O diabo "importado" da Europa

As representações do Diabo no Imaginário Europeu e suas influências no imaginário brasileiro neopentecostal (IURD)

Se o Mundo lhe fala através de suas estrelas, suas plantas e seus animais, seus rios e suas pedras, suas estações e suas noites, o homem lhe responde por meio de seus sonhos e de sua vida imaginativa (ELIADE, 2002, p.126).

Como dissemos acima, o Diabo ganha representações diferenciadas na medida em que se alteram os modos como os indivíduos se relacionam com o meio social, político, econômico, religioso e cultural, sem falar de mudanças violentas causadas por guerras, epidemias, catástrofes ou outras perturbações. As representações não são estáticas; elas sofrem modificações, pequenas ou grandes, dependendo do dinamismo que cada sociedade possa vir a enfrentar.

Durante o vasto e rico período medieval europeu, as representações do Diabo foram inúmeras. A atmosfera estava repleta de demônios; entre os homens andavam grandes legiões de espíritos diabólicos, cuja função era atrair os indefesos para as mais terríveis perdições. Segundo Le Goff (1994), as narrativas sobre as viagens ao além era inúmeras. As viagens para o terrível inferno eram as que mais chamavam a atenção e causavam pavor. Tais representações eram temperadas pela rica religiosidade popular que quase sempre esteve em conflito com a religiosidade oficial, apesar dessa última assimilar muitos traços da primeira. Afirma Le Goff (1994, p. 142):

Até ao século VII, a vontade da Igreja de destruir ou ocultar a cultura folclórica – por ela assimilada ao paganismo – fez praticamente desaparecer as viagens ao Além. Só alguns farrapos do outro mundo escaparam em certos Diálogos de Gregório Magno.

Do século VII até ao século X, viveu-se a grande época das visões do Além. Correspondia ela ao Grande movimento do monaquismo e à filtragem, pela cultura monástica, dos elementos populares ressurgentes.

Cabia ao homem comum lutar contra todas e quaisquer tentações. O meio mais comum do Diabo penetrar na vida do indivíduo era através de seu corpo. Todos os tipos de doenças do corpo e/ou desejos sentidos por este, eram indícios de que as tentações rondavam o cotidiano de cada um. O horror ao corpo culmina em seus aspectos sexuais. “A abominação do corpo e do sexo atinge o cúmulo no corpo feminino. De Eva à feiticeira do final da Idade Média, o corpo da mulher é o lugar de eleição do Diabo”. (idem, p. 146). As bruxas foram consideradas, no final da Idade Média, as grandes servas do Diabo.

Laura de Mello e Souza (1987), em seu estudo sobre A feitiçaria na Europa Moderna, revela os canais que o Diabo mantinha abertos através das bruxas, suas
servas e amantes terrenas. Não é de se admirar que as mulheres na IURD manifestem demônios com muito maior freqüência que os homens. “Nós mulheres somos mais frágeis e mais abertas às ciladas do Diabo” (Maria, 41 anos). Sobre o poder e a influência do imaginário, afirma Swain, (1993, p. 48):

O imaginário trabalha um horizonte psíquico habitado por representações e imagens canalizadas de afetos, desejos, emoções, esperanças, emulações; o próprio tecido social é urdido pelo imaginário – suas cores, matizes, desenhos reproduzem a trama do fio que os engendrou. O imaginário seria condição de possibilidade de realidade instituída, solo sobre o qual se instaura o instrumento de sua transformação.

Durante séculos coube às mulheres, em alguns casos, ações nem sempre consideradas aceitas pelos grupos sociais majoritários. Práticas ligadas à magia, contatos mantidos com a natureza (cultos animistas), com seres encantados, com espíritos de outros mundos (duendes, gnomos, fadas), ou fórmulas, que na maioria das vezes eram secretas. As “mulheres satânicas” dominavam o mundo mágico, portanto poderoso e ameaçador. Diz Souza (1987, p. 11):

Na Grécia, em Roma, entre as populações bárbaras que vieram a constituir os países europeus, as práticas mágicas, quase sempre exercidas por mulheres, apresentavam estreita relação com os cultos lunares, com as divindades ligadas à fertilidade.

Não é nossa intenção desenvolver um estudo sobre o papel da mulher nas culturas passadas, mas tentar estabelecer quais seriam os elos de ligação entre as representações do Diabo no passado e suas influências na IURD. Nossa intenção é compreender as representações do Diabo nos fiéis desta igreja. Como as mulheres da IURD são muito mais suscetíveis às ações do Diabo, é comum possuírem uma participação mais efetiva (como fiéis e obreiras), bem maior (numericamente) que a dos homens, apesar de serem mais retraídas e subservientes.

Apesar dos grandes desenvolvimentos científicos da Renascença, de descobertas parciais de mundos “selvagens”, da adoção antropocêntrica do mundo, ele não deixou de ser encantado. Forças misteriosas assombravam o imaginário do homem europeu, estórias fantásticas preenchiam a mente humana de fantasmas, anjos, sereias, monstros marinhos gigantescos, demônios terríveis, entre outras criaturas cabíveis, apenas no rico e fecundo imaginário. Parece que sempre houve
um dualismo quando se tratava de terras e mares desconhecidos. Antes de ser desbravado, o Oceano Atlântico era chamado de Mar Tenebroso. O próprio Colombo ficou decepcionado por não encontrar nenhum monstro marinho na viagem que culminou no “descobrimento” das Américas. O pavor e o medo do demônio eram maiores que a alegria fomentada pela conquista. Como afirma Souza (1999, p. 26):

O Atlântico passará a ocupar papel análogo no imaginário do europeu quatrocentista – reduto derradeiro das humanidades monstruosas, do Paraíso Terreal, do Reino do Preste João, talvez – como diz frei Vicente do Salvador – reino do próprio demo, que, aqui, travará combate encarniçado contra a Cruz e seus cavaleiros. O maravilhoso estaria fadado a ocupar sempre as fímbrias do mundo conhecido pelos ocidentais: o mundo colonial americano seria, pois, a sua última fronteira.

A forma maniqueísta de olhar o desconhecido é bastante natural e comum. A Terra de Santa Cruz, carrega ainda hoje, depois de meio milênio traços das representações e do imaginário do homem europeu, a terra do futuro e das oportunidades, a terra sem males entra em conflito com um Brasil de fome, desemprego, miséria, falta de esperança, incerteza e descrédito na política. Os medos não são os mesmos dos séculos passados, mas o Diabo está vivo nas representações cotidianas de milhares de brasileiros.”

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É isso!

Fonte:
Pedro Antonio Chagas Cáceres: “As Representações do Diabo no Imaginário dos Fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus”. (Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Ciências da Religião à Comissão Julgadora da Universidade Católica de Goiás, sob a orientação do Prof. Dr. Alberto da Silva Moreira.). Universidade Católica de Goiás. Goiânia, 2006.

Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.

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