“As representações dos padres casados e das mulheres de padres presentes no imaginário contemporâneo estão relacionadas, dentre tantas outras, àquelas imagens construídas ainda na Idade Média do sacerdote ideal que deveria ser abstinente sexual e casto. Ser celibatário, não somente na sociedade medieval como hoje, significa manter-se solteiro. Ou seja, uma condição avessa a de casado. Por este motivo, compreender o significado do celibato clerical e também das concepções acerca das mulheres de padres passa pelo entendimento do casamento religioso e da sua institucionalização, pois tanto o casamento como o celibato foram estabelecidos no mesmo período, no século XII, e são parte integrante de um mesmo projeto de moralização do clero e da sociedade cristã denominado de Reforma Gregoriana (séculos XI e XIII).
O movimento reformista definiu, dentre outras resoluções, que a sexualidade dos laicos poderia ser praticada somente dentro do casamento religioso, monogâmico e indissolúvel, único considerado lícito, e que os clérigos deveriam ser obrigatoriamente celibatários. Antes da Reforma Gregoriana instituir o casamento como o sétimo sacramento, as fronteiras entre o matrimônio e o concubinato não eram nítidas, bem como não era precisa a separação entre as mulheres casadas e as concubinas. É o que demonstra Philippe Ariès quando sustenta que “a união livre, comumente praticada, nem sempre esteve claramente separada do casamento”43. Idéia compartilhada por Peter Brown:
Esse tipo de relacionamento era comum (...) aceito como válido até pelos cristãos. Como relação aceitável e, muitas vezes, francamente reconhecida, não coberta pela lei, mas com algumas regras próprias, o concubinato era exatamente o inverso de um arranjo dissoluto.
Idade Média, em algumas regiões da atual Espanha, Portugal e Itália, por exemplo, clérigos podiam ser casados, inclusive, em alguns casos, continuar casados após a ordenação, o que era visto com certa naturalidade. Segundo Brown, como forma de controlar a sexualidade dos sacerdotes após a ordenação, era preferível que já fossem pais antes de exercer o sacerdócio. Conforme o autor, havia “alguns bispos, queixou-se Jerônimo, que se recusavam a ordenar padres enquanto não constatassem que suas mulheres estavam efetivamente grávidas”45. Brown reflete que apesar de já existir no alto medievo uma corrente que favorecia a continência perpétua no escalão superior o clero, a prática era outra. No século IV, Santo Ambrósio, por exemplo, percebeu que o melhor que se podia esperar da maioria das igrejas locais era que seus padres se comprometessem com o celibato pós-conjugal no momento de sua ordenação: tudo que se podia exigir do clero médio era que ele “tivesse tido filhos, e não continuasse a produzi-los”.
Essa naturalização está relacionada ao processo de organização da Igreja que, dos primeiros séculos até o século VIII, era uma espécie de federação de episcopados e mosteiros que agiam, em muitos aspectos, de maneira autônoma. Como assinala Andréia Silva e Marcelo Lima,
(...) o reconhecimento da primazia romana era sobretudo teórico, já que o papado, de fato, ainda não se tornara o centro diretor de todo o corpo eclesiástico. As comunidades cristãs se organizavam regionalmente, tal como é possível verificar através das atas dos sínodos e concílios locais. Por isso eram alvo da influência da aristocracia laica e dos poderes seculares. Nesse sentido, a simonia, isto é, a venda de serviços eclesiástico aos leigos, e o casamento de clérigos eram práticas relativamente aceitas e correntes no cotidiano dessas comunidades.
Além disso, o costume de aceitar socialmente o concubinato, inclusive o clerical, relacionava-se à mentalidade da Alta Idade Média que aceitava a existência de múltiplas práticas de união efetuadas sem qualquer ritual religioso ou sem a intervenção de um sacerdote (consideradas válidas pela Igreja e pelo poder real), como o casamento de pública fama (contraído sem testemunhas, mas confessado pelos noivos, e que resultava em coabitação) e o casamento a furto (uniões clandestinas). Tais relacionamentos não possuíam a dimensão ignominiosa que adquiriram após o movimento reformista, o qual marginalizou todos os enlaces matrimoniais que não fossem aprovados pela Igreja e estigmatizou e reprimiu, sobretudo, o casamento e o concubinato de clérigos, como evidenciam algumas leis estabelecidas entre os séculos XIII e XIV:
Todos os casamentos se podem fazer por aquelas palavras que a Santa Igreja manda contanto que sejam tais [o casal] que possam casar sem pecado. E todo casamento que puder ser provado quer seja feito as ocultas [a furto] ou de forma pública valerá, se os que assim se casarem forem de idade legítima, como é de costume.
Para se casar sem pecado era necessário que os noivos fossem maiores de idade, não houvessem efetuado votos religiosos e não possuíssem parentesco em grau proibitivo. Inicialmente, a informalidade do ato de se casar é revelada pelo teor das “palavras que a Santa Igreja manda”, aquelas que tinham o poder de validar o matrimônio: “recebo-te por minha”, “recebo-te por meu”.
Não existia um contrato escrito, apenas um contrato de dote, quando a prometida possuía bens. Em casos de litígio entre os esposos, havia a necessidade de se comprovar a legalidade das bodas, para diferenciá-la do concubinato. A legitimidade era confirmada por indícios que validassem a união, como depoimentos que atestavam que os supostos cônjuges sempre haviam se apresentado como casados em público ou testemunhos de pessoas que asseguravam haver participado de uma pequena cerimônia de caráter nupcial. Porém, em última instância, somente o marido e a esposa podiam se conceber como casados. Essa compreensão facilitava o divórcio, tornando-o tão informal quanto o próprio casamento.
Assim como no enlace conjugal romano, no medieval, antes do estabelecimento da obrigatoriedade do casamento religioso para os laicos e do celibato clerical para o clero latino – cujas diretrizes foram instituídas no I Concílio de Latrão de 1123 e confirmadas pelo IV Concílio de Latrão, em 121552 - a realização de um matrimônio dependia de uma série de fatores. Se os pretendentes pertencessem a famílias abastadas havia um contrato e uma cerimônia que davam publicidade aos esponsais e comprovavam a sua legalidade. Já no caso de não existirem “posses”, poderia não haver uma cerimônia pública marcante e a união estabelecida talvez não fosse considerada uma núpcia de fato. A realidade jurídica do ritual dependia das lembranças deixadas na memória coletiva: se fracas, a união era percebida como um acontecimento passageiro; se fortes, era considerada legítima.
Mesmo entre nobres, que enxergavam o casamento como forma de assegurar o patrimônio para que a sucessão dos herdeiros estivesse claramente definida, o matrimônio não era universalmente praticado, podendo não ser considerado ecessário, tampouco desejável. A prática do concubinato, termo utilizado para designar toda união intermediária não obrigatoriamente indissolúvel, era costumeira na Idade Média. Como o concubinato, o matrimônio para a nobreza não era inquebrantável e podia ser rompido por vários motivos. A tradição nobiliárquica, profundamente preocupada com a sucessão de linhagem, exigia que se repudiasse a mulher estéril e reprovava o adultério feminino, mas permitia outras formas de união, dentre as quais a mais comum era a do concubinato.
A Reforma Gregoriana contribuiu para a exaltação do casamento religioso e para a vigilância das práticas matrimoniais consideradas ilegítimas, mas que ainda perduraram principalmente aquelas derivadas da tradição matrimonial romana. A lei romana estabelecia o casamento como um pacto ou, mais precisamente, como um contrato entre as famílias e os cônjuges, decorrente do consenso de que a intenção de casar era preferível ao concubinato, sendo um ato privado e informal, sem confirmação por uma autoridade pública, sacerdote ou juiz.
Como estas práticas estavam enraizadas no costume medieval, foi grande o esforço da Igreja para instituir o casamento religioso como o único modelo santo e legítimo, sendo necessário um longo processo marcado por impasses, conflitos e transigências para que o matrimônio eclesiástico se impusesse ao secular, promovendo a cristianização da união marital. As autoridades espirituais e, posteriormente, as temporais conjugaram esforços para difundir a nova moral do matrimônio, assentada nos ensinamentos das Sagradas Escrituras. Mas, na prática, outros modelos persistiam. As dificuldades de implantação da nova ordem são atestadas pelas numerosas e extensas leis criadas nos séculos XIV e XV que objetivavam estabelecer a obrigatoriedade do casamento religioso entre leigos e que foram reforçadas e melhor estruturadas, séculos depois, no Concílio de Trento (1545 e 1563). Constata-se assim, uma resistência ao modelo hegemônico de normatização visto que, como afirma Foucault, dificilmente se proíbe aquilo que não se pratica:
No Concílio de Trento estabeleceu-se uma cerimônia formal e obrigatória para contrair-se o casamento. (...) Ao estipular que o casamento ocorresse perante o sacerdote local e testemunhas, a Igreja tentava impedir que homens que tivessem casado em segredo se tornassem padres.
O complexo normativo defendido pela Igreja propunha aos cônjuges um modelo de vida cristã estruturado por uma hierarquia que valorizava prioritariamente a virgindade e, seguidamente, a continência sexual. A salvação eterna era prometida aos casais que praticassem uma sexualidade regrada em uma união indissolúvel, reservando-se aos restantes o fogo do inferno. A Igreja manifestava um ostensivo repúdio ao prazer carnal, proclamando que a procriação era a única razão do sexo entre os cônjuges. O pensamento de São Jerônimo foi constantemente utilizado para fundamentar o discurso que afirmava que o casamento servia para disciplinar a sexualidade e lutar eficazmente contra a luxúria, pois como ele escreveu, “as núpcias povoam a terra, a virgindade o Paraíso”. Algumas idéias de São Jerônimo acerca do matrimônio foram compartilhadas e largamente utilizadas por outros pensadores cristãos que exortavam que o casamento deveria ser um relacionamento casto alegando que, mesmo na sexualidade lícita, não era permitido sentir ardor e prazer.
Adúltero é também o amante muito ardente de sua esposa (...). Um homem sábio deve amar sua mulher com descrição e não com paixão e, consequentemente, controlar seus desejos e não deixar se obcecar pela cópula (...). Nada é mais imundo do que amar a sua mulher como se fosse uma amante.
A sacramentalização do enlace conjugal estava relacionada ao combate que a Igreja travava em duas frentes. Na primeira, contestava-se a concepção de que todo ato carnal era pecado, o que inviabilizava o ideal do casamento religioso. Na segunda, enfrentava-se o nicolaísmo, movimento de resistência de um contingente numeroso de padres que reivindicavam a prática do matrimônio como alternativa contra a fornicação e relutavam em abandonar laços concubinários e laços conjugais.
A instituição, pela Igreja, do casamento sacramentado somente para os laicos, tornou inaceitável que os padres pudessem ser casados ou, em certos casos, continuassem a se casar após a ordenação. Com instauração do celibato obrigatório para o clero, os sacerdotes, a partir desse momento, somente poderiam contrair matrimônio se fosse omitida sua condição clerical. Fora isto, lhes restava o concubinato, pois no casamento religioso, era indispensável o aval da Igreja, pela intervenção de um sacerdote que santificasse a relação conjugal.
A partir do século XI, o rito do desponsatio passou a ser encenado na entrada da Igreja, e o papel do padre cresceu notavelmente: os pais da moça tinham que entregá-la ao sacerdote, que a dava ao futuro esposo; era ainda o padre que unia as mãos do noivo e observava a troca de alianças.
Tal situação foi melhor formalizada com o Concílio de Trento, que além do cerimonial obrigatório para a realização do matrimônio, estabeleceu que o casamento era assunto exclusivo da Igreja. Na sessão XXIV do Concílio, definiu-se que “se alguém disser que as causas matrimoniais não são da competência dos juizes eclesiásticos que seja excomungado”. Além disso, passou-se a atribuir uma importância fundamental ao consentimento mútuo dos dois esposos e reiterou-se que casar, desrespeitando a existência de votos religiosos, era incorrer em crime e pecado, com pena de excomunhão.
Se alguém disser que os clérigos constituídos em ordens sacras e os Regulares que professam solenemente castidade, podem contrair validamente matrimonio, não obstante a lei eclesiástica ou o voto, e que o contrário disto outra coisa não é senão condenar o Matrimônio; e que podem contrair matrimônio todos os que não sentem ter o dom da castidade, ainda que o tenham prometido — seja excomungado. Pois Deus não nega este dom a quem piamente lho pede, nem consente que sejamos tentados acima das nossas forças (I Cor 10, 13)66. Assim, verifica-se que depois de Trento, a flexibilidade em relação a algumas práticas matrimoniais entre leigos, como o concubinato e o casamento a furto tendem a desaparecer e a Igreja vai reforçar as determinações da Reforma Gregoriana referentes à exigência da castidade sacerdotal.
O celibato como regra obrigatória para o clero latino foi uma prática cultural construída gradualmente. A aceitação de uma norma social ocorre em um processo lento, marcado por resistências. Para finalmente se tornar um hábito – ou habitus, conforme o conceito é compreendido e empregado nos textos do sociólogo Norbert Elias –, a norma precisa ser introjetada pelos indivíduos que formam a sociedade. O longo período necessário à naturalização de uma nova norma decorre do seu encontro com os hábitos instituídos (as normas antigas), os quais, por estarem carregados de afeto, não podem ser superados apenas por argumentos e atitudes racionais. Nesse sentido, Bourdieu e Elias concordam a respeito da construção social do habitus, entendido como esquemas geradores de práticas sociais, enquanto sistema de estruturas interiorizadas, mostrando que, apesar da resistência, as práticas e as ideologias podem se atualizar e ocupar uma posição dominante. Bourdieu define habitus como o
sistema das disposições socialmente construídas que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o principio gerador e unificador do conjunto de práticas e das ideologias características de um grupo de agentes. Tais práticas e ideologias poderão atualizar-se em ocasiões mais ou menos favoráveis que lhe propiciam uma posição e uma trajetória determinada (...) na estrutura da classe dominante.
A Igreja enfrentou muitas dificuldades para conseguir que os clérigos aceitassem e seguissem as novas regras de conduta. A primeira imposição ao celibato de que se tem notícia ocorreu no Concílio de Elvira, em 306, restrita à região da atual Espanha. Tal fato demonstra que o celibato não era ainda uma regra geral, mas localizada, conquanto a problemática da castidade clerical já estivesse regulamentada em certos lugares. O cânon 33 do referido Concílio estipulava que era “proibido totalmente aos bispos, presbíteros e diáconos e a todos os clérigos ordenados [ou seja, os que tinham ordens maiores], ter relações sexuais e gerar filhos: quem o fizer seja excluído da honra de clérigo”. O cânon 65 versa sobre as esposas dos clérigos. Segundo a norma:
Sobre as esposas adúlteras dos clérigos. Se a esposa de um clérigo fornicar e o seu marido souber que fornicou e não a rejeitar imediatamente, nem na morte seja readmitido à comunhão, para que não pareça que aqueles que devem ser exemplo de bom comportamento, proceda o ensino dos pecados.
Apesar de muitos estudiosos entenderem que alguns cânones do Concílio de Elvira demonstram a rigidez da Santa Sé na proibição dos casamentos de clérigos, existem outros historiadores da Igreja, inclusive padres - como é o caso de Fortunato de Almeida - que relativizam o rigor destas normas. Conforme Almeida, o cânon 33 não proíbe nem fornece fundamentos para se afirmar que o casamento clerical era proibido, uma vez que o texto apenas determina aos clérigos casados que não mantenham relações sexuais com suas mulheres: abstinere se a conjugibus suis et non generare filios (abster-se das suas esposas e não gerar filhos)73. Além disso, o cânon 65 fala expressamente das mulheres de clérigos, o que evidencia que esses poderiam ser casados.
Assim, além de explicitar o quão é complexo o tema do celibato na Alta Idade Média, tais abordagens dos cânones de Elvira, podem também indiciar que a preocupação inicial do poder eclesiástico estaria centrada nas práticas sexuais. Preocupações voltadas mais precisamente para a questão do prazer e não para o casamento em si, o que faz sentido se refletirmos sobre as afirmações de Vainfas:
Do tempo dos Apóstolos aos dias de hoje, o cristianismo estimulou diversas manifestações morais acerca do sexo. E se houve um traço unificante de todas essas “morais”, este foi a recusa do prazer, às vezes flexível, mas sempre presente em todas as reflexões e códigos éticos fundamentados no cristianismo. Em certo sentido, a problematização cristã da carne supõe o prazer como um mal em si mesmo e também como um obstáculo à salvação, e principal responsável pelos flagelos da humanidade. (...) A interpretação “sexualizada” do pecado original marcou decisivamente o conjunto das éticas cristãs, dela resultando a concepção de um mundo entrevado pelas aflições da carne, a visão do homem fragilizado pelo desejo e a identificação da virgindade, pureza e salvação.
Dessa forma, se a preocupação inicial da Igreja consistia no prazer advindo da relação sexual e não ao fato de clérigos serem casados, a argumentação de Almeida faz sentido haja visto que nos primeiros séculos do cristianismo era comum o recrutamento de homens casados para o exercício do sacerdócio. Conforme Almeida, “nos primeiros tempos do cristianismo não fora imposto o celibato aos clérigos, mas os bispos, presbíteros e diáconos não podiam casar-se depois da ordenação, a não ser que renunciassem às funções das respectivas ordens”. No entanto, mesmo assim havia exceções. Era o caso dos diáconos que, antes de receberem a ordem, tivessem reservado formalmente seus direitos ao casamento. As informações fornecidas por Almeida são muito interessantes, pois demonstram que, mesmo os clérigos de ordens maiores, a depender da situação, poderiam se casar após ordenados, como é o caso dos diáconos. Tal fato evidencia uma flexibilidade das igrejas locais sobre o assunto.”
Estudando o cristianismo nas regiões italianas, Peter Brown assinala que entre o fim do século I e o início do II, muitos missionários, peregrinos e líderes de igrejas locais eram casados. Em parte, este costume estava ligado à tradição das comunidades que queriam escolher seus clérigos entre os anciões já casados, vistos como virtuosos. Por outro lado, estava relacionado à falta de homens que quisessem ser clérigos. Para Brown, “um dos obstáculos enfrentados pela Igreja, sobretudo nas províncias, era a escassez crônica de candidatos ao sacerdócio, o que lhe impossibilitava prescindir dos serviços de homens casados”. Com freqüência em “muitas regiões italianas, pequenas dinastias clericais em que o filho seguia o pai ou o sobrinho seguia o tio formavam a coluna dorsal da Igreja”. A necessidade de se aceitar homens casados nos quadros eclesiásticos concorreu para atitudes de tolerância da Igreja em relação à manutenção do matrimônio contraído antes da ordenação, inclusive para a prática do sexo, desde que voltado para a procriação.
Na Península Ibérica, nos séculos V e VI, quando os jovens que se destinavam ao sacerdócio atingiam a idade de 18 anos, eram chamados perante o cabido, o bispo e alguns fiéis importantes, que lhes perguntavam se queriam servir a Igreja em continência perpétua ou se preferiam casar-se antes da ordenação. Aqueles que optavam pelo estado de continência eram investidos no subdiaconato e não podiam se casar, enquanto ao restante era permitido o enlace conjugal. O celibato só era exigido aos que ascendiam ao subdiaconato, considerado o primeiro grau das ordens ditas sagradas ou sacras. Quando os candidatos ao sacerdócio decidiam ordenar-se, tinham que prometer, junto à esposa, que viveriam, a partir de então, em continência sexual. O exercício da sexualidade estava proibido aos cônjuges apenas quando o clérigo fosse ordenado. Porém, alguns textos informam a existência de clérigos que, contrariando as prescrições canônicas, insistiam em se casar depois da ordenação. A Epístola do Papa São Sirício ao bispo Himério de Terragona permite inferir que, no século VI, grande parte dos padres ibéricos era casada. São Sirício, respondendo a uma consulta de Himério sobre o assunto, determinou que os clérigos maiores se abstivessem de relações sexuais com as esposas após a ordenação. Em documentos posteriores, o mesmo pontífice alegou que clérigos não apenas continuavam a casar-se após ordenados, como também mantinham relações sexuais com as esposas, como qualquer homem comum:
Temos sabido que muitíssimos sacerdotes de Cristo têm procriado filhos depois de largo tempo após sua consagração, não só com as próprias mulheres, mas com outras de torpes uniões e querem defender seu crime com o argumento de que a lei do Antigo Testamento concedeu aos sacerdotes e ministros a faculdade de engendrar. Todos nós sacerdotes estamos obrigados pela indissolúvel lei destas sanções, e desde o dia de nossa ordenação, consagramos nossos corações e corpos a sobriedade e a castidade, para agradar em tudo a nosso Deus com os sacrifícios que diariamente lhe oferecemos.
Durante a Alta Idade Média, corroborando a hipótese de que havia um número expressivo de padres ibéricos casados, José Mattoso observa que os cânones 42 e 44, do IV Concílio de Toledo (633), legitimavam o casamento de clérigos, desde que o matrimônio não fosse com viúvas, mulheres repudiadas ou prostitutas. A união, contudo, só podia ser oficializada com o consentimento do bispo85. O canôn 44 determinava que: “os clérigos que, consultando o seu bispo, se casarem e desposarem ou viúva, ou repudiada ou meretriz é necessário que sejam delas separados pelo próprio bispo”.
Como assinala Mattoso, o cânon 42, prescreve que os clérigos não habitem com mulheres extraneis (estranhas/que não são parentes) ou as servas destas, e se sentencia que, se isto acontecer, sejam separadas deles e mandadas vender pelo bispo. O autor ainda cita vários outros Concílios, como o III de Braga de 675, que no cânone quatro fala expressamente, em bispos que vivem com mulher. Mattoso também menciona que no Concílio de Campostela de 1056 - ocorrido no contexto do processo reformista, quase um século depois do de Braga - ainda se faz referência a uma prescrição acerca dos “presbyteris et diaconibus conjugatis” (presbíteros e diáconos casados).
Referindo-se ao caso inglês, Christopher Brooke assevera que “no principio da Idade Média, os membros do clero casavam-se. A lei proibia-o; o uso, de certo modo, santificava as suas uniões”. Ao tratar dos cônegos seculares, o historiador mostra que a influência normanda da Igreja na Inglaterra permitia “a existência de cônegos casados, com concubinas e filhos, e, em muitos casos, os seus filhos herdavam o cargo de cônego e mesmo a dignidade”. Essa situação, conforme sublinha Brooke, era uma realidade até o século XI. Ele cita o caso do Concílio de Winchester que, em 1076, desobedecendo as determinações papais gregorianas, decidiu realizar uma reforma gradual, aceitando “concubinas para o clero da paróquia, mas também como um esforço determinado no sentido de não ordenar mais padres que tencionassem se casar ou tivessem esposas ou concubinas”. Tal Concílio, também impôs que “um cônego não poderia mais ter esposa”. Entretanto, após essa data, Brooke menciona um período que chama de “o apogeu dos cônegos casados”, localizado entre os anos de 1090 e 1130. Para o estudioso, nestes anos “a concubina de clero gozou, juntamente com a sucessão hereditária do cargo de cônego, um último esplendor”.
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É isso!
Fonte:
EDLENE OLIVEIRA SILVA: “ENTRE A BATINA E A ALIANÇA: DAS MULHERES DE PADRES AO MOVIMENTO DE PADRES CASADOS NO BRASIL”. (Tese apresentada como requisito final para a obtenção do título de doutor junto ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de História da Universidade de Brasília. ORIENTADORA: PROF.ª DR.ª ELEONORA ZICARI BRITO). Universidade de Brasília – UnB.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Do concubinato à obrigatoriedade do celibato
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