A Tirania do Q.I.

São os testes de Q.I. instrumentos eficazes para medir a inteligência de uma pessoa?

Bom. Pessoalmente, tenho uma posição bem definida sobre Q.I...

Se você vir alguém defendendo testes de Q.I. como ferramenta para avaliar inteligência, tenha em alta conta a possibilidade de estar lidando com uma pessoa de verdadeira índole preconceituosa ou racista! Defesa de Q.I. como fator de inteligência me causa mais náusea do que intoxicação alimentar!

Eu queria ver um destes estúpidos medidores de Q.I. tentar imitar, por exemplo, a arte santeira de Ibimirim, as figuras esquálidas de Imburana de Sertânia, as carrancas de Petrolina, os bonecos gigantes de Olinda! Aliás, nem precisa tanto! Bastava apenas vê-los laçar de primeira um bezerro, como fazia seu Louro, um simples roceiro analfabeto lá de Capim Grosso, na Bahia!

A professora-doutora Marisa Eugênia Melillo Meira, do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), é uma das muitas pessoas que questionam seriamente os testes de Q.I. como veículo para medição de inteligência. Disse ela (o link na internet desapareceu):

“Não se mede inteligência. Ela é um processo sempre em construção. O desenvolvimento intelectual vai sendo construído na medida em que se tem condições de desenvolver a intelectualidade e é preciso ter condições para isso. A inteligência é um processo que não termina, dura a vida toda”.

[...]

“Se o teste de Q.I. for aplicado em uma criança que teve várias oportunidades de se desenvolver e em outra que não teve nenhuma, o resultado é diferente. E não dá para dizer que uma criança é mais inteligente que a outra”. Então, na verdade o teste acaba traduzindo entre aspas a desigualdade social. Dá uma desculpa para um problema, explica a desigualdade social como sendo natural, o que não é.”

Numa reportagem realizada com esta professora, ela cita um dos exemplos mais aplicados de testes de Q.I., que consiste em mostrar, por exemplo, um violino e, em seguida, perguntar de que se trata. Se o examinado não sabe a resposta, perde um ponto. Ela então complementa:

“Num teste assim, na verdade está sendo medido quanto cada pessoa teve de acesso a bens culturais. Por que saber o que é violino denota que uma pessoa é mais ou menos inteligente?”.

Já num estudo intitulado “Inteligência abstraída, crianças silenciadas: as avaliações de inteligência”, Maria Aparecida Affonso Moysés (do Departamento de Pediatria Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP) e Cecília Azevedo Lima Collares (Departamento de Psicologia Educacional Faculdade de Educação da UNICAMP) fazem as seguintes e pertinentes considerações sobre o assunto:

“A barreira imposta, cultural e politicamente, às possibilidades de desenvolvimento de crianças normais é que deve ser objeto de análise, na busca de modos de enfrentamento e superação, e não o seu produto - a diferença construída entre crianças - transformado em mais uma justificativa para a desigualdade social.

A desigualdade, as diferenças de possibilidades de pensamento, a barreira imposta enfim, não são fenômenos naturais, não pertencem ao mundo da natureza mas ao mundo dos homens. A naturalização da desigualdade imposta aos homens requer o ocultamento da discriminação racial, social ou de gênero, sob a aparência de conhecimento científico, alicerçado no campo da Biologia, mais especificamente na genética.

A transferência de pressupostos da teoria darwinista - o evolucionismo e a seleção natural - para o entendimento de fenômenos que ocorrem nas sociedades humanas constitui o terreno onde se fundam as teorias que tentam justificar a discriminação entre os homens.

E neste ponto não podemos esquecer que Galton, o idealizador dos testes de inteligência, tinha por objetivo a seleção dos mais capazes para o aprimoramento da espécie humana, em postura explicitamente eugenista; primo de Darwin, Galton é considerado um dos criadores do darwinismo social e até hoje os testes de inteligência fundam-se no eugenismo e no social-darwinismo.

Os testes fundam-se ainda em uma outra concepção, revelada pela necessidade de que a criança faça as tarefas na frente do profissional. Apenas aquela tarefa, elegida pelo pesquisador, e desde que realizada em sua frente, tem valor. Implicitamente, está dito que as informações, da pessoa ou de seus responsáveis, não têm valor para o examinador.

Se a criança não me provar que tem equilíbrio suficiente para andar de bicicleta, não deverei levar em consideração que ela saiba andar de bicicleta. Esta desqualificação das informações - e, por conseguinte, do outro - oculta-se sob a necessidade de objetividade, confundindo o próprio sentido da pretensa objetividade. Por outro lado, esta postura revela novamente os alicerces da Psicologia no pensamento clínico.

Qualquer teste apenas consegue avaliar se a criança possui uma das infinitamente possíveis formas de expressão de uma mesma capacidade. Isto, se a criança quiser demonstrá-lo em uma situação artificial e estressante como é qualquer situação de prova. Nada mais... Não é mais neutro nem mais objetivo do que qualquer outra forma de avaliação.

Mudam os nomes dos testes, os autores, alteram-se pequenos detalhes e mantém-se a essência: apenas uma forma de expressão é passível de consideração. As demais, bem, são as demais... Neste sentido, não vemos diferenças entre os tradicionais testes de Q.I., os testes de psicomotricidade, as provas piagetianas, o exame neurológico evolutivo (ENE, que se propõe a avaliar a maturidade neurológica) e outros.

Ao assumir que as expressões das classes sociais privilegiadas são as superiores, as corretas, o que se está assumindo é uma determinada concepção de sociedade e de homem, fundada na desigualdade e no poder, em que alguns homens são superiores a outros, algumas raças são superiores a outras...

Estes são os pressupostos que subsidiam a elaboração de um instrumento que se pretende neutro, objetivo e, portanto, aplicável a qualquer homem, em qualquer espaço geográfico, temporal e social. Os testes de inteligência, sempre permeados de valores dos grupos sociais dominantes, são divulgados como podendo ser aplicados a qualquer homem, não importa se rico ou pobre, vivendo próximo ao Central Park, em Nova York, ou na zona rural de Sertãozinho.

Estudando em colégio de elite em São Paulo ou sendo filho de bóia-fria, e já cortador de cana... Detalhes como esses, para quem quer acreditar, não são relevantes, pois se está avaliando a inteligência, que transcenderia a própria vida.

O caráter ideológico dos testes de inteligência (e derivados) é nítido, seja pela análise de seu próprio conteúdo, seja pela história de seus usos e consequências. Historicamente, têm servido como elemento a mais para justificar, por um atestado cientificista, uma sociedade que se afirma baseada na igualdade, porém se funda na desigualdade entre os homens.

Entende-se, assim, que a ênfase seja dada ao que a criança não tem, ao que ela não sabe, àquilo que lhe falta. É um olhar voltado para a carência, para a falha da criança. É quase como se a criança, que está sendo avaliada, precisasse se encaixar nas formas de avaliação que o avaliador, supostamente inteligente, conhece.

Daí, os laudos de falta de coordenação motora para quem faz pipa; de falta de raciocínio matemático para feirantes; de falta de ritmo para os que cantam e fazem batucadas... A prova é rígida e previamente estabelecida: se a criança ainda não sabe, não entende a proposta ou não conhece as regras do jogo, é reprovada. A avaliação pode ser vista como uma perseguição ao defeito da criança; sim, pois com certeza o defeito só pode estar localizado nela, já que vivemos em um mundo em que todos pretensamente têm as mesmas oportunidades etc etc."

Para finalizar, vai aqui a advertência do próprio criador dos testes de Q.I., Alfred Binet:

“Realmente, é muito fácil descobrir sinais de retardamento em um indivíduo quando se foi previamente advertido que ele é retardado. Não foi de outra maneira que procederam os grafólogos que, quando se acreditava na culpabilidade de Dreyfus, descobriram em sua escrita sinais de que era um traidor ou um espião”(citado por Stephan Jay Guold, em “A Falsa Medida do Homem”, p. 155).

É isso!


Um comentário:

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