O “poder” da medicina mental

Assim, o poder de fogo da psiquiatria, já intuía Machado de Assis, é como o de um bacamarte que se volta contra comportamentos condenados pela moral das elites, contra procedimentos definidos como anti-sociais, contra loucuras identificadas pelo critério da improdutividade de seu portador, contra todo tipo de conduta que fugisse aos padrões e normas definidas como boas pela ciência.” (CUNHA, 1990, 30)

Reconhecida como uma especialidade médica legítima, a medicina mental tinha seu objeto consolidado, a alienação, e seu espaço de atuação definido, o asilo. A construção da loucura, enquanto objeto de gerência médica exclusivo da psiquiatria, bem como a determinação do asilo como o espaço exclusivo de tratamento para a loucura, concedeu à medicina mental poderes sobre o reconhecimento e a gestão de indivíduos sofredores de moléstias mentais. A instituição hospitalar era então um reflexo de seu poder, de forma que ordem e disciplina eram palavras fundamentais na estrutura que possibilitava seu funcionamento. O asilo era o primeiro e o grande espaço de manifestação do poder da medicina mental sobre a doença e os indivíduos sofredores, no qual ambos deveriam curvar-se às regras de tratamento a fim de obter a reeducação e restabelecimento moral e físico da sanidade, devolvendo os pacientes a um estado normal (FOUCAULT, 2006).

Objetivando o saneamento mental da sociedade, não de uma forma rígida e sólida, mas na fluidez de expectativas ávidas, a medicina mental acreditava no seqüestro hospitalar como um mecanismo de cura e com isso praticava-o e defendia-o, enquanto método mais eficaz de prática terapêutica. O hospício para esta medicina ainda não se configurava como um arquétipo institucional de tratamento, por isso mesmo eram constantes os apelos e denúncias feitas às autoridades governantes quanto a melhorias infra-estruturais do espaço.

Nesse cenário surgia uma polaridade não explícita entre os interesses médicos e os governamentais quanto ao destino e trajetória dos pacientes na instituição. De um lado a medicina mental cobrava maiores e mais eficientes espaços de tratamento, com a criação de novos estabelecimentos de tratamento e com a implementação de outras alternativas terapêuticas. Tudo isso pautado em intensas pesquisas e discussões acaloradas que interrelaci onavam experiências nacionais e estrangeiras. Enquanto isso, por outro lado, o Estado raramente atendia às expectativas médicas e, quando o fazia, era de forma incipiente.

Apesar do processo de consolidação da medicina mental como especialidade médica reconhecida e requisitada, e exclusiva para seu campo de atuação, o poder e influência da medicina na sociedade foi ampliando-se de forma gradativa, permanecendo muitas vezes ainda restrito aos seus espaços de atuação e oratória particular. Embora em certos momentos o Estado brasileiro, no início do século XX, tenha rendido louros e concedido poderes significativos à medicina, o campo da medicina mental nunca chegou a gozar de autonomia político-administrativa quanto à gestão da loucura na capital carioca.

Duas formas de poder estavam estabelecidas então: o poder que incidia sobre os indivíduos sociais que passavam a compor seu quadro de pacientes e mesmo os que poderiam ser membros em potencial; e o poder político da medicina, que nunca chegou a representar uma corrente verdadeiramente forte. Mesmo que Teixeira Brandão como médico-político tenha conseguido importantes conquistas, a medicina mental no Brasil nunca possuiu uma estrutura rígida de polícia médica nos moldes franceses, o que nos leva a questionar as estruturas apresentadas por alguns autores, como Roberto Machado (1979). O poder e desenvolvimento conferido à medicina social no Brasil, em algumas análises, como apresentado nos trabalhos de Machado (1979), devem ser lidos com certo cuidado, embora isto não signifique desconsiderar estudos como estes, que foram exemplares para o campo da história da medicina mental no país.

Desejamos aqui destacar dois pontos reflexivos importantes em relação à análise do poder da medicina mental brasileira. O primeiro é relativo a seu pilar de sustentação. Esta medicina se sustentava na designação da loucura como fenômeno patológico, construindo seu objeto científico sobre a oposição do normal. Assim a construção do patológico pela medicina mental, refugiada nas construções estrangeiras, seguiu a linha defendida por Canguilhem (1990) acerca da medicina geral, na qual as manifestações biológicas e sintomatológicas apropriadas pela medicina como patologias clínicas a serem estudadas, eram formatadas de acordo com os desvios sucedidos dos comportamentos normais. Uma passagem de Juliano Moreira ilustra bem essa estrutura de pensamento quando afirmou que:

As doenças não são seres de caracteres fixos, definidos e permanentes. A doença, como desvio que é da normalidade, é uma excepção biológica, e as vezes as exceções timbram em ser dissimilhantes. Demais, a doença, encarada como entidade, é uma abstração do espírito humano.” (Moreira, 1919, p.94)

O segundo ponto a ser destacado referenda-se à medicina social. Ainda que as aspirações científicas da medicina mental pudessem nos apontar anseios relativos ao saneamento social de espaços e indivíduos, esta compreensão não pode ser tomada por um ângulo megalomaníaco, rígido ou restrito. A amplitude de tais possibilidades deve ser percebida sob a forma de inclinações que se associavam com fenômenos e condições sócio-culturais específicas. Queremos dizer com isso que não podemos encarar desejos científicos pela ótica de uma supremacia hegemônica sobre os meandros sociais que os cercavam. A família, por exemplo, era neste momento a grande instituição social brasileira. Era ela quem detinha o poder e o controle sobre o comportamento de seus membros (COSTA, 1999). Assim, devemos considerá-la como uma oclusão significativa para um desenvolvimento mais efetivo de uma medicina social despótica, definida por um poder de polícia médica. As estruturas sociais brasileiras não só balizavam as ações da medicina, como representavam os limites periféricos de gerência da medicina mental no Brasil.

Mobilizados pela leitura dos relatórios de médicos e diretores da instituição psiquiátrica, somos levados a crer que pretensões tão retesadas não se configuravam como restritos objetivos da medicina. O conteúdo e a redação dos relatórios nos indicam que os anseios da medicina mental apontavam muito mais para preocupações científicas do que para obtenção de poderes pujantes sobre a sociedade. A tensão entre poder médico e estatal residia exatamente na insistência do primeiro em lograr êxito nos tratamentos científicos, independente dos indivíduos que os manifestassem. A distinção deveria ser terapêutica, o que em certa medica incluía o social, mas não se restringia a isto.

Contudo, a emergência da medicina social como um novo modelo deve ser entendida como um elemento de fundamental importância para a compreensão da estrutura da psiquiatria brasileira. A teoria da degenerância de Morel representou um dos subsídios teóricos para proposições sócio-intervencionistas, no sentido de que determinadas manifestações de loucura poderiam ser contidas em longo prazo por meio de educação e ordenação moral das populações mais sujeitas à degeneração moral por conta de suas precárias condições de vida. Notamos nesse tipo de formação discursiva uma incidência pontual por ações sobre populações socialmente marginalizadas, desfavorecidas, e esse era exatamente o tipo de discurso que combinava com as proposições do Estado brasileiro, ansioso por civilizar sua população e seus espaços sociais (CUNHA, 1990).

Portanto, a relação entre o poder médico e o poder estatal não pode ser vista unicamente sob o prisma de tensões. Contrariamente, tem de ser entendida ainda em sua relação de consonância, que pode ser apontada como uma das grandes responsáveis pelas conquistas e crescimentos da medicina mental no contexto de assistência sanitária do Brasil. As inconformidades entre o poder da medicina mental e o poder político do Estado Brasileiro não desqualificavam o trabalho da medicina, tampouco o método por ela escolhido, apenas trazem-nos questionamentos sobre sua real eficácia diante de tal cenário e em meio a tais tensões.

Devemos acima de tudo reconhecer a importante contribuição que a associação com o poder estatal trouxe à medicina, uma vez que foi por meio desta que ela conseguiu legitimar-se no cenário intelectual como um campo autônomo e representativo da saúde, distinguindo-se dos demais domínios intelectuais que também assistiam de alguma forma o poder estatal. A medicina social foi a via de acesso pela qual a medicina pôde inserir-se no contexto político-social brasileiro, pois seu arcabouço ideológico servia de bases teóricas para um projeto estatal de regeneração e progresso social.

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É isso!

Fonte
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LOURENCE CRISTINE ALVES: “O HOSPÍCIO NACIONAL DE ALIENADOS: Terapêutica ou higiene social?” (Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre. Área de concentração: História das Ciências Orientadora: Profª. Drª. Mª Rachel de G. Fróes da Fonseca). Rio de Janeiro, 2010.

Nota
:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.

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