"Uma ciência atrás da cortina de ferro"

O texto a seguir, é de autoria de um nome atualmente desconhecido, penso eu: Osvaldo Bastos de Menezes, engenheiro agrônimo, biologista, professor de Genética, Doutor em Ciência pela Universidade de Minnesota. O “desconhecido” talvez se justifique em partes pelo fato de o livro ter sido publicado em 1956, no tenso período da Guerra Fria, um momento bem propício para a proliferação de publicações sobre assuntos relacionados ao regime totalitário russo, daí o título do livro: “Uma Ciência Atrás da Cortina de Ferro”.

A forma como a ciência foi manipulda na antiga União Siviética, sob o comando do temido Lysenko, é mais ou menos exposta nesta obra, da qual extrair um capítulo que versa exatamente sobre a ascenção deste poderoso cientista de Stalin.
Encontrei o livro num desses sebos do centro de São Paulo, e faço questão de torná-lo público neste simples blog. Ei-lo:

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A Ascenção de Lysenko
"Lysenko, nascido na Ucrânia em 1898, de família modesta, exerceu sua primeira atividade em 1913 no Instituto de Horticultura, de Poltava, passando em seguida para Umansky, em cujo Instituto de Horticultura trabalhou até 1921. Desempenhou alguma atividade como melhorista de planta (plant-breeder”) em Kiev, indo, em seguida, trabalhar em Gandza, Azerbdjão, sôbre assuntos relacionados com a propagação de plantas. Desde 1926 que se dedicava, com afinco, a êsses problemas, focalizados, mais tarde, em maio de 1929, no «Congresso de Genética e Melhoramento de Plantas e Animais”, presidido por Vavilov. Aí êle faz seu primeiro aparecimento oficial, embora já houvesse publicado um trabalho em 1928, no Boletim N.° 3 da Estação Experimental de Melhoramento de Plantas de Azerbdjão.

Vamos nessa ocasião encontrar as primeiras afirmações de Lysenko num processo “novo” de técnica chamado por êle de vernalização, segundo cujos princípios não existem plantas de inverno ou de primavera, como no caso do trigo, mas condições especiais que podem alterar o comportamento intrínseco dêsses trigos, mudando o hibernal em primaveril, e vice-versa, tão só com processos de tratamento artificial.

Em 1932 reúne-se a Conferência Nacional de Planificação para os assuntos de Genética e Seleção, onde o programa oficial encareceu a urgência do aumento de produção agícola, pois o próprio Stalin determinou que se se substancial melhoria em tempo variável de 4 a 5 anos. Estabeleceu ainda a Conferência que os assuntos de genética deviam orientar-se no sentido do materialismo dialético, decisão esta que veio favorecer Lysenko, no decorrer dos anos.

Em 1934 e 1935, Lysenko publica dois outros trabalhos, ainda sôbre vernalização, sendo que neste último saiu o livro por êle escrito de parceria com Prezent - sôbre “Melhoramento das plantas e teoria fásica do denvolvimento”, no qual conferem as suas primeiras inpretações dos fenômenos de herança. Até essa altura as aparições nas revistas técnicas, ou nos congressos, guardavam certo recato e ponderação nos ataques à Genética, o que se não deu daí para diante, por lhe parecer necessário um combate mais violento e sistemático.

No IV Congresso da Academia Lenine de Ciências Agrícolas (1936) Lysenko e Prezent assumiram o comando apaixonado dos ataques à Genética, e sua argumentação impressionou ao meio oficial e aos não-cientistas presentes. Mostraram êles que a Genética se chocava com os princípios dialéticos, era inconsistente com os postulados de Darwin e despida de fundamentos práticos. O ambiente tornara-se carregado e um grupo relativamente ponderável passou a secundar Lysenko. Nesse grupo se sobressaíram os seguidores do autor da inseminação artificial, Ivanov. Estabelecia-se um cisma bem definido entre os dois grupos, teatralizando os lisenquistas com uma eloqüência fogosa, onde mais descobria o conteúdo dialético, político, que o genético ou científico. A Genética fôra acusada de idealista, mecanicista e sem fundamentos concretos. Meister, presidente do Congresso, que concordou com alguns dos pontos do ataque, discordou de Lysenko no atinente à teoria física da hereditariedade (cromatossoma), e Serebrovski, com vigor, analisou a argumentação de Lysenko e mostrou a fragilidade de sua obra, baseada num conjunto de conceitos abandonados, por falhos de sustentação científico-experimental, tendo Lamarck pela proa. Müller, presente como convidado, verberou no mesmo tom e apresentou uma vigorosa exposição do Mendelismo, mostrando a correspondência eloqüente que a citologia revela com a Genética. Vavilov também defendeu a genética e, embora tenha mostrado o quanto de prático ela trouxe, não deixou de ser censurado por não haver rebatido os pontos essenciais dos lisenquistas.

É interesante notar que nessa reunião os geneticistas expuseram francamente suas opiniões, pois havia os verdadeiros mendelista (Vavilov, Müller, Serebrovski, Levitski, Sehurdin, Lisicin, Konstantinov, Navashin, etc.), os mendelistas que encontravam algum conteúdo nas teorias de Michurin (Meister, Pisarev, etc.) e os opositores ferrenhos do mendelismo, capitaneados por Lysenko.

Aí por volta de 1937, Zebrak, geneticista, mas ao mesmo tempo dialeta convicto, abriu fogo contra seu colega Vavilov, considerando suas obras como destituídas de conteúdo dialético, embora expusesse com vigor que não havia nenhuma divergência da ciência genética com os princípios dialéticos, alegando que os métodos empregados é que eram responsáveis pelo conflito de princípios não a ciência em si. E no III Congresso Russo de Genética essa onda de certa confusão tomou corpo. Aumentava, para Lysenko, a simpatia dos congressistas. Já nessa altura Vavilov havia sido ptiblicamente atacado de esposar idéias de uma ciência que era a base da teoria fascista de superioridade racial, tema também explorado por Lysenko, embora exposto por Vavilov o absurdo de tal enunciado.

Eram já familiares as denúncias de conteúdo nazista no arcabouço genético, e, por uma propensão natural do Estado, parecia necessário encontrar algo que estimulasse a genética russa. O fermento desencadeado por Lysenko e Prezent crescia a olhos vistos, e sua multiplicação ganhava terreno nas camadas leigas. De indústria, ambos publicavam seus trabalhos em revistas ou jornais de cunho menos formal, e, se não atingiam o meio técnico, caIavam fundo na opinião dos ignorantes.

Ganhava adeptos a “nova” genética e pesquisadores jovens avocaram também a si a obra de destruir o mendelismo. Finalmente, em 1940, Vavilov foi deposto dos cargos e substituído por Lysenko.

Estava terminada a primeira fase da controvérsia, aquela que requeria, para triunfo, a liquidação das figuras marcantes do mendelismo. Foi uma batalha vencida com argumentos políticos, hàbilmente lançados por um grupo que não possuía consistência experimental válida para demonstrar suas conclusões.

O ambiente, “expurgado”, era todo lisenquista. Uns poucos que ainda não haviam aderido foram sendo demitidos e presos, num processo de liquidação que culminou com o Congresso da Academia de Ciências (Agôsto, 1948). Aí os últimos reinanescentes se retrataram putblicamente, reconhecendo seus erros em defenderem idéias mendelistas, numa autocrítica que resume a liberdade” de pensar e de agir que passou a medrar no campo ‘científico” russo. A confissão do “êrro” já não era feita por homens livres: ela era o depoimento de prisioneiros. E, em tal clima, o Presidium da Academia aprovou um ato de “obrigação para as ciências biológicas, biologistas e todos os naturalistas, reformaram radicalmente seus trabalhos e assumiram um papel de combate decisivo às ciências reacionárias e idealistas”. As resoluções, que traziam o sêlo do Partido Comunista, estabeleceram, entre outros pontos:

a) demitir o titular da Academia de Ciências, Prof. Orbeli;
b) demitir o titular da Academia de Ciências, Pfrof. Schmalhausen, do pôsto de Diretor do Instituto de Evolução Morfológica;
c) nomear o titular da Academia, Prof. Lysenko, para membro da Divisão de Ciências Biológicas;
d) suprimir as atividades do Instituto de Citologia, Histologia e Embriologia, do Instituto de Citologia Vegetal do Laboratório de Fenogênese, por seus fundamentos anticientíficos;
e) obrigar a Divisão de Ciências Biológicas a rever os planos científicos, tendo em mira a difusão dos conceitos de Michurin;
f) obrigar o Conselho Editorial de Publicações e a Divisão de Ciências Biológicas a publicar uma biografia científica de Michurin;
g) obrigar os Institutos a demitir todos os adeptos do mendelismo e nomear os representantes da “biologia avançada de Michurin”;
h) comissionar a Divisão de Filosofia e História nas investigações que evidenciam as correlações práticas do michurismo com seu conteúdo ciêntifico;
i) comissionar a Divisão de Ciências Biológicas para rever os planos de preparação dos candidatos aos dos institutos de pesquisa.

Todo um bloqueio foi, assim, feito em tôrno dos novos iniciados, exigindo-se uma só manifestação, uma só reação dentro de um único princípio direcional e de uma “ciência”, a Dialética.

E em obediência a isso tudo, dirigiu o Presidium a seguinte carta, cujo original inglês, da autoria da Editôra Russa, é aqui traduzido:

“Camarada I.V. Stalin,
Prezado José Vissarionovich:

Os participantes da sessão da União Federal das Academias de Ciências Agrícolas, acadêmicos, agrônomos, melhoristas, biologistas, engenheiros mecânicos e organizadores da agricultura socialista, enviam-vos cordial saudação bolchevista e votos de felicidade.

Diàriamente, e em tôdas as horas, os cientistas e os trabalhadores da agricultura sentem a ansiedade do Partido Comunista e do Govêrno Soviético de melhorar a ciência agrícola, bem assim vossa participação constante nos assuntos que a ela se referem para maior desenvolvimento e progresso.

A vós, grande criador do Comunismo, nossa ciência nacional é devedora dos relevantes esforços com que a enriquecestes e a elevastes perante todo o mundo, da proteção fornecida contra os perigos que a pudessem afastar dos interêsses do povo, dos auxílios que destes para vencer as lutas contra os reacionários, e das atenções tributadas para o crescimento contínuo da ciência dos trabalhadores.

Continuador da obra de Lenine, vós salvastes, para benefício da biologia materialista, os ensinamentos do grande transformador da Natureza, I.V.. Michurin, elevando o michurinismo perante tôdas a ciências como o único movimento progressista das ciências biológicas. Graças a isso, as bases naturais do marxismo-leninismo despertaram o orgulho do mundo, pois suas conquistas so confirmadas pelas experiências históricas, e, por isso, estão sendo levadas sempre mais à frente.

Vós, nosso prezado chefe e guia, díàriamente contribuís para que os cientistas soviéticos elevem nossa ciência progressiva e materialista para poder servir à nação, ciência que exprime o novo anseio do mundo e dos homens da nova sociedade.

O sistema de fazendas coletivas, estabelecidos sob vossa aguda visão, abriu tremendas possibilidades para tôdas as fôrças criadoras, ao mesmo tempo que provou seu poder invencível. O Partido de Lenine-Staalin guiou combatentes decididos em prol de uma agricultura mais produtiva, e de uma pecuária mais rendosa. O michurinismo, chamado por vós para desenvolver, sob bases mais positivas e revolucionárias, investigações científicas para transformar a natureza das plantas e dos animais, tem fornecido meios aos homens práticos para melhorar a agricultura socilista. Em troca, o povo progressista das fazendas coletivas, inovador da produção em bases competição socialista, enriqueceu nossa ciência com novos métodos e novas conquistas.

Asseguramos a vós, prezado José Vissarionvich, que devotaremos todos os nossos esforços para colaborar com as fazendas coletivas e estaduais no aumento da produção de nosso país, que constitui um dos pontos mais importantes da transição do socialismo para o comunismo, Vmos, para isso, possibilidades na cooperação mais estreita entre a, Ciência, a nação e o povo progresista das cidades coletivas, como nos tendes ensinado a nós, bolchevistas ou não, do Partido. Ciência que se distancia do povo e que não é útil, não é ciência.

Nossa agrobiologia, desenvolvida por Timirjarzev, Michurin, Willlams e Lysenko, é a mais desenvolvida do mundo. EIa não sòmente é a legítima herdeira dos pensadores avançados da História, como representa uma nova e mais alta conquista do conhecimento humano.

A doutrina de Michurin é um degrau a mais no desenvolvimento da biologia materialista. Os michurinistas levarão mais adiante o darwinismo criador, denunciarão as ciências burguesas e libertarão de idéias metafísicas os pesquisadores, pois uma ciência biológica rejeita, e expurga, as idéias viciadas da impossibilidade de dominar a Natureza.


Ela, ao contrário, ensina aos investigadores descobrir meios e modos para pô-la a serviço do homem.

Nesta cruzada nos inspiramos nos ensinamentos de Marx, Engels, Lenin e Stalin. Invocamos vosso apêlo para servir ao povo, servindo à tradição, mas não tememos em pegar das armas para destruir tudo que é obsoleto.

Viva a ciência progressista de Michurin!

Glória ao grande Stalin, guia do povo, corifeu da ciência.”

(Adotado por unanimidade pela sessão da União Federaí das Academias de Ciências Agrícolas).

— Como um documentário para a História, convém que nesse momentoso congresso houve alguém que perguntou à mesa diretora dos trabalhos qual era a opinião do Comitê Central do Partido Comunista Russo nessa controvérsia. E é o próprio Lysenko que, usando da palavra, responde que o Comitê leu suas conferências e aprovou-as integralmente. Sucesso esperado, as notas taquigrafadas pelo oficialismo resumem como tendo suas palavras sido recebidas sob tempestuos aplausos, grandes aplausos, e tôda a assembléia de pé!

Quem, depois disso, poderia manifestar “outra” opinião se não aquela ditada pelo Partido? De fato ninguém. E a controvérsia, que se desenvolveu até certa altura, foi abafada de chôfre. À livre discussão e debate de idéias impôs-se a palavra oficial, dirigida.”

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É isso!

Fonte:
Osvaldo Bastos de Menezes: “Uma Ciência Atrás da Cortina de Ferro”. Livraria Martins Editôra. São Paulo, 1956, p. 82-90.

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