Nietzsche e Darwin: a "luta" continua

Em seu livro “Nietzsche das forças cósmicas aos valores humanos”, Scarlett Marton aborda largamente a questão envolvendo os conceitos de “luta” do filósofo Friedrich Nietzsche e do naturalista Charles Darwin. Ao que é sabido, Nietzsche fora um crítico ferrenho dos ideais de “luta pela existência”, como conceberam os baluartes da corrente evolucionista. Em seu “A Vontade de Potência”, por exemplo, essa crítica se aparece de forma até contundente.

Mas, vejamos um pouco o que Marton tem a dizer sobre a polêmica:

TRECHO 1:
“Estendendo a teoria de Malthus ao reino animal, Darwin sustentou que os meios de subsistência aumentavam em proporção menor que os animais, o que levava a desencadear-se entre estes o combate. Entendeu assim a luta pela existência como luta pela subsistência, vinculando-a à necessidade de autoconservação. Num aforismo intitulado Anti-Darwin, Nietzsche escreve: “no tocante ao célebre ‘combate pela vida, ele me parece às vezes mais afirmado que provado. Ocorre, mas como exceção; o aspecto global da vida não é a situação de indigência, a situação de fome, mas antes a riqueza, a exuberância, e até mesmo o absurdo esbanjamento — onde se combate, combate-se por potência... “ (p. 42).

TRECHO 2:
Este não é o único ponto que distingue a idéia darwiniana e a concepção nietzschiana de luta. O filósofo entende que a vontade de potência, exercendc-se em cada ser vivo microscópico que constitui o organismo, leva a deflagrar-se o combate entre todos eles. Atuando num elemento, encontra empecilhos nos que o
cercam, mas tenta submeter os que a ela se opõem e colocá-los a seu serviço. Necessita de obstáculos que a estimulem, precisa de resistências para que se manifeste, requer oponentes para exercer-se. Cada elemento quer prevalecer na relação com os demais e desafia todos eles; a precedência, todavia, não se confunde com supremacia, nem o combate com extermínio. Para que ocorra a luta, é preciso que existam antagonistas; e, como ela é inevitável e sem trégua ou termo, não pode implicar a destruição dos beligerantes. Surge aqui mais um elemento da concepção nietzschiana de vontade de potência: seu caráter agonístico. Graças a ele, a luta, que se desencadeia entre os múltiplos elementos em que atua a vontade de potência, diferencia-se radicalmente da struggle for life” (p. 43).

TRECHO 3:
No conceito de vontade de potência, as duas noções serão sub-sumidas. Se nele reaparece a idéia darwiniana de concorrência vital, ela vai na direção oposta à do próprio Darwin: não se justifica pela necessidade de autoconservação mas aponta para a superabundância da vida. Aliás, é à Abundanztheorie de Rolph que o filósofo recorre para criticar o darwinismo. Tanto é que contrapõe ao combate pela vida, ditado pela autoconservação, e à situação de penúria, criada pela inferioridade da multiplicação dos meios de subsistência em relação à dos animais. Ha riqueza, a exuberância e até mesmo o absurdo esbanjamento” (Cl, Incursões de um extemporâneo, § 14). E conclui que “a luta pela existência é apenas uma exceção, uma provisória restrição da vontade de viver: a grande e pequena luta voltam-se, em toda parte, para a preponderância, o crescimento e a expansão, a potência, conforme a vontade de potência, que é justamente vontade de vida” (p. 43, 44).

TRECHO 4:
“Se o distanciamento em relação à doutrina de Darwin já se faz sentir no segundo período da obra, certamente acentua-se no terceiro. Nietzsche abandona tanto a idéia de que a lei de seleção natural poderia aplicar-se aos problemas das ciências do espírito quanto a de que as naturezas degenerantes contribuiriam para o progresso espiritual da comunidade. Retomando de forma mais elaborada e veemente a crítica ao darwinismo, passa a operar em outro registro. Se, no conceito de vontade de potência, mantém a idéia darwiniana de concorrência vital, em vez de justificá-la pela necessidade de autoconservação, aponta para a superabundância da vida. Se conserva também a idéia de luta, entende que se desencadeia entre os múltiplos elementos em que atua a vontade de potência e não apenas entre os seres vivos e, o mais importante, em vez de implicar o aniquila-mento dos adversários, reveste-se de caráter agonístico. “Vejo todos os filósofos”, declara, “vejo a ciência de joelhos diante da realidade de uma luta pela existência às avessas, tal como ensina a escola de Darwin, ou seja, vejo por toda parte imporem-se os que sobrevivem, os que comprometem a vida, o valor da vida. — O erro da escola de Darwin tomou-se para mim um problema: como se pode estar cego a ponto de não ver isso” (p. 44, 45).

TRECHO 5:
“Ao criticar a idéia de adaptação, no terceiro período da obra, o filósofo poderia estar visando indiferentemente Darwin, Spencer e até Lamarck, embora em momento algum o ataque. Aliás, na vontade de potência enquanto vontade orgânica, a noção de “potência modiadora, que do interior cria formas”, presente em alguns textos, traz ressonâncias da idéia lamarckiana de energia interna dos seres vivos tentando vencer o meio depois de explorá-lo. Mas seria possível congregar Lamarck, Darwin e Spencer em torno da idéia de adaptação — seja porque as variações biológicas resultantes do exercício de uma necessidade interna ocorreriam sempre no sentido de uma adaptação melhor (Lamarck), seja porque a formação contínua de novas espécies se caracterizaria por novos meios de adaptação (Darwin), seja porque a adaptação às condições do meio representaria o bem almejado pelo ser humano (Spencer). “Põe-se em primeiro plano a ‘adaptação’, isto é, uma atividade de segunda ordem, uma mera reatividade”, afirma Nietzsche, “e chegou-se a definir a vida mesma como uma cada vez mais adequada adaptação interna a circunstâncias externas (Herbert Spencer). Com isso, porém, à essência da vida é equivocada: sua vontade de potência’, com isso é ignorada a supremacia que têm, por princípio, as forças espontâneas, agressivas, invasoras, criadoras de novas interpretações, de novas direções e de formas, a cujo efeito, somente, se segue a ‘adaptação’; com isso é negado no organismo mesmo o papel dominador dos supremos funcionários, nos quais a vontade de vida aparece como ativa e conformadora” (p. 45, 46).

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É isso!

Fonte:
SCARLETT MARTON: “Nietzsche das forças cósmicas aos valores humanos”. Editora Brasiliense. São Paulo, 1990.

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