A epistemologia do naturalismo goetheano

"Historicamente o naturalismo de Goethe se apresenta como contraproposta de um modelo filosófico e científico constituído sobre uma “visão de mundo” mecanicista. Para os iluministas alemães, fortemente convencidos de uma distância insuperável entre intelecto e matéria, a questão da transcendência era ponto definido na teoria da religião. Goethe, em sua “ingenuidade” filosófica (Naivität), percebeu a ligação entre este transcendentalismo e as diversas propostas epistemológicas que, da mesma forma, provocavam uma cisão radical entre intelecto e matéria.

Efetivamente a pré-compreensão de mundo dos iluministas e, antes disto, de toda a visão cartesiana que constituiu a ciência moderna e veio a formar boa parte da tendência filosófica deste período, pressupõe um abismo entre pensamento e matéria que não é senão a herança de toda a tradição medieval, em particular da escolástica.

Esta pressuposição inicial nos conduz forçosamente a sistemas em que pensamento e matéria, completamente desvinculados em termos substanciais, devem necessariamente se opor, gerando um eterno conflito no âmbito existencial (luta da animalidade com a humanidade) e uma dicotomia radical na cosmologia (espírito e matéria entendidos como “bem e mal” ou “real e aparente”). Daí se percebe o quanto uma visão imanentista do Absoluto exige e subsiste numa cosmovisão unificadora ou monista, de modo que a dicotomia gerada pela visão trancendentalista de Deus é superada em conjunto com a eliminação de uma outra dicotomia, antes instransponível, entre sujeito e objeto.

Nossa tarefa neste tópico será a de expor razoavelmente a proposta metodológica do naturalismo goetheano, em primeiro lugar, e deixar claro como esta visão inovadora de ciência, diretamente oposta ao cartesianismo, deprecia a visão trancendentalista de Deus em função de uma compreensão orgânica e imanentista da “Alma do Mundo” (Anima Mundi ou Weltseele).

O naturalismo de Goethe parte de uma compreensão profunda do fenômeno através de uma intuição sensorial trabalhada, estando, portanto, em oposição à perspectiva kantiana quanto à função da intuição sensível. Mas Goethe apreciava o trabalho de Kant e, longe de desconsiderar a posição analítica da ciência, propunha um “acréscimo”, que consistiria em uma outra abordagem do fenômeno, não quanto ao que ele tinha de superficial, mensurável e comparável aos demais (categorias), mas quanto ao que ele tinha de dinâmico, ou seja, seu vir-a-ser.

Para entender melhor a relação de Goethe com Kant, as cartas de Eckermann mostram-se muito reveladoras. Em 11 de Abril de 1827 ele pergunta ao poeta qual seria o
filósofo mais excelente dos tempos atuais, ao que Goethe responde “Kant é sem dúvida o mais excelente... Sua obra influenciou a cultura alemã sem que ela a tivesse lido. Agora não precisamos mais dele, uma vez que já possuímos o que ele podia oferecer...” . Esta colocação deixa bem clara a posição de Goethe quanto à contribuição de Kant, inclusive valorizando a sua plena absorção pela cultura alemã. Mas dois anos depois ele acrescenta, também em conversação com Eckermann: “Na filosofia alemã ter-se-ia de fazer ainda duas coisas. Kant escreveu a “Crítica da Razão Pura”, a partir da qual muitíssimo aconteceu, mas que não fechou o círculo. Agora seria preciso que alguém mais hábil, mais grandioso escrevesse a crítica dos sentidos e da compreensão humana...”

De fato Goethe entendia a filosofia transcendental como uma filosofia pela metade, típica da era moderna. Como pré-romântico, leitor de Rousseau e alinhado com a tradição mística, Goethe assume os elementos gnosiológicos que Kant havia desprezado em sua epistemologia e procura desenvolvê-los.

Hermann Glockner esclarece muito bem a questão afirmando que Goethe e Kant representam pólos de um movimento intelectual, muito mais do que correntes conflitantes, e que o trabalho de Goethe não deve ser entendido como um progresso para além do kantismo, senão como um alargamento para campos e problemas inexplorados por este.

Há muitas referências de Goethe quanto à superação ou acréscimo à filosofia kantiana, tanto nas cartas quanto nos escritos teóricos, e em certo sentido ele entendia seu naturalismo como esboço de um modelo complementar a esta visão. Mas embora este trabalho seja filosoficamente justificável, a sua aceitação, num ambiente cultural orientado pelo cartesianismo, foi bastante dificultada. O advento histórico da decadência do modelo goetheano abriu precedente para que o vulgo o considerasse como uma atitude anticientífica. Uma visão histórica da sua repercussão nos mostrará o quão pouco verdadeira é esta conclusão.

É fora de dúvida que a parte essencial do naturalismo goetheano, enquanto proposta metodológica, é seu conceito de intuição, ou visão, participativa da natureza (Anschauung). Esta intuição participativa já está explícita na própria teoria transcendental através da intuição do fenômeno, que subjaz a toda a construção categorial de sua percepção. Mas, para Goethe, o fato de o interesse do filósofo voltar-se especificamente para o resultado desta intuição essencial deixa-a inexplorada, reduzindo-a à posição de um elemento não reflexivo automaticamente presente no ato de percepção.

Kant assume o fato de que o fenômeno é formatado de maneira fixa por estruturas a priori de sensibilidade, e que o único alargamento possível para o conhecimento, além do acúmulo de experiência, é o desenvolvimento de juízos sintéticos a priori, exclusivamente na faculdade do entendimento. Goethe entende que a conceituação categorial do fenômeno dada pelo entendimento refere-se exclusivamente ao que há de aparente, formal, no fenômeno, exatamente como o modelo matemático de ciência propunha.

Com o advento das ciências biológicas, das quais Goethe é grande expoente na época, a consciência da insuficiência da visão matemática conduziu à “descoberta” da revelação da essência do fenômeno em sua dinamicidade. Para a matemática um comprimento x de uma pedra não dista do mesmo comprimento para uma planta. Como dizia Goethe, “a matemática não se importa se conta Guinés ou Pfenniges, assim como a retórica não se importa se defende a mentira ou a verdade”.

Uma vez que mede superficialidades do fenômeno, aquilo que nele é mutável, o modelo matemático permanece indiferente à essência do fenômeno, e os sistemas epistemológicos, notadamente o kantiano, baseados neste modelo, estabeleceram forçosamente uma divisão entre entendimento e intuição em que só o entendimento poderia ser corrigido racionalmente, cabendo à intuição a mera coleta automática e invariável de matéria bruta fenomênica. Nosso sentido externo, no entanto, acusa sempre uma insuficiência desta análise evocando-nos uma sensação de que o essencial da coisa permanece intocado por ela, e Goethe decide investigar profundamente este sentido no intuito de justificar sua percepção de elementos fenomenais independentes da capacidade apriorística do entendimento. Ele descobre que este sentido é tão complexo quanto o entendimento investigado por Kant, e igualmente corrigível pelo esforço metódico.

A intuição participativa (que Goethe define ora como Anschauung, ora como Aperçu) é uma correção da visão, de modo algum é uma intuição intelectual direta, não trabalhada, mas um exercício de purificar a visão, de reduzir ao máximo as pré-concepções e as expectativas quanto ao que ele deveria ser, para observar o que ele é. É evidente que não se pode eliminar a intenção do pesquisador na observação do fenômeno, mas Goethe propõe uma “delicada empiria”(Zarte Empirie) como modo de controlar os sentidos e diminuir a distorção que as expectativas do pesquisador causam sobre a observação, uma atitude que muitos entendem como genuinamente fenomenológica . Falando grosseiramente, seu acréscimo à epistemologia kantiana não consiste em captar nuanças da coisa-em-si, mas em enxergar sensorialmente mais detalhes do fenômeno do que a mente de um mecanicista podia enxergar.

Com o resgate da obra científica de Goethe nos últimos anos têm-se falado muito em uma espécie de fenomenologia goetheana, em vista de se poder estabelecer diversos paralelos entre o seu naturalismo e a fenomenologia. De fato Goethe é a personagem mais preocupada com o fenômeno enquanto fenômeno dentro de um contexto em que o idealismo tornava-se onipresente. Ele é um dos primeiros a criticar Kant quanto ao fato de sua cognição, nos padrões modernos, ser um mecanismo morto, sem o exercício progressivo de refinamento dos sentidos. Como vimos, os sentidos são corrigidos por atitudes mentais (intencionais). A base desta epistemologia consiste em alterar a atenção e a receptividade mental a novas experiências, de modo que os órgãos sensoriais se tornem abertos a novos “sentidos”. Os sentidos são dependentes de um ato de consciência ativo (intencional) que define o seu uso. Conforme se lhes dá, pela vontade, um arranjo mais abrangente e francamente inquiridor, os fenômenos “respondem” com mais informações, ou seja, elementos sensoriais desprezados pela desatenção e pela falta de educação sensorial passam a viger, alterando efetivamente o conteúdo da percepção.

A “intencionalidade” fundamental de Goethe é a vontade de que o fenômeno “venha até mim”, momento para o qual me preparo com todo o aparato psíquico receptivo. A ciência cartesiana e kantiana, ao contrário, vai ao fenômeno com a intenção de devassá-lo, separá-lo e enquadrá-lo em esquemas que já se definiram “a priori”. Nesta conscientização metódica do ato de percepção consiste a “delicada empiria”.

Uma vez que esta epistemologia não tende para uma primazia, nem de um inatismo racionalista, nem de um empirismo em que o sujeito é mero receptor de informação, cabe ao pesquisador uma postura de “diálogo” com o fenômeno, para que nem ele permaneça exclusivamente na análise de sua superfície, nem o fenômeno seja visto acriticamente como fonte de conhecimento, justamente porque o naturalista está atento para o fato de que só conhece o externo a partir de sua semelhança com aquilo que já carrega no íntimo. Os experimentos não provam nada, eles intermediam uma relação entre sujeito e objeto, tendo um papel semelhante ao de uma língua em que sujeito e fenômeno dialogam. O resultado do diálogo depende do que os interlocutores querem ou têm a oferecer, não da língua.

Para que não se entenda o naturalismo de Goethe como um empirismo é preciso que se atente para o fato de que ele jamais incorre à indução, o que seria não apenas outra forma de derivar dados meramente superficiais, analíticos dos fenômenos, mas também um retorno ao que Hume já havia provado ser acrítico, o derivar leis gerais de um número necessariamente finito de exemplos.

Ademais, a ciência de Goethe é profundamente escorada em concepções filosóficas, sobretudo nas de Bacon e Leibniz. Nisbet esclarece de maneira muito sucinta no “Cambridge Companion to Goethe” os elementos filosóficos herdados de Leibniz que permitiram a Goethe justificar teoricamente seu modelo de ciência. Ele escreve:

Aqui, a metafísica de Leibniz, com sua doutrina de que todas as formas estão encadeadas numa contínua corrente de existência, partindo desde os mais simples elementos da matéria através de todas as formas viventes até a espécie humana, e talvez até os habitantes de mundo mais elevados, foi muito mais útil (que a concepção de Espinosa). Em primeiro lugar isso podia ser facilmente reconciliado com o monismo espinosano, por não haver transições abruptas entre matéria e mente na hierarquia leibniziana. Além disso, a monadologia de Leibniz... apresenta um princípio dinâmico universal que condizia com o vitalismo do final do século XIX. Em terceiro, a série gradual de formas relacionadas, cada uma divergindo apenas sutilmente de sua predecessora, proporcionou uma base já formada para o “sistema natural” de classificação de plantas e animais que Goethe, com outros taxonomistas pós-Lineanos, esperava estabelecer . (Comentário entre parênteses é nosso.)

De uma certa maneira Goethe está bem inserido no contexto da filosofia transcendental de Kant. Ele não quer nem um racionalismo, nem um empirismo, como foram feitos anteriormente, mas um casamento que revele a imprescindibilidade da experiência e da reflexão sempre unidas, devendo apenas atentar-se para a conscientização do dinamismo da intuição sensível a fim de contrabalancear novamente a tendência de Kant ao racionalismo. Ele detectou que o criticismo de Kant permanecera acrítico quanto ao papel da estrutura de sensibilidade no ato de percepção, que, assim como os elementos formais do entendimento, podem também sofrer ampliações, uma vez que a “faculdade da intuição” (ou numa linguagem mais goetheana, o órgão da intuição) é tão passível de exercício sistemático quanto a faculdade do entendimento.

Esta idéia de ciência da dinamicidade do fenômeno como fundamento levou alguns, como Brent Robbins e John Cameron, a falarem de uma ciência fenomenológica ou ontológica, a qual lhes parece análoga a filosofia de Heidegger. Eles estão na nova corrente de biólogos e filósofos que defendem o modelo de Goethe como uma proto-fenomenologia. Segundo Robbins:

Goethe afirma a primazia da percepção assim como a fenomenologia... O ser humano está desde a raiz em ligação essencial com o mundo, sua percepção é intencional e todas as ciências derivam desta percepção. Nossos órgãos são a “carne do mundo” que emerge para olhar a si mesma. São dons do mundo para si mesmo, é o crescimento da natureza

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É Isso!


Fonte:
Humberto Schubert Coelho: “A Religião de Goethe”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião como requisito parcial à obtenção de título de mestre em Ciência da Religião. Oirentador: Prof.Dr. Luís Henrique Dreher). Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora/MG, 2007 .


Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.

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