A concepção de Ciência em Henri Poincaré

O Contexto: Entre Duas Concepções de Ciência

"O caráter convencional que Poincaré atribui ao conhecimento científico pode ser identificado indubitavelmente como sua marca mais peculiar, e algo que não podemos deixar de observar é o fato de que o florescimento da obra de Poincaré se dá num momento muito interessante da História da Ciência: “há épocas em que o modo de apreender e de estruturar o universo é transformado inteiramente num breve lapso de tempo, como nas décadas que antecederam a Primeira Guerra Mundial. Todavia, na época, essa transformação foi entendida, ou mesmo notada, por um número reduzido de homens e mulheres em alguns países e, às vezes, apenas por minorias, dentro do campo de atividade intelectual e criativa que estavam sendo transformados. (...) A paisagem intelectual, na qual visivelmente emergiam sumidades como Planck, Einstein e Freud, para não falar em Schoenberg e Picasso, era clara e fundamentalmente diferente daquilo que mesmo observadores inteligentes acreditavam perceber em, digamos, 1870.” O prefácio de Ciência e Hipótese ilustra muito bem essa mudança de rumos da atividade científica.

Imerso nesse contexto, Poincaré tinha como objetivo refutar duas leituras: 1) a noção ingênua de Ciência, noção essa que ainda hoje é um lugar comum para o público pouco afeto à prática científica ou às sutilezas da Epistemologia; e 2) a concepção de Ciência defendida por Édouard Le Roy, denominada nominalismo.

Poincaré parece defender uma concepção que, num certo sentido, é um meio-termo entre essas duas posições citadas acima, mas que definitivamente não pode ser simploriamente reduzida a esses termos, por ser uma leitura muito mais refinada que uma simples posição intermediária e conciliadora dessas outras concepções supracitadas.

Em várias oportunidades Poincaré ataca o nominalismo de Le Roy, sendo que parte das críticas a ele dirigidas já foram citadas nos capítulos precedentes. Podemos resumir a posição adotada pelos nominalistas grosseiramente através das seguintes linhas mestras: o nominalista propõe a criação e o desenvolvimento de uma Ciência baseada única e exclusivamente nos preceitos de nossa razão. Aos olhos de Poincaré, “algumas pessoas têm permanecido perplexas por essa característica de livre convenção que pode ser reconhecida em certos princípios fundamentais da Ciência. Algumas não conhecem limites para suas generalizações, e ao mesmo tempo têm esquecido que há uma diferença entre liberdade e pura arbitrariedade; por isso eles são compelidos a dar naquilo que nós chamamos de nominalismo; eles têm perguntado se o sábio não se deixa enganar por suas próprias definições e se o mundo que ele pensa ter descoberto não é uma simples criação de seus caprichos.” A Ciência estaria limitada exclusivamente ao império da razão, só a ela responderia e só a ela deveria se adequar. Operando dessa maneira, a Ciência caracterizar-se-ia por estar fundamentada em uma base exclusivamente dedutiva que, por sua vez, abarcaria seu próprio objeto. A título de ilustração, caso Poincaré aceitasse os preceitos que ele atribui ao nominalismo, praticamente toda a investigação que desenvolvemos no capítulo anterior seria dispensável, uma vez que o problema de compatibilizar as leis científicas às nossas experiências seria irrelevante, supérflua e desnecessária.

Recordemo-nos que quando Poincaré aborda a problemática acerca dos conceitos de fato bruto e de fato científico, ele o faz no intuito de refutar a tese nominalista segundo a qual os fatos brutos não devem fazer parte dos domínios da Ciência. A Ciência tal qual concebida pelo nominalista é algo cuja artificialidade (e, por artificialidade podemos aqui entender a absoluta falta de compromisso com algo que é exterior à razão pura) salta aos olhos.

Obviamente é muito mais simples garantir o rigor da Ciência se ela estiver calcada em bases nominalistas, mas o resultado ao qual essa decisão nos leva simplesmente não pode ser aceito pelo nosso autor. Ao contrário disso, Poincaré opta por conceder à Ciência (notadamente à Física) uma forte ligação com a realidade apresentada por nossas experiências, o que implica em problemas a serem resolvidos. O preço a ser pago por renegar veementemente uma Ciência artificial é abrir-se às incertezas oriundas dos problemas relativos à transitividade (cuja própria existência é problemática) entre razão pura e experiência, uma vez que a tentativa de estabelecer conhecimento científico acerca do mundo exterior é algo que está completamente fora de questão. Vimos a solução que nosso autor apresenta para esse problema, solução essa que não o resolve ipso facto: a identidade entre experiência sensível e um suposto mundo exterior é postulada com base apenas em uma crença cômoda que isso se dá dessa maneira. Melhor dizendo, somos compelidos para essa crença por falta de uma melhor opção (já que essa é a solução “mais cômoda”). A própria objetividade do conhecimento se encontra inscrita nos limites de uma simples relação de objetos destituídos de conteúdo, pois como já vimos, “fora dessas relações não há realidade cognoscível.”

Não obstante, curiosamente o próprio Le Roy não se diz nominalista, mas convencionalista. Recorrendo aos textos do autor bem como de seus comentadores, verificamos que, de certo modo, Poincaré deturpa levemente a concepção de Ciência apresentada por Le Roy. É seguro afirmar que Le Roy defendia um convencionalismo extremado, em que as leis científicas se encontravam acima da verificação empírica, chegando a propor que “a construção científica faz submergir quase que completamente o dado empírico, (...) e a Ciência é uma ordem esquemática construída”, donde podermos conceber as leis científicas como regras gerais, voltadas à sua melhor aplicabilidade: “na verdade, os experimentos não verificam as teorias, mas as teorias são construídas de maneira que expliquem o resultado das aplicações experimentais.” Curioso, portanto, Poincaré atribuir a Le Roy a alcunha de nominalista, quando na verdade a diferença entre as concepções epistemológicas de ambos só são claramente opostas se considerado o âmbito da Física.

Mas até que ponto, poder-se-ia perguntar, valeu a pena optar por esse caminho que, apesar de mais árduo, não pôde garantir muito mais que o nominalismo garantira? A argúcia de Poincaré, verificada principalmente pela maneira como o autor procura uma solução que satisfaça suas exigências, é razão suficiente para compreendermos a escolha que o faz seguir seu caminho, pois seu compromisso com a verdade, fruto natural da concepção abordada no capítulo anterior, segundo a qual a Ciência vale per se (mesmo que isso implique na limitação de trabalhar dentro de uma verdade apenas aproximativa) basta para fundamentar sua escolha. Reconhecer nossas limitações é o primeiro passo para o progresso da Ciência comprometida com a verdade. As contribuições que se possa dar a partir daí serão bastante interessantes, mesmo que limitadas. E nesse ponto em particular, não pensar em um paralelismo entre Poincaré e o kantismo é muito difícil.

A outra concepção refutada por Poincaré foi aquela que acima denominamos “noção ingênua de Ciência”. Em seus termos: “para o observador superficial, a verdade científica é inatacável, e a lógica da Ciência infalível; e se os homens da Ciência vez por outra cometem erros, é porque eles não entenderam as regras do jogo. As verdades matemáticas são derivadas de poucas proposições evidentes por si só, por uma cadeia impecável de raciocínios; elas são impostas não por nós, mas pela própria natureza. (...) Essa é, para a mente da maioria das pessoas e para os estudantes que estão desenvolvendo suas primeiras idéias acerca da Física, a origem da certeza da Ciência.” O leigo acredita no poder da razão e na capacidade de compreendermos perfeitamente as leis da natureza em si mesmas, e o que baliza essa crença é uma concepção muito importante para a História da Epistemologia: a noção de verdade como correspondência entre um enunciado e uma realidade exterior. Podemos resumir tal concepção com a seguinte passagem: “a concepção clássica, tradicional, da correspondência mantém que uma sentença (podendo exprimir uma crença) é verdadeira caso reflita o real, retrate aquilo que é; se isso não se der, ela é falsa. As crenças ou as sentenças apontam para os estados de coisas: se eles existem, são verdadeiras, caso contrário são falsas. Uma teoria da correspondência, para ser filosoficamente satisfatória, carece deixar clara a índole da correspondência que deve existir entre sentenças ou crenças, de um lado, e a realidade, de outro, que assegure a verdade.” Foi principalmente com a notória problemática kantiana contida na Crítica da Razão Pura que a verdade enquanto correspondência a uma realidade “em-si” perdia suas bases. A partir desse momento crucial para a História da Filosofia, surgem melhores condições para pensar noções de verdade distintas de uma simples correspondência entre enunciado e realidade exterior, estabelecida como medida de correção do discurso desde a Lógica Aristotélica, pois o cerne da chamada “Revolução Copernicana” operada pela filosofia kantiana tem uma relação direta com a distinção proposta pelo autor entre sujeito e objeto do conhecimento. Antes de se estabelecer essa distinção radical, outra concepção de verdade era desnecessária, pois é só a partir do reconhecimento da distinção entre “fenômeno” e “coisa-em-si” que faz sentido pensar uma noção de verdade que não a verdade como correspondente às próprias coisas.

Resumidamente, a chamada noção ingênua de Ciência pode ser atribuída ao leigo e ao cientista ainda não despertado de seu cômodo “sono dogmático”, que em seu engano, acredita que ao conhecer a Verdade está realmente desvendando as leis obedecidas pelo mundo, quando na verdade só pode pretender estabelecer o conhecimento dos fenômenos (fatos brutos) oriundos da experiência.

Logo, tanto os ingênuos dogmáticos quanto os artificiais nominalistas são criticados por Poincaré devido à filiação de cada um deles a uma solução no que diz respeito ao problema acerca do verdadeiro objeto da Ciência. As diferentes concepções das quais partem o dogmático, o nominalista e o convencionalista os levam a maneiras bastante divergentes de conceber a Ciência: entre a recusa de recorrer à exterioridade proposta pelo nominalista e a irresponsável aceitação de uma identidade entre fato observado e mundo exterior, o convencionalista opta por uma solução intermediária, a saber, o reconhecimento da distinção entre sujeito e objeto do conhecimento, mas ainda assim postulando a verdade científica como presente na correspondência entre as leis e enunciados que postulamos e o modo como se comportam os fenômenos oriundos de nossas experiências. Nesse sentido, não há como negar um forte empirismo na obra de Henri Poincaré, pois há nela a tendência de reconhecer o fato como o ponto capital a ser considerado para a aquisição da verdade, mesmo que baseada em fenômenos, e não na realidade exterior.

Em O Valor da Ciência, mais especificamente no capítulo denominado A Ciência e a Realidade, Poincaré pergunta se a Ciência é capaz de nos fazer conhecer a verdadeira natureza das coisas, sendo categórico em negar tal possibilidade. Ao explicar sua posição, deixa claro que “quando uma teoria científica pretende nos mostrar o que é o calor, ou a eletricidade, ou a vida, está preliminarmente condenada; tudo que ela pode nos dar não é mais que uma imagem grosseira.” Apesar disso, é uma imagem grosseira do verdadeiro calor, da verdadeira eletricidade, da verdadeira vida, tão próximos quanto podemos chegar deles. É uma imagem, apesar de grosseira.

Ainda no mesmo texto, quando toma como exemplo o movimento de rotação da Terra, Poincaré corrobora essa leitura com uma passagem deveras interessante: “essas duas proposições, ‘o mundo exterior existe’, ou ‘é mais cômodo supor que ele existe’ têm um só e mesmo sentido; assim, a hipótese da rotação da Terra conservará o mesmo grau de certeza que a própria existência de objetos exteriores.” Mesmo que jamais possamos provar uma suposta consonância entre a convenção estabelecida e uma realidade exterior, Poincaré assevera que a melhor alternativa que nos resta é supor a harmonia entre esses dois mundos distintos. Ressalte-se, entretanto: essa harmonia não pode, nem nunca poderá, ser provada.

Tendo nossas experiências sensíveis num grau tão grande de importância para a descoberta da verdade, é a elas que nosso intelecto deve remeter para assim possibilitar conhecimento objetivo. Como os nominalistas, Poincaré atribui ao intelecto a capacidade de criar uma Ciência que se constitui numa teoria explicativa das leis que regem os fenômenos observados. Porém, ao contrário deles, exige que essa criação do espírito seja controlada pela experiência sensível, que é sua pedra de toque. Eis a base que nos permite afirmar que Poincaré propõe uma solução intermediária entre a noção ingênua de Ciência e o nominalismo."

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É isso!


Fonte:
Jacintho Del Vecchio Junior: “A Filosofia de Henri Poincaré: A Natureza do Conhecimento Científico e os Paradoxos da Teoria dos Conjuntos”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Luiz Henrique Lopes dos Santos). Universidade de São Paulo. São Paulo, 2005.

Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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