A Epistemologia Histórico-Crítica de Gaston Bachelard

Em física, como em trigonometria, é preciso estabelecer uma base firme de todas as suas operações. - Gaston Bachelard

"Os conceitos de Ruptura e Obstáculo Epistemológico são elementos recorrentes da epistemologia Bachelardiana, segundo a qual a ciência deve ser caracterizada epistemologicamente como um domínio de pensamento que promove uma ruptura com o conhecimento vulgar. Neste sentido, não só ela é um conhecimento diferente do conhecimento que nos fornece a opinião, mas só pode existir ao preço de uma ruptura epistemológica com a mesma. Segundo ele,

A ciência, tanto por sua necessidade de coroamento como por princípio, opõe-se absolutamente à opinião. Se, em determinada questão, ela legitimar a opinião, é por motivos diversos daqueles que dão origem à opinião; de modo que a opinião está, de direito, sempre errada. A opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades em conhecimentos. Ao designar os objetos pela utilidade, ela se impede de conhecê-los. Não se pode basear nada na opinião: antes de tudo, é preciso destruí-la. Ela é o primeiro obstáculo a ser superado (Bachelard, 1986, p.14, grifo do autor).

Diante desse mundo epistemologicamente novo, fruto de todo desenvolvimento da ciência, é que devemos procurar as razões do nosso conhecimento. Neste sentido, os conceitos de ruptura e obstáculo epistemológico são essenciais. O termo “ruptura” é usado na epistemologia de Bachelard para indicar uma descontinuidade entre o conhecimento comum e o conhecimento científico e também, no interior da ciência, para caracterizar a passagem de um ciclo evolutivo para outro. Os obstáculos epistemológicos surgem como elementos próprios do processo de conhecimento, que se encrustam num conhecimento não questionado. Eles são, segundo Bachelard,

Lentidões e perturbações que, por uma espécie de necessidade funcional, causam inércia, estagnação e regressão no ato do conhecimento. [...] Não se trata de obstáculos externos, como a complexidade ou a fugacidade dos fenômenos, nem tampouco internos como a fraqueza dos sentidos e do espírito humano [...]. Trata-se antes, de um impedimento que aparece no ato mesmo de conhecer. É antes uma espécie de resistência implantada previamente, de tal modo que o conhecimento sempre se faz contra um conhecimento anterior. Conhecer seria destruir conhecimentos mal feitos, superando o que constitui no próprio espírito, obstáculo à espiritualização. (Bachelard, 1986, p.19).

Os obstáculos epistemológicos podem ser estudados no desenvolvimento histórico do pensamento científico, e de sua superação também depende a formação de uma cultura científica. Na epistemologia bacherladiana, também a opinião ocupa um lugar de destaque, na medida que se apresenta como o primeiro obstáculo a ser superado. Superação essa, imprescindível para a formação do espírito científico. Dentre os inúmeros trabalhos seguindo a linha de pesquisa sobre as concepções alternativas que vem sendo conduzidos nas últimas décadas encontramos um bom exemplo de como a opinião funciona com obstáculo ao conhecimento em um artigo de Maria J. B. Almeida. Nesse artigo a autora aborda a baixa compreensão de termos científicos no discurso da ciência, e no qual chega à conclusão que a causa da baixa compreensão desses termos tem alta correlação com o fato dos alunos acharem já conhecer o significado dos termos, o que ainda segundo a autora é um obstáculo ao aprendizado dos mesmos (Almeida, 2001). A pergunta se faz necessária para o aprendizado, pois é capaz de despertá-lo para a construção que desejamos. Na obra de Bachelard, a compreensão do sentido que o problema tem como ferramenta de ruptura dá subsídio à caracterização do espírito científico. A esse respeito, ele diz:

O espírito científico proíbe que tenhamos opinião sobre questões que não compreendemos, sobre questões que não sabemos formular com clareza. Em primeiro lugar, é preciso saber formular problemas. E digam o que disserem, na vida científica os problemas não se formulam de modo espontâneo. É justamente esse sentido de problema que caracteriza o verdadeiro espírito científico. Para o espírito científico, todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído. (Bachelard, 1996,p.18, grifo nosso).

Nesse processo, a pergunta é de fundamental importância, mas não qualquer pergunta, ela não pode ser abstrata e fraca, pois assim tende a tornar-se um novo obstáculo: “Um obstáculo epistemológico se incrusta no conhecimento não questionado” (Bachelard, 1996,p.19). Nessa tentativa de superação dos obstáculos epistemológicos a experiência tem também um papel importantíssimo. Mesmo porque ela própria pode vir a ser um obstáculo a se superar.

Na formação do espírito científico, o primeiro obstáculo é experiência primeira, a experiência colocada antes e acima da crítica – crítica esta que é, necessariamente, elemento integrante do espírito científico. Já que a crítica não pôde intervir de modo explícito, a experiência primeira não constitui, de forma alguma, uma base segura. (Bachelard, 1996,p.29).

Essa experiência que se coloca acima da crítica é falha, mas ao mesmo tempo é carregada de facilidades cognitivas e se fixa como verdadeira na mente do aprendiz. Bachelard caracteriza esse obstáculo e mostra que há ruptura e não continuidade entre a experiência primeira e a experiência científica.

A primeira experiência, ou para ser mais exato a observação primeira é sempre um obstáculo inicial à cultura científica. De fato, essa observação primeira se apresenta repleta de imagens; é pitoresca, concreta, natural, fácil. Basta descrevê-la para se ficar encantado. Parece que a compreendemos. (Bachelard, 1996,p.25).

A idéia de ruptura é reforçada pelo fato da experiência científica contradizer a experiência comum não sendo de forma nenhuma um simples aperfeiçoamento desta.

A experiência científica é, portanto uma experiência que contradiz a experiência comum. Aliás, a experiência imediata e usual sempre guarda uma espécie de caráter tautológico, desenvolve-se no reino das palavras e das definições; falta-lhe precisamente esta perspectiva de erros retificados que caracteriza, a nosso ver, o pensamento científico. A experiência científica não é de fato construída; no máximo; é feita de observações justapostas, e é surpreendentemente que a antiga epistemologia tenha estabelecido um vínculo contínuo entre a observação e a experimentação, ao passo que a experimentação deve-se afastar das condições usuais de observação. Como a experiência comum não é construída, não poderá ser, achamos nós, efetivamente verificada. Ela permanece um fato. Não pode criar uma lei. Para confrontá-la com vários e diferentes pontos de vista. Pensar uma experiência é, assim, mostrar a coerência de um pluralismo inicial. (Bachelard, 1996,p.14).

Embora, epistemologicamente, os nossos apontamentos sinalizem na direção da necessidade de uma superação da experiência comum, a experiência científica tende a não romper totalmente com a experiência comum, pelo menos no que tange a aspectos cognitivos. É notória a idéia dentre as modernas teorias de aprendizagem de que o educador não deve considerar o educando uma tábua rasa sobre a qual pode derramar os seus conhecimentos e que estes irão se solidificar aí, mesmo que se houverem conhecimentos prévios estes poderão ser integralmente substituídos (Moreira, 1999), sobre isso Bachelard nos diz: “Parece que nenhuma experiência nova, nenhuma crítica pode dissolver certas afirmações primeiras. No máximo, as experiências primeiras podem ser retificadas e explicitadas por novas experiências” (Bachelard, 1996,p.52).

Isso confirma a necessidade de conhecer as concepções primeiras dos alunos, até mesmo porque embora para muitos pesquisadores não seja uma regra, em alguns casos é possível perceber uma estreita ligação entre essas concepções e os primórdios do desenvolvimento científico ratificando assim a tese de Thomas Kunh de que: “A ontogenia cognitiva recapitula a filogenia científica” (Kunh, 1977 apud Matthews, 1995,p.178).

No nosso trabalho, buscaremos abordar a experimentação como elemento capaz levantar novos questionamentos e assim proporcionar um contexto que traga à tona inconsistências solidificadas pelo senso comum o que pode permitir a ocorrência das rupturas e a quebra de obstáculos epistemológicos encaminhando assim o indivíduo no processo de formação de um espírito científico.”

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É isso!

Fonte:
RONALDO CÉSAR DE OLIVEIRA PAULA: “O USO DE EXPERIMENTOS HISTÓRICOS NO ENSINO DE FÍSICA: INTEGRANDO AS DIMENSÕES HISTÓRICA E EMPÍRICA DA CIÊNCIA NA SALA DE AULA”. (Dissertação realizada sob orientação do Prof. Dr. Cássio Costa Laranjeiras e apresentada à banca examinadora como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre em Ensino de Ciências – Área de Concentração “Ensino de Física”, pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências da Universidade de Brasília). Ciências da Universidade de Brasília – UnB. Brasília, 2006.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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