A estrutura das revoluções científicas , segundo Kuhn

"Na Estrutura, Kuhn afirm a que a ciência normal é a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações do passado. Tais realizações são reconhecidas durante certo período de tempo por uma comunidade científica e fornecem os fundamentos para sua prática científica atual. Os manuais científicos, elementares e avançados, apresentam estes fundamentos através do corpo da teoria aceita, da ilustração de muitas de suas aplicações bem sucedidas e comparam essas aplicações com as observações e experiências exemplares. Antes do século XIX, quando os manuais se tornaram populares, os clássicos da ciência realizavam uma função semelhante, como, por exemplo, os Principia e a Optica de Newton (cf. Kuhn, 2006a, p. 29-30). Segundo Kuhn, essas obras partilhavam duas características em comum: suas realizações foram suficientemente sem precedentes, atraindo grupos de partidários, e tais realizações eram suficientemente abertas, permitindo a resolução posterior de problemas científicos (cf. Kuhn, 2006a, p. 30).

As realizações científicas que compartilham essas duas características são, a partir deste ponto da Estrutura, denominadas “paradigmas”, termo que est profundamente relacionado com a ciência normal. Os paradigmas, segundo Kuhn, são padrões aceitos na prática científica real de uma comunidade científica, inclusive as leis, as teorias, a aplicação e a instrumentação, sendo, portanto, o modelo para as tradições coerentes e específicas de pesquisa. São exemplos de paradigmas as tradições de pesquisa científica que costumam ser referidas pelos historiadores da ciência com denominações tais como “astronomia ptolomaica” ou “copernicana”, “din mica aristot lica” ou “ newtoniana”, “óptica corpuscular” ou “ ondulatória”. Por tratar de elementos tão fundamentais da prática científica, é a formação e o treino recebidos segundo o paradigma de determinada época que autoriza o estudante a fazer parte da comunidade científica específica, reunindo -se a outros cientistas que também aprenderam as bases da sua atividade a partir dos mesmos modelos. Por esse motivo, os cientistas estão comprometidos com as mesmas regras e padr es de pr tica científica: “Esse comprometimento e o consenso aparente que produz são pré-requisitos para a ciência normal, isto é, para a gênese e a continuação de uma tradi ão de pesquisa determinada” ( cf. Kuhn, 2006a, p. 30).Kuhn, antes de entrar em uma discussão mais abstrata sobre os paradigmas, o que será desenvolvido no capítulo 4 da Estrutura, aborda alguns exemplos de ciência normal, descrevendo paradigmas em atividade. O primeiro exemplo que aborda é o da óptica física:

Os manuais atuais de física ensinam ao estudante que a luz é composta de fótons, isto é, entidades quântico-mecânicas que exibem algumas características de ondas e outras de partículas. A pesquisa é realizada de acordo com esse ensinamento, ou melhor, de acordo com as caracterizações matemáticas mais elaboradas a partir das quais é derivada esta verbalização usual. Contudo, essa caracterização da luz mal tem meio século. Antes de ter sido desenvolvida por Planck, Einstein e outros no começo do século XX, os textos de física ensinavam que a luz era um movimento ondulatório transversal, concepção que em última análise derivava dos escritos ópticos de Young e Fresnel, publicados no início do século XIX. Além disso, a teoria ondulatória não foi a primeira das concepções a ser aceita pelos praticantes da ciência óptica. Durante o século XVIII, o paradigma para este campo de estudos foi proporcionado pela Óptica de Newton, a qual ensinava que a luz era composta de corpúsculos de matéria. Naquela época os físicos procuravam provas da pressão exercida pelas partículas de luz ao colidir com os corpos sólidos, algo que não foi feito pelos primeiros teóricos da concepção ondulatória (Kuhn, 2006a, p. 31-2).

Uma análise historiográfica kuhniana destes eventos históricos da óptica física apontariam, como Kuhn destacou, que essas mudanças no paradigma da óptica são revoluções científicas e que este é o padrão usual de desenvolvimento de uma ciência amadurecida. Voltaremos a falar do conceito de ciência madura mais adiante, ainda neste item. O que segue como conclusão da análise de Kuhn é que este não foi o padrão usual de desenvolvim ento deste campo da física no período anterior à óptica newtoniana e é este contraste que Kuhn quer explorar:

Nenhum período entre a Antiguidade remota e o fim do século XVII exibiu uma única concepção da natureza da luz que fosse geralmente aceita. Em vez disso havia um bom número de escolas e subescolas em competição, a maioria das quais esposava uma ou outra variante das teorias de Epicuro, Aristóteles ou Platão. Um grupo considerava a luz como sendo composta de partículas que emanavam dos corpos materiais; para outro, era a modificação do meio que intervinha entre o corpo e o meio; um outro ainda explicava a luz em termos de uma interação do meio com uma emanação do olho; e haviam outras combinações e modificações além dessas. Cada uma das escolas retirava forças de sua relação com alguma metafísica determinada. Cada uma delas enfatizava, como observações paradigmáticas, o conjunto particular que sua própria teoria podia explicar melhor (Kuhn, 2006a, p. 32).

Segundo uma perspectiva que leve em consideração os paradigmas atuais como científicos, é possível afirmar , apoiando-nos no mesmo exem plo da óptica física, que apenas a teoria que define a luz como uma entidade quântico-mecânica estaria correta e, portanto, somente ela pode ser considerada verdadeiramente como ciência. Por consequência, as contribuições anteriores, sejam àquelas oriundas das escolas e subescolas da Antiguidade ou mesmo a óptica newtoniana, seriam teorias superadas, não devendo ser objeto da consideração do cientista que, por exemplo, paute sua atividade na mecânica quântica. Porém, analisando este exemplo da óptica física à luz da nova historiografia da ciência proposta por Kuhn, consideramos, por dois motivos principais, este tipo de interpretação de que apenas a teoria quântico-mecânica é ciência como sendo demasiado distante do que de fato ocorreu na história da óptica física. Em primeiro lugar, Kuhn afirma que as contribuições anteriores à óptica quântico-mecânica de Plank e Einstein, ou seja, a corpuscular de Newton, apresentada no século XVIII, e a ondulatória de Young e Fresnel do século XIX, são científicas, pois tornaram-se modelos paradigmáticos para os pesquisadores da época em que foram apresentadas, apesar de não serem mais os guias para a prática científica atual. Em segundo lugar, as escolas da Antiguidade não formaram um acordo entre as diversas perspectivas teóricas sobre a natureza da luz defendidas, o que, na nova historiografia da ciência proposta por Kuhn, é elemento necessário para a identificação de que entre eles ocorria uma prática científica. Portanto, no caso das escolas e subescolas da Antiguidade, cada qual estava comprometida, afirma Kuhn, com certa definição da luz, com uma metafísica determinada e, além disso, utilizavam conjuntos particulares de observações paradigmáticas. Esta diferença de tratamento entre contribuições teórico-científicas anteriores e posteriores à óptica newtoniana requerem a explicação de outros aspectos da filosofia da ciência kuhniana, especialmente no que concerne à elucidação do significado dos períodos pré-paradigmático e paradigmático em que uma dada ciência pode se encontrar ao longo do seu desenvolvimento, bem como sobre o significado atribuído por Kuhn à ciência madura.

Kuhn caracteriza o período pré-paradigmático e o paradigmático de modo comparativo, pois, em virtude do desenvolvimento histórico a que este autor supõe estarem submetidas às ciências, cabe ao historiador, entre outras atividades, a de identificar o momento em que surge uma nova ciência, o que se dá justamente na passagem do período pré-paradigmático ao paradigmático com a aquisição do primeiro paradigma por um determinado campo científico. Desta maneira, tendo como marco o primeiro paradigma, a ciência que o conquistou transita para o período paradigmático de desenvolvimento. Mas, anterior a esta fase, encontra-se outra, o chamado período pré-paradigmático. Este período é caracterizado por Kuhn pela competição entre diferentes escolas, cada qual definindo e justificando os fundamentos da atividade científica a cada novo passo que queiram dar em sua pesquisa."

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É isso!


Fonte
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Débora de Sá Ribeiro Aymoré: “O modelo de historiografia da ciência kuhniana: da obra A estrutura das revoluções científicas aos ensaios tardios”. (Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Filosofia sob a orientação do Prof. Dr. Maurício de Carvalho Ramos. São Paulo, 2010.

Nota
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O título e a imagem não se incluem na referida tese.

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