Darwin: falso best-seller

Dentre os vários mitos que se criou em torno de Charles Darwin, um diz respeito ao seu livro "A Origem das Espécies". É comum, por exemplo, ler-se que tal obra foi um jibóico best-seller na época de seu lançamento. Todavia, ninguém melhor do que um darwinista e, aliás, um profundo conhecedor dos originais de Darwin, para desfazer esta lenda tão típica de pessoas comprometidas ideologicamente com o naturalista inglês. No seu ensaio "Darwinismo, ciência e ideologia", o professor da USP, Nélio Bizzo, explica detalhadamente as razões porque este mito não se sustenta à luz dos fatos.

"Poucos cientistas se tornaram autores de best-sellers em seu tempo. E menos ainda ganharam essa fama sem merecê-la. Charles Darwin e seu livro "Origem das espécies", publicado em 1859, é um deles.

É muito difícil saber quando Darwin e "
Origem das espécies" ganharam a fama de best-sellers, mas não existem dúvidas de que o próprio Darwin contribuiu, mesmo que involuntariamente, com ela. Muitas biografias apaixonadas foram escritas sobre esse controvertido naturalista inglês, algumas delas procurando mostrar o lado pessoal de Darwin; outras se concentraram no seu lado científico. O grande problema das biografias de pessoas polémicas é que elas dificilmente são escritas com isenção tal que elimine o risco da criação de fatos novos, por simples distorção, às vezes cumulativa, de biógrafo sobre biógrafo.

O caso do
best-seller ilustra muito bem esse ponto. Ao lado da suposta oferta de Marx para que Darwin prefaciasse "O capital" (outra inven
ção de biógrafos empolgados), a apologia do sucesso popular de Darwin pode ser percebida de forma cristalina numa das mais apaixonadas biografias escritas sobre Darwin. Dois renomados cientistas, Julian Huxley e H.D.Kettlewell, biólogos que trouxeram contribuição inestimável para a compreensão dos mecanismos evolutivos, escreveram "Darwin and his world" em 1965, em edição ricamente ilustrada, que percorreu o mundo em relançamentos e novas edições (o Brasil passou incólume por todas elas). Nesse livro, com uma iconografia inédita para a época, Huxley e Kettlewell reafirmam os mitos que se estabeleceram em torno do grande mestre inglês. Entre eles, se destaca o mito do best-seller. Escreveram eles:

A primeira edi
ção de 1250 cópias vendidas a quinze shillings foi toda comprada no dia do lançamento. Uma segunda edição foi publicada seis semanas depois e, desde aquela época uma avalanche de novas edições revisadas tiveram que ser preparadas, sendo continuamente vendidas.

A impress
ão que temos é que o livro estourou em vendas, desde o dia do lançamento, dando a ideia de que os leitores comuns correram para as livrarias e esgotaram a primeira edição, mantendo o ritmo nas seguintes. Mas a verdade é bem menos dramática do que nos apontam Huxley e Kettlewell. Infelizmente, essa versão tem prevalecido entre biógrafos e mesmo entre cientistas que admiram a obra não apenas de Darwin, mas também de Huxley e Kettlewell (este último foi um dos autores do conhecido estudo do efeito do melanismo industrial sobre mariposas no noroeste da Inglaterra).

J
á em 1959, ano do centenário do lançamento de "Origem das espécies", quando Morse Peckham, cientista da Universidade de Filadélfia, publicava o "Variorum Text", uma extraordinária compilação de todas as modificações introduzidas por Darwin nas sucessivas edições de seu maior livro, ele indicava que essa versão de autor best-seller não se justificava e precisava obrigatoriamente ser revista ("must be revised", escreveu ele). Vamos aos fatos.

Uma resenha do livro de Darwin apareceu no jornal liter
ário de maior prestígio na época, no sábado de 19 de novembro de 1859. A resenha, é bem verdade, fazia alguma sensação do livro, por exemplo, com a pergunta: "Se um macaco se tornou um homem - o que um homem não poderá vir a se tornar? ". No dia 22 foi realizada uma venda por atacado pelo editor, e os livreiros começaram a expor o livro nas prateleiras no dia 26 de novembro. No entanto, a atenção do público estava dirigida para outro lançamento da mesma fornada, a narrativa do Capitão M'Clintock sobre o paradeiro de Sir Franklin.

Numa
época em que a Inglaterra fazia no mar o que os Estados Unidos fazem hoje no espaço sideral, Sir Franklin chefiara uma expedição que procurava pela "passagem norte", a ligação entre o Atlântico e o Pacífico pelo Ártico. A expedição tinha magnetizado a opinião pública até que, subitamente, deixara de mandar notícias. Os dois navios, os mais modernos que o dinheiro poderia fazer construir à época, tinham desaparecido com toda a tripulação, sem deixar qualquer vestígio. No entanto, o HMS Erebus e o HMS Terror, foram finalmente encontrados pelo Capitão M'Clintock. Ele teria seguido um mapa obtido pela esposa de Sir Franklin numa sessão espírita, psicografado por uma menina irlandesa de quatro anos, Wessey Copin, que morrera em seguida. Os jornais já tinham antecipado as conclusões do capitão, que obtivera o diário de bordo dos dois navios. Após o encalhamento no gelo, 105 sobreviventes marcharam desesperadamente para o sul, até morrerem de frio, escorbuto e inanição. Sir Franklin morrera no dia 11 de junho de 1847. Apenas três corpos congelados foram encontrados.

N
ão restam dúvidas de que havia uma expectativa muito grande quanto ao lançamento do livro do capitão M'Clintock, e é bem possível que o editor, John Murray, tenha condicionado a venda deste livro à compra de outros títulos menos apelativos, como o de Darwin. De fato, foram vendidos todos os 7.600 exemplares de M'Clintock e 1.500 exemplares de Darwin, que corresponderam a 8% do total das vendas da feira. No entanto, Murray tinha apenas 1192 exemplares disponíveis para entrega. A solução foi providenciar uma reimpressão do livro para honrar os negócios feitos no atacado.

A terceira edi
ção do "Origem das espécies" teve que esperar dezesseis meses (abril de 1861) e a quarta apareceu apenas seis anos depois, em dezembro de 1866. Nesse período a venda média do livro foi inferior a oitenta exemplares por mês, o que configura, mesmo para a época, um quadro totalmente diferente daquele de best-seller.

Neste ponto, algu
ém poderá dizer que sucesso de vendas nunca foi parâmetro para convencer a comunidade científica desta ou daquela teoria. Bastaria pensar em Newton, que jamais ganhou um centavo em direitos autorais com o seu "Princípios Matemáticos " nem por isso deixou de influenciar a Física de forma jamais vista antes. Estamos todos de acordo. Resta saber como canalizar a paixão intelectual darwinista."

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Mito desfeito vamos à
fonte:
Nélio Bizzo: "Darwinismo, ciência e ideologia", in: "Perspectivas em Epistemologia e História das Ciências". Universidade Estadual de Feira de Sanatana, p. 138-140.

Aqui a gente mata a cobra e mostra a cobra! ((rs))

É isso!

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