pode
denominar algo como verdadeiro ou falso mas não algo bom ou mau. Ela então pode
conhecer alguma coisa (objeto ou ação) como benéfico para o sujeito, embora não
possa determiná-lo a desejar tal objeto ou ação.
Além de inativa e indiferente, a razão
poderia ser qualificada de impotente pois, ao contrário das paixões, é
desprovida de objeto e, por isso, não se constitui como causa ou motivo das
ações humanas. Como não pode ser causa direta das ações humanas, não é capaz de
contrariar, suspender ou anular o exercício de uma paixão. A razão pode
apresentar os objetos às paixões como alcançáveis ou inalcançáveis, reais ou
irreais e, desta maneira, controlar de modo indireto os impulsos afetivos.
Então, a razão age apenas sob o comando das paixões.
Através da análise das paixões e da razão sob
a perspectiva das definições dadas por Hume aos dois conceitos, podemos dizer
então que o conflito entre razão e paixão na verdade não existe. Razão e paixão
possuem naturezas distintas mas não contrárias. As paixões só poderiam ser
contrárias à razão no caso de se remeterem a ela de alguma maneira como, por
exemplo, através de raciocínios e juízos do entendimento expressos através de
proposições, já que, para Hume, os objetos da razão são entidades suscetíveis
de um valor de verdade ou falsidade que podem ser encontradas nas
proposições.50 Portanto, “as paixões só podem ser consideradas contrárias à
razão enquanto estiverem acompanhadas de um juízo ou opinião.” Por conseguinte,
deve-se concluir que, enquanto considerada uma proposição suscetível de um
valor de verdade ou falsidade, uma paixão poderia opor-se à razão.
Em virtude de Hume definir a paixão como sendo
uma existência original ou uma modificação da existência que não contém nenhuma
qualidade representativa que a torne cópia de outra existência ou modificação,
uma eventual contradição entre a paixão e a razão só poderia ocorrer se
houvesse uma discordância entre ideias, que pudessem ser consideradas como
cópias, e os objetos que estas representassem, pois as paixões não representam
as coisas e os fatos de determinada maneira mas, ao contrário, simplesmente
existem, são realizadas e sentidas.
A
fim de exemplificarmos mais a questão da possível contrariedade entre razão e
paixão, remetamo-nos ao próprio Hume. Na seção III, parte III, no livro II do
Tratado, ele afirma que só em dois sentidos um afeto pode ser denominado
contrário à razão:
“Quando uma paixão, como a esperança ou o medo,
a tristeza ou a alegria, o desespero ou a confiança, está fundada na suposição
da existência de objetos que não existem realmente. Segundo, quando, ao agirmos
movidos por uma paixão, escolhemos meios insuficientes para o fim pretendido, e
nos enganamos em nossos juízos de causas e efeitos.”
Um exemplo destes dois tipos de
contrariedade entre os afetos e a razão pode ser observado na seguinte passagem
da seção III, parte III do livro “Das Paixões”:
“Posso
desejar uma fruta que julgo possuir um sabor excelente; mas se me convencerem
de meu engano, meu desejo cessa. Posso querer realizar certas ações como meio
de obter um bem desejado; mas como minha vontade de realizar essas ações é
apenas secundária, e se baseia na suposição de que elas são as causas do efeito
pretendido, logo que descubro a falsidade dessa suposição tais ações devem se
tornar indiferentes para mim.”
Portanto, não há oposição entre um
princípio razoável e um outro oposto que o desvirtuaria, nem seria possível uma
“condenação” pela razão da parcialidade dos afetos, nem estes deveriam
justificar-se perante a razão. Observaremos que, ao contrário, existe uma
espécie de “interação” entre os dois conceitos, particularmente no que diz
respeito às determinações das ações humanas. Não havendo oposição entre eles,
não existe qualquer possibilidade de diferenciação.
O papel da razão em relação às paixões é
de natureza instrumental. Isto pode ser observado sobremaneira na análise de
Hume no tocante à impossibilidade da razão de determinar as ações. O filósofo
nega a possibilidade da razão de poder estimular ou impedir as ações humanas
diretamente. Portanto, a influência da razão sobre as ações pode ocorrer mas
somente de forma secundária (indireta), já que as ações ocorrem sob a condição
de alguns pressupostos fáticos acerca do conhecimento do objeto das paixões e
dos meios adequados para alcançá-lo, os quais se encontram no campo de domínio
da razão. Se existe algum direcionamento das ações por parte da razão, tal
direcionamento é efetuado em impulsos que anteriormente já foram dados pelas
paixões. Portanto, a razão influencia as ações mas somente após a determinação
das paixões. Assim a razão não teria, neste aspecto, um fim específico.
Para Hume, se existe uma finalidade na
razão e no seu modo de operar, esta é prescrita pelas paixões. Por isso é que
se pode afirmar que a razão não possui um fim específico, pois este é imposto
pelos afetos. As paixões são inclinações que, constantemente, se dirigem para
objetos determinados. A razão amplia o campo das paixões, permitindo que elas se
desloquem dos fins aos meios. Ela representa os objetos das paixões como fins e
fornece aos afetos os meios mais adequados de atingilos. Neste processo, a
razão não produz ou engendra nenhum fim “último” que lhe seja próprio, já que
tal ordem pertence ao campo dos desejos, e os fins últimos da ação não são
determinados pela razão e sim pelos sentimentos, emoções e desejos. Podemos
concluir agora, em respeito ao papel da razão no plano das ações, que ela é apta
a propor regras, já que as paixões não seguem facilmente as determinações de
nosso juízo.
Depois de toda a análise da razão e das
paixões, voltemos à oposição feita entre os dois conceitos no decorrer da
filosofia. Ele pode encerrar algum tipo de “coerência,” ou seja, ele pode ter
se originado de algum problema, embora se apresente, para Hume, como um falso
problema. Hume, na seção III, no livro III do Tratado, afirma que as pessoas
(podemos incluir aqui o senso comum e os filósofos), ao dizerem que a razão é
contrária às paixões e as controla, na verdade estão falando de uma
determinação calma das paixões.
“Será
fácil compreender essa maneira de falar se considerarmos aquilo que dissemos
anteriormente a respeito dessa razão que é capaz de se opor a nossas paixões, e
que descobrimos não ser senão uma determinação calma e geral das paixões,
fundada em uma visão ou reflexão distante.”
Desta forma, a razão, sendo considerada sob a
perspectiva de uma determinação calma das paixões, pode, como todas as paixões
calmas, ponderar e equilibrar a vida afetiva. Em todos os casos em que,
supostamente, se acha que a razão está determinando a conduta humana, na
verdade os homens estão sendo guiados pelas paixões calmas.65 É neste momento
que se faz necessária a análise de uma espécie de “interação” entre as paixões
e a razão no âmbito prático.
Na análise da razão e das paixões
efetuada nos parágrafos anteriores, ficou patente a incapacidade de a razão
determinar ou influenciar as ações humanas, cabendo às paixões a capacidade de
definir a conduta na esfera prática. Mas nunca é demasiado ressaltar: a razão
pode determinar as ações de maneira indireta. Assim, de certa forma, a razão
desempenhará também uma função na esfera prática, podendo informar às paixões
acerca das possíveis consequências das ações, maléficas ou benéficas, para o
conjunto da sociedade.
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FONTE:
Rogério Soares Mascarenhas: "A TEORIA DAS PAIXÕES NA FILOSOFIA DE DAVID HUME". (Dissertação apresentada
ao mestrado em filosofia da UFBA, sob a orientação do prof. Dr. Daniel Tourinho
Peres como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em filosofia).
Salvador, 2005.
NOTAS:
A imagem inserida no texto não se inclui
na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão
devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua
totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público.
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