"Teorias obsoletas"


Lavoisier que fez desmoronar o "império" da Flogística

"A verdade surge mais facilmente do erro do que da confusão"
Francis Bacon

Lendo “A Estrutura das Revoluções Científicas", de Thomas Samuel Kuhn, fui impelido a rever alguns de meus conceitos sobre teorias científicas consideradas “ultrapassadas”, "arcaicas", "antiquadas" ou "obsoletas". Por exemplo, discorrendo sobre o desenvolvimento das descobertas no campo da eletricidade, Khun faz algumas considerações que certamente merecem uma boa e séria reflexão. Escreve ele:

“A história da pesquisa elétrica na primeira metade do século XVIII proporciona um exemplo mais concreto e melhor conhecido da maneira como uma ciência se desenvolve antes de adquirir seu primeiro paradigma universalmente aceito. Durante aquele período houve quase tantas concepções sobre a natureza da eletricidade como experimentadores importantes nesse campo, homens como Hauksbee, Gray, Desaguliers, Du Fay, Nollet, Watson, Franklin e outros. Todos seus numerosos conceitos de eletricidade tinham algo em comum - eram parcialmente derivados de uma ou outra versão da filosofia mecânico-corpuscular que orientava a pesquisa científica da época. Além disso, eram todos componentes de teorias científicas reais, teorias que tinham sido parcialmente extraídas de experiências e observações e que determinaram em parte a escolha e a interpretação de problemas adicionais enfrentados pela pesquisa. Entretanto, embora todas as experiências fossem elétricas e a maioria dos experimentadores lesse os trabalhos uns dos outros, suas teorias não tinham mais do que semelhança de família.

Um primeiro grupo de teorias, seguindo a prática do século XVII, considerava a atração e a geração por fricção como os fenômenos elétricos fundamentais. Esse grupo tendia a tratar a repulsão como um efeito secundário devido a alguma espécie de rebote mecânico. Tendia igualmente a postergar por tanto tempo quanto possível tanto a discussão como a pesquisa sistemática sobre o novo efeito descoberto por Gray - a condução elétrica. Outros "eletricistas" (o termo é deles mesmo) consideravam a atração e a repulsão como manifestações igualmente elementares da eletricidade e modificaram suas teorias e pesquisas de acordo com tal concepção. (Na realidade este grupo é extremamente pequeno - mesmo a teoria de Franklin nunca explicou completamente a repulsão mútua de dois corpos carregados negativamente.) Mas estes tiveram tanta dificuldade como o primeiro grupo para explicar simultaneamente qualquer coisa que não fosse os efeitos mais simples da condução. Contudo, esses efeitos proporcionaram um ponto de partida para um terceiro grupo, grupo que tendia a falar da eletricidade mais como um "fluido" que podia circular através de condutores do que como um "eflúvio" que emanasse de não-condutores. Por seu turno, esse grupo tinha dificuldade para reconciliar sua teo¬ria com numerosos efeitos de atração e repulsão. Somente através dos trabalhos de Franklin e de seus sucessores imediatos surgiu uma teoria capaz de dar conta, com quase igual facilidade, de aproximadamente todos esses efeitos. Em vista disso essa teoria podia e de fato realmente proporcionou um paradigma comum para a pesquisa de uma geração subsequente de “eletricistas”.

[...]

“Aquilo que a teoria ao fluido elétrico fez pelo subgrupo que a defendeu, o paradigma de Franklin fez mais tarde por todo o grupo dos eletricistas. Este sugeria as experiências que valeriam a pena ser feitas e as que não tinham interesse, por serem dirigidas a manifestações de eletricidade secundárias ou muito complexas. Entretanto, o paradigma realizou esta tarefa bem mais eficientemente do que a teoria do fluido elétrico, em parte porque o fim do debate entre as escolas deu um fim à reiteração constante de fundamentos e em parte porque a confiança de estar no caminho certo encorajou os cientistas a empreender trabalhos de um tipo mais preciso, esotérico e extenuante. Livre da preocupação com todo e qualquer fenômeno elétrico, o grupo unificado dos eletricistas pôde ocupar-se bem mais detalhadamente de fenômenos selecionados, projetando equipamentos especiais para a tarefa e empregando-os mais sistemática e obstinadamente do que jamais fora feito antes!

[...]

“Os que escreveram sobre a eletricidade durante as primeiras décadas do século XVIII possuíam muito mais informações sobre os fenômenos elétricos que seus predecessores do século XVI. Poucos fenômenos elétricos foram acrescentados a seus conhecimentos durante o meio século posterior a 1740. Apesar disso, em pontos importantes, a distância parece maior entre os trabalhos sobre a eletricidade de Cavendish, Coulomb e Volta (produzidos nas três últimas décadas do século XVIII) e os de Gray, Du Fay e mesmo Franklin (início do mesmo século), do que entre esses últimos e os do século XVI. Em algum momento entre 1740 e 1780, os eletricistas tornaram-se capazes de, pela primeira vez, dar por estabelecidos os fundamentos de seu campo de estudo. Daí para a frente orientaram-se para problemas mais recônditos e concretos e passaram cada vez mais a relatar os resultados de seus trabalhos em artigos endereçados a outros eletricistas, ao invés de em livros endereçados ao mundo instruído em geral. Alcançaram, como grupo, o que fora obtido pêlos astrônomos na Antiguidade, pêlos estudantes do movimento na Idade Média, pela óptica física no século XVII e pela geologia histórica nos princípios do século XIX. Elaboraram um paradigma capaz de orientar as pesquisas de todo o grupo. Se não se tem o poder de considerar os eventos retrospectivamente, torna-se difícil encontrar outro critério que revele tão claramente que um campo de estudos tornou-se uma ciência."

Fonte:

Thomas S. Kuhn: A Estrutura das Revoluções Científicas. Editora Perspectiva. São Paulo, 2006, p.p. 33-35, 39, 42, 43).
Concluindo:
É comum considerarmos teorias já superadas com um certo desdém, vendo-as como mitos sobrepujados pelo progresso. Todavia, não nos esquecemos que foram a partir delas que se chegamos ao patamar de conhecimento em que nos encontramos hoje. Mui provavelmente, daqui a 100 anos (ou bem menos) as pessoas de “lá” terão as mesmas impressões que tivemos, hoje, das teorias do passado, isto porque temos a péssima tendência de não considerarmos os eventos retrospectivamente.


É isso!

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!