Humor Darwinista: Momento Literário

Machado de Assis, o mais genial escritor do Brasil:

1 de julho de 1894 - “A Semana” (crônica)

Quinta-feira de manhã fiz como Noé, abri a janela da arca e soltei um corvo. Mas o corvo não tornou, de onde inferi que as cataratas do céu e as fontes do abismo continuavam escan­caradas. Então disse comigo: As águas hão de acabar algum dia. Tempo virá em que este dilúvio termine de uma vez para sempre, e a gente possa descer e palmear a rua do Ouvidor e outros becos. Sim, nem sempre há de chover. Veremos ainda o céu azul como a alma da gente nova. O sol, deitando fora a carapuça, espa­lhará outra vez os grandes cabelos louros. Bro­tarão as ervas. As flores deitarão aromas capi­tosos.
Enquanto pensava, ia fechando a janela da arca e tornei depois aos animais que trouxera comigo, à imitação de Noé. Todos eles aguar­davam notícias do fim. Quando souberam que não havia notícia nem fim, ficaram desconso­lados.
— Mas que diabo vos importa um dia mais ou menos de chuva? perguntei-lhes. Vocês aqui estão comigo, dou-lhes tudo; além da minha conversação, viveis em paz, ainda os que sois inimigos, lobos e cordeiros, gatos e ratos. Que vos importa que chova ou não chova?
— Senhor meu, disse-me um espadarte, eu sou grato, e todos os nossos o são, ao cuidado que tivestes em trazer para aqui uma piscina, onde podemos nadar e viver; mas piscina não vale o mar; falta-nos a onda grossa e as corridas de peixes grandes e pequenos, em que nos co­memos uns aos outros, com grande alma. Isto que nos destes, prova que tendes bom coração, mas nós não vivemos do bom coração dos ho­mens. Vamos comendo, é verdade, mas co­mendo sem apetite, porque o melhor apetite... Foi interrompido pelo galo, que bateu as asas, e, depois de cantar três vezes, como nos dias de Pedro, proferiu esta alocução:
— Pela minha parte, não é a chuva que me aborrece. O que me aborreceu desde o prin­cípio do dilúvio, foi a vossa ideia de trazer sete casais de cada vivente, de modo que somos aqui sete galos e sete galinhas, proporção absoluta­mente contrária às mais simples regras da arit­mética, ao menos as que eu conheço. Não brigo com os outros galos, nem eles comigo, porque estamos em tréguas, não por falta de casus belli. Há aqui seis galos demais. Se os mandássemos procurar o corvo?
Não lhe dei ouvidos. Fui dali ver o elefante enroscando a tromba no surucucu, e o suru-cucu enroscando-se na tromba do elefante. O camelo esticava o pescoço, procurando algumas léguas de deserto, ou, quando menos, uma rua do Cairo. Perto dele, o gato e o rato ensinavam histórias um ao outro. O gato dizia que a his­tória do rato era apenas uma longa série de violências contra o gato, e o rato explicava que, se perseguia o gato, é porque o queijo o perse­guia a ele. Talvez nenhum deles estivesse con­vencido. O sabiá suspirava. A um canto, a lagartixa, o lagarto e o crocodilo palestravam em família. Cousa digna da atenção do filósofo é que a lagartixa via no crocodilo uma formi­dável lagartixa, e o crocodilo achava na lagar­tixa um crocodilo mimoso; ambos estavam de acordo em considerar o lagarto um ambicioso sem génio (versão lagartixa) e um presumido sem graça (versão crocodilo).
— Quando lhe perguntam pêlos avós, obser­vou o crocodilo, costuma responder que eles foram os mais belos crocodilos do mundo, o que pode provar com papiros antiquíssimos e autênticos. . .
— Tendo nascido, concluiu a lagartixa, ten­do nascido na mais humilde fenda de parede, como eu... Crocodilo de bobagem!
— Notai que ele fala muito do loto e do nenúfar, refere casos do hipopótamo, para enganar os outros, mas confunde Cleópatra com o Kediva e as antigas dinastias com o governo inglês. . .
Tudo isso era dito sem que o lagarto fizesse caso. Ao contrário, parecia rir, e costeava a parede da arca, a ver se achava algum calor de sol. Era então sexta-feira, à tardinha. Pareceu-me ver por uma fresta uma linha azul. Chamei uma pomba e soltei-a pela janela da arca. Nisto chegou o burro, com uma águia pousada na cabeça, entre as orelhas. Vinha pedir-me, em nome das outras alimárias, que as soltasse, qual­quer que fosse o risco. Falou-me teso e quieto, não tanto pela circunspeção da raça, como pelo medo, que me confessou, de ver fugir-lhe a águia, se mexesse muito a cabeça. E dizendo-lhe eu que acabava de soltar a pomba, agrade­ceu-me e foi andando. Pelas dez horas da noite, voltou a pomba com uma flor no bico. Era o primeiro sinal de que as águas iam descendo.
— As águas são ainda grandes, disse-me a pomba, rnas parece que foram maiores. Esta flor não foi colhida de erva, mas atirada pela janela fora de uma arca, cheia de homens, por­que há muitas arcas boiando. Esta de que falo, deitou fora uma porção de flores, colhi esta que não é das menos lindas.
Examinei a flor; era de retórica. Nenhum dos animais conhecia tal planta. Expliquei-lhes que era uma flor de estufa, produto da arte humana, que ficava entre a flor de pano e a da campina. Há de haver alguma academia aí perto, concluí, academia ou parlamento.
Ontem, sobre a madrugada, tornei a abrir a janela e soltei outra vez a pomba, dizendo aos outros que, se ela não tornasse, era sinal de que as águas estavam inteiramente acabadas. Não voltando até o meio-dia, abri tudo, portas e janelas, e despejei toda aquela criação neste mundo. Desisto de descrever a alegria geral. As borboletas e as aranhas iam dançando a tarantela, a víbora adornava o pescoço do cão, a gazela e o urubu, de asa e braço dados, voa­vam e saltavam ao mesmo tempo.. . Viva o dilúvio! e viva o sol!

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É isso!

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