O conceito de classes perigosas no Brasil

“No início do século XX, a partir dos ideais eugênicos, muitas dessas teorias ganham peso no Brasil, e cresce no imaginário social a crença nas “classes perigosas”, termo utilizado já em 1857, por Morel, em seu trabalho “Tratado das Degenerescências”, para designar aqueles que não possuiriam “nem a inteligência do dever, nem o sentimento da moralidade dos atos, e cujo espírito não é suscetível de ser esclarecido ou mesmo consolado por qualquer ideia de ordem religiosa.” (apud COIMBRA, ibid., p. 88).

É ancorado nestas teorias que surge o movimento higienista no Brasil, no final do século XIX, e início do século XX, e penetra em toda a sociedade. A “degradação moral” que era associada à pobreza era vista como uma epidemia cujo contágio era considerado inevitável “pois está presente nas famílias pobres e coloca sob ameaça toda a sociedade” (ibid., p. 89). Este movimento irá redefinir, segundo a autora, os papéis que devem desempenhar em um regime capitalista a família, a criança, a mulher, a cidade, as classes pobres. Uma dualidade se constrói a partir desta redefinição de papéis: surgem os “pobres dignos”, que trabalham, mantém a família unida, observam os costumes religiosos; e os pobres considerados “viciosos” que, “por não pertencerem ao mundo do trabalho [...] e viverem no ócio, são portadores de delinquência, são libertinos, maus pais e vadios” (ibid., p. 91). E para ambos os “tipos” de pobres são utilizados dispositivos disciplinadores e moralizantes. É interessante apresentar aqui um pouco da elaboração de Chalhoub (1996), que traz uma importante colaboração sobre a constituição do conceito de classes perigosas, e como este conceito é adotado no Brasil. O autor realiza esta reflexão a partir da reconstrução da experiência dos negros escravos, libertos e livres nos cortiços cariocas, tendo como um dos objetivos principais de sua pesquisa “explorar os cortiços como esconderijos dentro da cidade, fatores de embaralhamento de livres e cativos e, portanto, como rede de proteção a escravos fugidos e elemento desagregador da instituição da escravidão” (id, p. 7). De acordo com este autor, que se propõe a pesquisar, ainda, a suposta relação entre os cortiços e as epidemias de febre amarela:

os cortiços supostamente geravam e nutriam 'o veneno' causador do vômito preto. Era preciso, dizia-se, intervir radicalmente na cidade para eliminar tais habitações coletivas e afastar do centro da capital as 'classes perigosas' que nele residiam. Classes duplamente perigosas, porque propagavam a doença e desafiavam as políticas de controle social no meio urbano. (id., p. 8. Grifos do autor)

Aí está um dos principais elos entre o combate às classes perigosas e o higienismo mencionado acima: "A intervenção dos higienistas nas políticas públicas parecia obedecer ao mal confessado objetivo de tornar o ambiente urbano salubre para um determinado setor da população." (ibid., p. 9) Assim, conforme destaca o autor, “higienistas e autoridades policiais estarão quase sempre do mesmo lado da trincheira em se tratando de cortiços” (ibid., p. 37).

Antes de prosseguir, se faz necessário apresentar alguns exemplos de formulações pautadas nos ideais higienistas, para que se compreenda melhor de que se trata este movimento e o seu impacto na formulação de políticas na Corte Imperial. Traremos, portanto, um episódio marcante na história dos cortiços no Rio de Janeiro, oferecido, ainda, por Chalhoub em seu trabalho: a demolição do “Cabeça de Porco”, o mais famoso cortiço brasileiro da época.

De acordo com o autor, em abril de 1892, “um higienista ascendeu à presidência da Intendência Municipal, e posteriormente, em dezembro do mesmo ano, foi nomeado para a prefeitura da Capital Federal: Cândido Barata Ribeiro.” (ibid, p. 50) Em sua tese de doutoramento, Barata Ribeiro havia afirmado:

Todos sabem o que é o cortiço. [...] Alimenta-os a lubricidade do vício, que se ostenta impudonorosa (sic), ferindo os olhos e os ouvidos da sociedade séria que deles se aproxima, e a miséria andrajosa e repugnante, que faz da ociosidade um trono, e por um contraste filho das circunstâncias peculiares à vida das grandes cidades, ao lado [...] do vício e do lodaçal impuro do aviltamento moral, está também o leito do trabalhador honesto, que respira à noite a atmosfera deletéria deste esterquilínio de fezes! No cortiço acha-se de tudo: o mendigo que atravessa as ruas como um monturo ambulante; a meretriz impudica, que se compraz em degradar corpo e alma, os tipos de todos os vícios e até [...] o representante do trabalho [...] Só vemos um conselho a dar a respeito dos cortiços: a demolição de todos eles, de modo que não fique nenhum para atestar aos vindouros e ao estrangeiro, onde existam as nossas sentinas sociais, e a sua substituição por casas em boas condições higiênicas.

Conclui, então, Chalhoub, a partir da menção acima: “torna-se evidente, portanto, que ao ordenar a demolição do Cabeça de Porco, entre outros cortiços, Barata Ribeiro estava apenas colocando em prática a sua opinião histórica a respeito desse tipo de habitação popular.” (ibid., pp. 50-51) Assim, lembra o autor,

A destruição do cortiço carioca mais famoso da época não foi um ato isolado, e sim um evento no processo sistemático de perseguição a esse tipo de moradia, o que vinha se intensificando desde pelo menos meados da década de 1870, mas que chegaria à histeria com o advento das primeiras administrações republicanas. (ibid., p.25)

Aquela “opinião histórica” retratada na fala de Baratta Ribeiro não se reduzia, obviamente, apenas a esta personagem, mas é fruto de um processo que se iniciou no seio dos debates parlamentares em meados do século XIX, quando se construía, ou melhor, se buscava adaptar32 ao Brasil, o conceito de “classes perigosas”, processo que, como mencionamos acima, está profundamente relacionado ao ideário higienista. De acordo com Chalhoub (ibid.), o conceito de classes perigosas foi um dos eixos do importante debate parlamentar ocorrido na Câmara dos Deputados do Império do Brasil nos meses que se seguiram à lei de abolição da escravidão, em maio de 1888. Segundo o autor, “preocupados com as consequências da abolição para a organização do trabalho, o que estava em pauta na ocasião era um projeto de lei sobre a repressão à ociosidade.” (ibid, p.20) Desta forma, os parlamentares recorriam com frequência, por exemplo, a M. A. Frégier, um alto funcionário da polícia de Paris que, segundo o autor, baseando-se em inquéritos e estatísticas policiais, escreveu um livro influente, que foi publicado em 1840, sobre “as classes perigosas da população nas grandes cidades”(ibid., p.20)

Frégier, no entanto, de acordo com a análise do autor, apesar do empenho e cuidado na análise das estatísticas, não teria sido capaz de resolver um problema que seria decisivo: o seu trabalho resultou então numa ampla descrição das condições de vida dos pobres parisienses em geral, porém tendo falhado na tentativa de determinar com qualquer precisão a fronteira entre as “classes perigosas” e as “classes pobres”; e a consequência disto entre os nossos parlamentares, na formulação de políticas pós-abolição já se pode imaginar. É assim que, nos anais da Câmara dos Deputados, em sessão de 10 de outubro de 1888 se encontra a seguinte menção a Frégier pela comissão parlamentar encarregada de analisar o projeto de lei sobre a repressão à ociosidade, conforme o autor transcreve:

As classes pobres e viciosas, diz um criminalista notável, sempre foram e hão de ser a mais abundante causa de todas as sortes de malfeitores: são elas que se designam mais propriamente sob o título de – classes perigosas –; pois quando o mesmo vício não é acompanhado pelo crime, só o fato de aliar-se à pobreza no mesmo indivíduo constitui justo motivo de terror para a sociedade. O perigo social cresce e torna-se de mais a mais ameaçador, à medida que o pobre deteriora a sua condição pelo vício e, o que é pior, pela ociosidade. (ibid., p.21)

De acordo com Chalhoub, o trecho supracitado é uma “babel de ideias”, que foi produzida por Frégier e encampada pela comissão parlamentar. Verifica-se que já se encontra, neste momento, distante a precisa ideia de “classes perigosas” proposta por Mary Carpenter, que utilizou a expressão no sentido de um grupo social formado à margem da sociedade civil, referindo-se apenas aos indivíduos que já haviam abertamente optado por uma estratégia de sobrevivência que os colocava à margem da lei, como afirma o autor. No caso anterior, porém, o conceito de classes perigosas traz em si a seguinte concepção já mencionada, de que seriam perigosas simplesmente por serem pobres, retomando as palavras de Chalhoub em citação de Malaguti Batista (2003, p. 37 – grifo nosso): “perigosas porque pobres, por desafiarem as políticas de controle social no meio urbano e também por serem consideradas propagadoras de doenças.”

Chevalier (1973, p. 141 - tradução nossa), em seu trabalho, também realiza uma crítica ao trabalho de Frégier, afirmando que este autor “se propôs sobretudo a descrever malfeitores de todos os tipos, da classe trabalhadora ou não, vigaristas, ladrões e prostitutas, e tentou identificá-los através de estatísticas, situando-os em seu real contexto em Paris.” Assim, segundo este autor, seu estudo das classes perigosas teria coberto uma grande parte das classes trabalhadoras, mas não teve sucesso em determinar uma fronteira entre os dois grupos, o que Chevalier, por sua vez, procura fazer em seu trabalho. Assim, também este autor (id., p. 141 – tradução nossa) aponta, sobre a elaboração de Frégier, “a imprecisão de termos e sintaxe confusa, que refletem não só a complexidade do assunto, mas a imprecisão e confusão de pensamento.”

Além disso, Frégier irá afirmar sobre a parte da classe trabalhadora que está ligada a vícios audaciosos e maléficos: “gradualmente vertem seus hábitos industriais remanescentes, pela influência maligna dos seus companheiros de desordem e acabam abraçando suas vidas desocupadas e do crime.” (id., p. 142, tradução nossa).

O que principalmente irá, conforme destaca Chevalier, chamar a atenção neste livro é a incapacidade de Frégier de encontrar algum modo de resolver a confusão entre classes perigosas e classes trabalhadoras, apesar de haver em seu trabalho declarado como seu objeto de estudo as classes perigosas.

De acordo com Chalhoub, retomando a reflexão acima, o raciocínio proposto pelos deputados se teria desenvolvido a partir de uma abstração, o que leva a conclusões que, mesmo obtidas através de uma lógica pela comissão parlamentar, dizem respeito a coisa nenhuma, a um vazio, ao nada. Vejamos como se desenvolveu aqui no Brasil esta lógica:

os pobres carregam vícios36, os vícios produzem malfeitores, os malfeitores são perigosos à sociedade; juntando os extremos da cadeia, temos a noção de que os pobres são, por definição, perigosos. Por conseguinte, conclui decididamente a comissão: ‘as classes pobres [...] são [as] que se designam mais propriamente sob o título de – classes perigosas – ‘” (op. cit., p.22)

Desta forma, conclui o autor, “é que a noção de que a pobreza de um indivíduo era fato suficiente para torná-lo um malfeitor em potencial teve enormes consequências para a história subsequente de nosso país.” (id., p.23). Pode-se dizer que é a partir daí, inclusive, que se desenvolveu aquilo que o autor descreve como a “teoria da suspeição generalizada” que seria, segundo o mesmo, a essência da expressão “classes perigosas”.

Quando falamos de uma “teoria da suspeição generalizada”, não podemos deixar de nos reportar ao fato de que, tanto naquele momento, ainda de Brasil Império, de abolição da escravidão no Brasil, quanto na atualidade, até mesmo como produto deste passado de segregação no Brasil, verifica-se a busca pela construção de uma cultura que legitima, ou mais, leva mesmo à defesa de políticas de controle como as mencionadas acima.

Por isso a necessidade de refletirmos, a partir de agora, sobre a construção da chamada “cultura do medo” na sociedade e a mídia enquanto instrumento determinante neste processo."

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É isso!


Fonte:
Laura Freitas Oliveira: “Questão social e criminalização da pobreza: aportes para a compreensão do novo senso comum penal no Brasil”. (Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Serviço Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Trabalho e Política Social. Orientadora: Profa. Dra. Silene de Moraes Freire). Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2010.

Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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