Dos primórdios do darwinismo em Portugal

O texto a seguir (“O homem e a theoria de Darwin”), escrito em 1906 (24 anos após a morte de Darwin) pelo português Antonio de Carvalho, muito mais do que refletir a ortografia vigente em Portugal naquele dado momento, revela a influência e o crescimento dos ideais darwinistas nos círculos acadêmicos em todo o mundo nos primórdios do século XX.

Se atentarmos bem para o conteúdo da tese, não será difícil notar que muitos dos conceitos defendidos pelo o autor ainda permanecem atuais no âmbito da teoria evolucionista, em pleno século XXI.Por exemplo:

1. Exaltação ao gênio de Charles Darwin;
2. O transformismo como uma doutrina inabalável;
3. A seleção natural como principal veículo no processo de transformação das espécies;
4. Utilização do lema do tipo: “strugle for life”, “luta pela vida”, “bellum omnium contra omnes” etc.

Um outro aspecto que também prende a atenção no texto, diz respeito à crença na hereditariedade dos caracteres, da forma como pensava Lamarck e o próprio Darwin. Lembrando que o autor de “A Origem das Espécies” elaborou sua própria teoria da hereditariedade (chamada Pangênese), no mesmo instante histórico em que o monge
Gregor Johann Mendel trazia à tona as leis fundamentais da genética.

Mas, vejamos o que andou escrevendo o “nosso irmão” Antonio Carvalho:

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"Embora antes de Charles-Robert Darwin, alguns biologistas tivessem já amontoado factos em abono d'esta these, é certo que foi Darwin, celebre biologista inglez, a intelligencia lúcida que reunindo todos os factos conhecidos, organisou com bases scientificas seguras e com um critério inabalável, a hypothèse das transformações, dos individuos ou antes, das espécies.

Como se chegava a estas transformações ? Era em primeiro logar, por meio da selecção natural, consequência forçada do meio, do regimen e de varias outras causas : em segundo logar, por meio da hereditariedade das modificações produzidas que era de resto, o principal sustentáculo da selecção.

Mas façamos em poucas palavras, um resumo da hypothèse de Darwin. As leis fundamentaes, leis claramente d'observação que lhe servem de base, são as seguintes : a lei da reproducção, lei geral que depende sobretudo da grandeza do animal e do seu género de vida ; a lei da hereditariedade, exarando a hereditariedade dos caracteres adquiridos e a hereditariedade na epocha correspondente ; a lei das correlações de crescimento, admittindo que as modificações de um órgão arrastam parallelamente a modificação d'outros órgãos ; a lei do augmento das espécies e dos alimentos, mostran-do-nos que a primeira se faz em progressão geométrica quando a segunda se faz em progressão arithmetica ; a lei da constância das formas na razão directa da simplicidade de estruetuta que diz que quanto mais simples ê a estruetura de um ser, mais constante é a sua forma e a sua organização.

Tendo sempre em vista estas leis e observando o que se passa na natureza, vê-se que a vida é uma lueta constante que Darwin chama com uma admirável penetração, strugle for life, lueta pela vida, concorrência vital, bellum omnium contra omnes.

N'esta lueta, combate-se contra o clima, para a acquisição dos alimentos, para a acquisição das fêmeas.
Alguns seres morrem na lueta, outros emigram, outros sobrevivem, bastando para isto qualquer causa ou circumstancia vantajosa na lucta.
Esta circumstamcia poderá então exaggerar-se e o sêr adapta-se ao meio.
D'aqui resulta portanto uma escolha dos melhor adaptados ao. meio correspondente : é a «selecção natural ».
Da selecção natural resulta de um lado, a desapparição de certas espécies, do outro a formação de espécies novas, ficando assim explicada a existência de órgãos rudimentares, umas vezes de grande importância, outras vezes sem qualquer valor physiologico.
Eis ahi o resumo da hypothèse de Darwin.
Porém Darwin admittindo as transformações dos individuos e das espécies, fundado em numerosas experiências feitas sobre pombos, via-se forçado a considerar como sua causa muitas vezes única, a apparição de uma espécie de monstruosidade, no corpo do sêr que depois por hereditariedade, com o concurso da selecção natural ou artificial, originava um órgão novo na espécie. E' certo que elle deixa bem patente na sua sublime obra intitulada « Origem das Espécies » que muitas vezes a simples influencia do meio exterior, na lucta pela vida, é sufficiente para produzir qualquer modificação orgânica, essência da adaptação, que depois se accumula nos descendentes, dando logar a elementos novos na espécie correspondente.
Darwin diz mais que o lançar mão d'aquellas verdadeiras monstruosidades, é um meio de encobrir em geral a ignorância do verdadeiro inicio de uma certa modificação. Fa-1'o por necessidade e não por convicção.
Segundo o meu modo de vêr, é esta a interpretação que na verdade se deve dar do facto. O inicio seguro das causas minimas escapa-nos des-graçamente em geral.
Mas é lógico imputar á influencia do-meio, na mais lata acepção do termo, a producção d'estas variações quantitativas ou qualitativas que mais tarde se podem transmittir por hereditariedade.
Desde já fica então dito que Darwin admittia assim a transmissão dos caracteres adquiridos sob a influencia do meio e outrosim que essa transmissão, era a principal causa da selecção que assim os fixava.
E' certo que recentemente, uma escola nova, a dos Neodarwinistas, assenta arraiaes exclusivamente no domínio do acaso, das monstruosidades, sendo assim o organismo, o único elemento activo das variações.
E' a phalange á frente da qual se encontrou Weissman, Huxley e tantos outros biologistas distinctos.
Em relação com esta maneira de vêr, surgiu uma theoria da hereditariedade, a theoria do Plasma germinal de Weissman que vendo o plasma germinativo, parte reproductora do sêr, como um noli me tangçre, em face do soma, parte cons-tituitiva do corpo do sêr, não concorda com a transmissão dos caracteres adquiridos. Transportada para a hypothèse do transformismo, -a, influencia do meio exterior nas variações orgânicas, é assim posta á margem por aquelles biologistas.
A theoria das «Causas actuaes» de Delage, en-contra-se no mesmo campo.

Com effeito, ella admitte que as variações que se vão produzindo n'um individuo, são um effeito de causas actuaes que o vão modificando successivamente.
Mas que mysterio é esse que faz com que as mesmas causas se ordenem sempre do mesmo modo, para produzirem os mesmos effeitos ? ! .. .”


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É isso!

Fonte:
Antonio de Carvalho: “O homem e a theoria de Darwin”. (Dissertação inaugural apresentada á ESCOLA MEDICA DO PORTO). TYP. DA EMPREZA "ARTES & LETTRAS,. 2 — Rua da Fabric» —10. PORTO, 1906.
Divulgado em: Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal.

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