Georges Cuvier e Saint-Hilaire: polêmicas paleontológicas

"A interpretação teórica dos achados fósseis atinge um ponto de inflexão crítico no final do século XVIII e começo do século XIX. A relação entre os fósseis e as formas vivas é dis cutida com nova ênfase, e a questão da extinção ganha novas proposições, estabelecendo-se como fato científico. A dois fatores pode ser creditada essa grande mudança na interpretação dos fósseis: o avanço na exploração e conhecimento sobre áreas anteriormente isoladas na África, América do Sul e Oceania e o desenvolvimento da anatomia comparada aplicada ao estudo de fósseis por Georges Cuvier, sobretudo em relação aos grandes vertebrados. Enquanto os estudos sobre fósseis se concentraram em invertebrados marinhos, não era evidente que alguma espécie pudesse estar completamente extinta, devido ao pequeno conhecimento do ambiente marinho. Entretanto, como negar a ausência entre os animais vivos de grandes vertebrados terrestres encontrados como formas fósseis?

O estabelecimento da extinção como fato científico por parte de Cuvier envolveu a discussão da posição taxonômica de vários espécimes fósseis, entre elas a preguiça gigante do Paraguai, os elefantes de Ohio e da Sibéria, os rinocerontes encontrados na Alemanha e também na Sibéria, o urso da caverna e os répteis da Normandia e de Maastricht.

O interesse de Cuvier pela paleontologia, disciplina que ele ajudou a fundar, começa cedo em sua carreira, e começa com um grande sucesso na solução de um problema de classificação de um animal fóssil encontrado na Holanda. O animal desconhecido de Maastricht foi descoberto entre 1770 e 1774 e confiscado quando os franceses tomaram a cidade em novembro de 1794. O exemplar fóssil chegou a Paris em 1795, ao mesmo tempo em que Cuvier começava a trabalhar no Muséum National d'Histoire Naturelle. As primeiras tentativas de classificar o animal voltaram-se para espécies vivas ou algo muito próximo disso. O fóssil foi considerado um crocodilo e depois um cetáceo, sendo finalmente identificado por Adrian Camper, um anatomista holandês, como um lagarto varanóide marinho gigante. Essa última identificação foi confirmada por Cuvier, fazendo uso de anatomia comparada. O animal recebeu o nome definitivo Mosasaurus hoffmanni Mantell, em 1859 e foi um elemento de documentação incontestável de extinção de uma espécie de grande vertebrado (cf. BARDET et al, 1996).

Ao contrário do caso do fóssil de Maastricht, a identificação de outros répteis fósseis encontrados em Caen, Honfleur e Le Havre, na Normandia, foi bem mais problemática para Cuvier. O primeiro fóssil foi encontrado em uma pedreira da vila Allemagne, próximo de Caen, por Jacques Armand Eudes Deslongchamps, em 1817, e foi descrito por Félix Lamouroux, um aluno de Lamarck, nesse mesmo ano. Em seguida, em 1822 outro espécime foi encontrado em uma pedreira próxima, em
Quilly. Cuvier descreveu esses animais como pertencendo ao gênero dos gaviais (crocodilos do Ganges). Ainda outros dois espécimes, diferentes dos primeiros foram encontrados em Honfleur e Le Havre, pouco tempo depois e suas descrições constaram da segunda edição, de 1825, das Pesquisas sobre ossadas fósseis, de Cuvier. Novamente, os animais foram classificados por Cuvier como pertencendo ao gênero Gavialis. Enquanto na descrição do animal de Caen, Cuvier procurou ressaltar as diferenças em relação aos gaviais vivos, negando que essas diferenças fossem transformações entre variedades de uma mesma espécie, na discussão dos animais de Honfleur e de Le Havre, ele vai além, atacando diretamente as hipóteses transformistas.

Poderiam todas as outras causas juntas [idade, nutrição, clima, passagem ao estado petrificado] terem sido capazes de colocar adiante a convexidade que os outros crocodilos têm atrás de suas vértebras? Poderiam elas ter mudado a origem dos processos transversos, achatado as margens das órbitas, diminuído ou aumentado o número de dentes e assim por diante? Isso é o mesmo que dizer que todas as nossas espécies vivas provieram umas das outras
(CUVIER apud GUYADER, 2004, p. 90).

Há um esforço explícito de Cuvier para impedir que a interpretação desses achados fósseis se faça no campo de alguma teoria transformista. A redação das descrições de Cuvier é estranhamente vaga e ambígua no que se refere a esses animais. Ele procura estabelecer sua diferença em relação aos crocodilos vivos e ao mesmo tempo eliminar qualquer noção de continuidade entre as espécies. Há uma preocupação subjacente de que a classific ação desses fósseis pudesse dar apoio a uma ordenação de relações de descendência entre os fósseis e os crocodilianos atuais, com alguma espécie como intermediária de um processo transformista.

Suas precauções não foram suficientes, pois no mesmo ano de 1825, na edição de número três das Mémoires du muséum d'histoire naturelle, Étienne Geoffroy Saint-Hilaire publica um texto abertamente transformista, que inaugura a paleontologia evolutiva e contém sua revisão da análise e classificação dos crocodilos fósseis. O longo título desse trabalho é auto-explicativo Pesquisas sobre a organização dos Gaviais: sobre suas afinidades naturais, das quais resulta a necessidade de uma outra distribuição genérica, Gavialis, Teleosaurus e Steneosaurus; e sobre essa questão, se os Gaviais (Gavialis), atualmente espalhados pelas partes orientais da Ásia, descendem, por via não interrompida de geração dos Gaviais antediluvianos, seja dos Gaviais fósseis, ditos Crocodilos de Caen (Teleosaurus), seja dos Gaviais fósseis de Havre e de Honfleur (Steneosaurus) Saint-Hilaire defende simultaneamente o transformismo e o anticatastrofismo ao propor a descendência por via de geração não interrompida entre espécies extintas e vivas. Os próprios nomes que Saint-Hilaire propõe para os novos gêneros significam uma relação filética entre eles: “Para mostrarmos esses animais em uma ordem natural, devemos dizer dos répteis de Honfleur que eles seguem o gênero Crocodilia a alguma distância, e do Teleosaurus que ele deve preceder imediatamente esse gênero” (SAINT-HILAIRE apud GUYADER, 2004, p. 93).

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É isso!

Fonte:
Marcelo Alves Ferreira: “TRANSFORMISMO E EXTINÇÃO: DE LAMARCK A DARWIN”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Pablo Rubén Mariconda. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO - FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE FILOSOFIA. São Paulo, 2007.

Nota:

O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.

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