O enigma das espécies

O que é espécie?
"Espécie é um grupo de organismos que se cruzam entre si, mas que estão sexualmente isolados de grupos semelhantes (Mayr), diriam os darwinistas, como se tal definição fosse suficiente para abarcar a questão como um todo. Obviamente que, para seus interesses, é esta a melhor definição, daí essa mania de sempre querer "simplificar" as cousas quando lhe são convenientes. Mas, e as espécies assexuadas, como encaixá-las dentro desta definição? E nos casos de hibridação, como enquadrá-la nesse mesmo conceito?

Bom. Esta dificuldade em se definir espécie é tão velha quanto o interesse do homem por estudar os bichos. Cito, aqui, por exemplo, as opiniões do próprio Charles Darwin e de Thomas Huxley, os quais reconhecem este dilema, embora buscando facilitar as cousas conforme suas crenças gradualistas. Vejamos:

Charles Darwin:
"
Antes de aplicar aos seres organizados vivendo no estado selvagem os princípios que expusemos no capítulo precedente, importa examinar rapidamente se estes últimos estão sujeitos a variações. Para tratar este assunto com a atenção que merece, seria necessário apresentar um longo e árido catálogo de fatos; reservo-os, porém, para uma obra próxima. Nem tampouco discutirei aqui as diferentes definições dadas do termo espécie. Nenhuma destas definições tem satisfeito completamente todos os naturalistas, e, contudo, cada um deles sabe vagamente o que quer dizer quando fala de uma espécie. Ordinariamente o termo espécie implica o elemento desconhecido de um ato criador distinto. É igualmente difícil definir o termo variedade; todavia, este termo implica quase sempre uma comunidade de descendência, posto que possam raramente fornecer-se provas. Temos, igualmente, o que se designa sob o nome de monstruosidades; porém estas confundem-se com as variedades. Quando se emprega o termo monstruosidade, quer-se exprimir, penso eu, um desvio considerável de conformação, ordinariamente nocivo ou pelo menos pouco útil à espécie. Alguns autores empregam o termo variação, no sentido técnico, isto é, como fazendo supor uma modificação que deriva diretamente das condições físicas da vida; ora neste sentido as variações não são susceptíveis de ser transmitidas por hereditariedade" (p. 55).
[...]
"Alguns naturalistas sustentam que os animais nunca apresentam variedades; do mesmo modo atribuem um valor específico à menor diferença, e, quando encontram uma mesma forma idêntica em dois países afastados, ou em duas formações geológicas, afirmam que duas espécies distintas estão ocultas sob o mesmo invólucro. O termo espécie torna-se, neste caso, uma simples abstração inútil, implicando e afirmando um ato separado do poder criador. É certo que muitas formas, consideradas como variedades por críticos muito competentes, têm caracteres que as fazem assemelhar tão bem às espécies, que outros críticos, não menos competentes, as consideram como tais. Mas discutir se é necessário chamá-las espécies ou variedades, antes de ter encontrado uma definição destes termos e que esta definição seja geralmente aceite, é trabalhar em vão" (p. 56).
[...]
"Compreender-se-á depois destas notas, que, segundo a minha opinião, se tem, por comodidade, aplicado arbitrariamente o termo espécie a certos indivíduos que se parecem de perto, e que este termo não difere essencialmente do termo variedade dado às formas menos distintas e mais variáveis. É necessário acrescentar, por outro lado, que o termo variedade, comparativamente ao de simples diferenças individuais, é também aplicado arbitrariamente com o fim de ser mais cômodo" (p. 63, 64).
[...]
"Seremos, mais tarde, obrigados a reconhecer que a única distinção a estabelecer entre as espécies e as variedades bem caracterizadas consiste somente em que se sabe ou se supõe que estas últimas estão atualmente ligadas entre si por gradações intermediárias, enquanto que as espécies deviam tê-lo sido outrora. Por conseguinte, sem deixar de tomar em consideração a existência presente de graus intermediários entre duas formas quaisquer, seremos levados a pesar com mais cuidado a extensão real das diferenças que as separam, e atribuir-lhes um maior valor. É muito possível que formas, hoje reconhecidas como simples variedades, sejam mais tarde julgadas dignas de um nome específico; nesse caso, a linguagem científica e a linguagem ordinária encontram-se de acordo. Em breve, teremos de tratar a espécie da mesma maneira como os naturalistas tratam atualmente os gêneros, isto é, como simples combinações artificiais, inventadas para maior comodidade. Esta perspectiva não é talvez consoladora, mas desembaraçar-nos-emos, pelo menos, de pesquisas inúteis às quais dá lugar a explicação absoluta, ainda não encontrada e encontrável, do termo espécie" (p. 550, 551).

Fonte:
Charles Darwin. "A Origem das Espécies". Lello & Irmão Editores. Porto, 2003.


THOMAS H. HUXLEY

"A hipótese da qual a presente obra do sr. Darwin é tão-somente um perfil preliminar pode ser declarada em sua própria linguagem, conforme segue: "As espécies se originaram por meio da seleção natural: ou da preservação das raças favorecidas na luta pela vida".
Para tornar essa tese inteligível, é preciso interpretar os seus termos: em primeiro lugar, o que é uma espécie? A pergunta é simples, mas a res­posta correta é difícil de ser encontrada, mesmo que apelássemos para aqueles que sabem mais sobre o assunto. A espécie diz respeito a todos os animais ou plantas que descendem de um único par de pais. É o menor e distintamente definível grupo de organismos vivos; uma entidade eterna e imutável; uma mera abstração do intelecto humano sem nenhuma exis­tência na natureza. Esses são alguns dos significados ligados a essa simples palavra que podem ser obtidos de fontes fidedignas, e nada de útil conse­guiremos se deixarmos de lado os termos e as sutilezas teóricas para nos voltarmos aos fatos e procurarmos um sentido para nós mesmos, estudan­do as coisas as quais, na prática, a palavra "espécie" é aplicada, pois a prática varia tanto quanto a teoria. Peça que dois botânicos ou dois zoólogos examinem e descrevam as produções de um país e, certamente, um discordará do outro quanto ao número, limites e definições das espécies junto as quais eles agrupam as mesmas coisas. Nessas ilhas temos o cos­tume de considerar a humanidade pertencendo a uma espécie. Mas, even­tualmente, em um período curtíssimo, podemos nos encontrar em um país no qual teólogos e sábios, pela primeira vez concordando, rivalizam entre si com alto e bom som a afirmação, senão com a convicção de comprovação, de que os homens são de uma espécie diferente e, mais particularmente, que a espécie negra é tão distinta de nossa própria espécie que, na reali­dade, os Dez Mandamentos não têm nenhuma referência a ela. Até na calma região da etimologia, em que, como se isso existisse em qualquer parte deste mundo pecador, a paixão e o preconceito não deveriam afetar a mente, um especialista em coleópteros preencheria dez volumes atraentes com des­crições de espécies suas, das quais nove décimos são imediatamente decla­radas por seu colega como sendo absolutamente nenhuma espécie.
A verdade é que o número distinguível de criaturas viventes supera quase a imaginação. No mínimo, unicamente 100 mil desses tipos de insetos foram descritos e podem ser identificados em coleções, e o número de tipos separáveis de coisas existentes é subestimado em meio milhão. Vendo que a maioria desses tipos óbvios possui suas variedades acidentais e que frequentemente se diferenciam das outras por graus imperceptíveis, pode muito bem ser imaginado que a tarefa de distinguir entre o que seja perma­nente e o que seja variável, o que seja uma espécie ou uma mera variedade, é suficientemente formidável.
Mas não seria possível aplicar um teste por meio do qual uma ver­dadeira espécie possa ser diferenciada de uma mera variedade? Será que não existe um critério para as espécies? Grandes autoridades afirmam que sim - que as uniões de membros da mesma espécie são sempre férteis, enquanto aquelas de diferentes espécies são estéreis ou suas crias, chama­das híbridas, são inferíeis. Afirma-se que este seja um fato experimental, mas que é uma provisão para a preservação da pureza da espécie. Esse critério seria inestimável, porém, infelizmente, não só não é óbvio como aplicá-lo na grande maioria dos casos em que sua ajuda é solicitada, mas também sua validade em geral é decisivamente negada. O Honorável e Reverendo Senhor Herbert, uma confiável autoridade, não apenas afirma, como resultado de suas próprias observações e experiências, que muitos híbridos são tão férteis quanto suas espécies aparentadas, mas também que a específica planta Crinum capense é muito mais fértil quando cruzada com uma diferente espécie do que quando fertilizada por seu próprio pó­len! Por outro lado, o famoso Gaertner, apesar de tomar todos os cuidados no cruzamento de duas espécies de Prímtila (Primrose e Cowslip), somen­te foi bem-sucedido uma ou duas vezes em vários anos. No entanto, é um fato bem determinado, essas duas espécies são tão somente variedades de um mesmo tipo de planta. Casos como o seguinte são bem estabelecidos: a fêmea da espécie A, se cruzada com o macho da espécie B, é fértil; mas se a fêmea da espécie B é cruzada com o macho da espécie A, ela permanece estéril. Fatos desse tipo destroem o valor do suposto critério" (p. 9, 10).

Fonte:
Thomas Henry Huxley. "Darwiniana: A Origem das Espécies em Debate". Tradução: Fulvio Lubisco. Madras Editora. São Paulo, 2006.

É isso!

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!