As diferentes faces do positivismo no Brasil

Positivismo no Brasil: Correntes

(...) compreende-se que o Positivismo, (...) poderia
bem alimentar aspirações aos foros de uma vasta
filosofia da realidade, útil aos homens de governo
como aos homens de ciência” (R. BARBOSA, 1882).

“Considerando o cientificismo como “crença na capacidade da ciência em descobrir as leis que regem os fenômenos sociais e de fornecer instrumentos de explicação e de intervenção efetiva na realidade e, onde também a ciência é vista como a alavanca do progresso e da civilização”, esse fora um grupo de filosofias pujante no século XIX comumente invocado pela historiografia de “frentes cientificistas”. No Brasil esse “surto de idéias novas”, conforme Silvio Romero, obteve particularidades numerosas. O positivismo brasileiro e suas subdivisões fora uma dessas filosofias, juntamente com darwinismo, spencerianismo e o haeckelianismo, que compunha essas frentes cientificistas. É válido ressaltar também que “o cientificismo no Brasil admitia a ciência como meio de informar e conformar diagnósticos do atraso brasileiro e construir projetos civilizatórios”. A sobreposição da ciência à política e a ostentação dos cientistas como patriarcas da civilização também fora uma marca desse levante de idéias. No caso do positivismo, esse comunicava aos seus aderidos “um tom de soberana e absoluta suficiência” e, com isso os seus adeptos, homens ligados à ciência, “adquiriram o privilégio da infalibilidade, com solução para tudo e resposta a todas as perguntas”.

Os positivistas no Brasil a despeito de suas diferenças mantêm fidelidade à teoria da ciência, ao relativismo e à unidade metodológica de Auguste Comte, diferentemente os adeptos ao spencerianismo. A sociologia - ciência da sociedade que a explica, a compreende e a ordena - será a base em que o positivismo brasileiro em suas diferentes concepções irá tratar as questões políticas, econômicas, culturais e os problemas sociais. É a partir da ciência que a humanidade encontrará as possibilidades solucionadoras para os seus problemas numerosos e, será nela que a sociedade brasileira poderá superar o atraso, crença quase unânime das elites nacionais desse período, final do século XIX. O senso de missão social distingue o positivismo das outras filosofias cientificistas no Brasil. A orientação das ações dos adeptos ao positivismo independentemente da facção, sejam os frades do apostolado de Miguel Lemos e Teixeira Mendes sejam os litreístas como Luís Pereira Barreto e Martins Júnior de São Paulo, sempre fora de caráter social-coletivo, tendo como estampa um projeto civilizatório. Além disso uma espécie de código ou vocabulário positivista fora instalado e utilizado por todos eles. Esse era composto de conceitos e significados instituídos por Comte, compreendidos muito das vezes somente pelos adeptos, simpatizantes ou leitores aficionados. Termos para designar especificidades como “pedantocracia”, “sofistas”, dentre outros, constituindo assim uma espécie de idioma legitimador da comunidade intelectualizada à moda cientificista e anti-bacharelesca.

Apesar dessas semelhanças missionárias e partilhas lingüísticas, as diferenças entre as correntes são significativas, considerando que as variedades do positivismo brasileiro resultam de imbricações entre admissões doutrinárias, posicionamentos de cunho social e o regionalismo. A pluralidade do movimento no Brasil constitui-se de modos de visão do país bem como as diferentes formas de conduzi-lo ao civilismo e ao progresso. Mesmo entre adeptos de uma mesma corrente, como é o caso dos litreístas, há diferenças impeditivas em compreender os liames condutores do agrupamento. A rotulação em ortodoxos versus heterodoxos ou lafitistas versus litreístas não responde a todos questionamentos dirigidos ao positivismo brasileiro. O positivismo aqui não seguiu as convenções doutrinárias, mas se metamorfoseou aderindo às contingências intelectuais vigentes e predominantes de acordo com o caráter regional e também político. A doutrina original de Comte fora adaptada a pensamentos em construção ou já consolidados variando de grupo a grupo considerando as variáveis já mencionadas, mas também ao mando e à influência inspiradora dos líderes, seja pela erudição e capacitação intelectual seja pela personalidade e caráter, ou pela somatória desses. Portanto conclui-se não ser adequado compreender o positivismo no Brasil como uma corrente, mas sim, como vários positivismos, sendo necessário analisar cada um desses separadamente e, não necessariamente de forma isolada considerando que a dinâmica da formação desses e do debate entre esses fora intenso e real.

No Rio de Janeiro o Apostolado Positivista movido por um dogmatismo avantajado e um radicalismo característico encarnado por Miguel Lemos e seu “companheiro e amigo indefectível” Teixeira Mendes, superara em relação ao próprio mestre. Referindo-se a Auguste Comte, Ivan Lins em um dos estudos sobre o tema, argumenta que “mudadas as circunstâncias de tempo e lugar, ele não poderia deixar de rever os seus conceitos e conselhos, pois, do contrário, infringiria o princípio básico por ele mesmo formulado: ‘tudo é relativo, eis o único princípio absoluto’”. Desse modo o positivismo adepto a “Religião da Humanidade” sediada na Corte desenhou um perfilamento ortodoxo, o que resultou em baixas de confrades dedicados à ordem como Álvaro Joaquim de Oliveira e Benjamin Constant.

Benjamin Constant Botelho de Magalhães fora líder de um positivismo de corporação, o da elite da Escola Militar, fundamental para a formulação do golpe de Estado que derribara o Império. Entre os militares, o positivismo fora perfeitamente admitido e substanciado num sentimento salvífico e redentivo da pátria, iniciado na Guerra do Paraguai. Benjamin Constant nos dias do advento da República, já rompido com o apostolado o qual “não havia lhe poupado críticas em virtude de sua heterodoxia, (...) fora a alma do movimento de 15 de novembro” e, fora quem exercera o papel de propagador do positivismo nos primeiros dias da República, apesar dos ortodoxos reivindicarem alguma glória na disseminação das idéias republicanas e até granjearem a fama de haver sido os criadores da República no Brasil, o que evidentemente não ocorrera, mesmo considerando que Demétrio Ribeiro, nessa época adepto ao apostolado, chegara ao “poder com o programa positivista na mão”, mas que mais tarde romperia seus votos com o apostolado. Proclamada a República o apostolado se aproximara de Benjamin Constant, “embora reconciliado com esses, não os ouvia sem reserva”, fato esse demonstrado no seu parecer em concordância com Rui Barbosa à exoneração de Demétrio Ribeiro dada a reforma financeira. Rui Barbosa, protagonista com seu Parecer sobre a reforma educacional da década de 1880 (Parecer analisado no capítulo final deste trabalho), não era bem visto pelos ortodoxos o qual na opinião deles era uma daquelas “figuras nefastas que não tardaram em desnaturar o novo regime”, mas terá uma dada apreciação do positivista Benjamin Constant.

Em São Paulo o positivismo é tido pela historiografia como de pouco êxito, como ocorre na interpretação de Paim, o qual lhe denomina de “positivismo ilustrado” dado suas afeições sociais “servindo como uma pedagogia política que visava esclarecer as consciências e formar novas forças dirigentes tendo um tom iluminista, donde” advêm essa denominação. Antonio Paim admite uma predominância da historiografia em tratar o positivismo brasileiro distinto da “divisão clássica entre ortodoxos e dissidentes”, já que essa admite premissas nacionais. Identifica seis segmentos no positivismo brasileiro e dentre eles o “positivismo ilustrado que contou como seus integrantes mais destacados Luís Pereira Barreto (1840-1923), Alberto Sales (1857-1904), Pedro Lessa (1859-1921) e, Ivan Lins (1904-1975)”287, esse último um contemporâneo seu em meados do terceiro quarto do século XX. Na visão de Ângela Maria Alonso essa interpretação de Paim apresenta problemas, pois “exclui a igreja paulista e inclui indevidamente Pereira Barreto entre os ‘ilustrados’”. O movimento positivista em São Paulo fora “intensíssimo”, afirma Alonso. Inicialmente houve um segmento religioso-político liderado por Pereira Barreto o qual em 1881 fora expulso por Miguel Lemos estabelecendo em São Paulo uma sucursal da Igreja Positivista com outra liderança local, porém sob direção geral de Lemos. Durante a década de 1880 e nos anos 90 uma espécie de positivismo jurídico surge parecido com a “Escola do Recife que combina liberalismo e positivismo”, esses, portanto, denominados por Paim de “ilustrados”. Barreto incluído nesse grupo por Paim, segundo Alonso, “comungava da visão social dos problemas e da perspectiva de transformação via esclarecimento das elites dirigentes, no entanto sua crítica constante e incisiva do ‘legismo’ e a aceitação durante toda a vida da religião da humanidade impede de classificá-lo ao lado dos bacharéis”, referindo-se aqui aos demais integrantes do chamado “positivismo ilustrado” como Pedra Lessa e Alberto Salles. Alonso insiste em afirmar o anti-bacharelismo de Barreto sendo seu positivismo permeado pela polêmica, pelo “charme, pelo perigo de atacar os ‘legistas’ e de estabelecer como programa a organização da sociedade civil tendo por acento a educação e não a política”, sendo sua obra uma espécie de “sociologia positivista do Brasil, uma sociologia que tinha o privilegiado estatuto de fornecer os instrumentais para a regeneração social que deveria ser evolutiva e não revolucionária (...) sem o abalo das instituições”. Nota-se assim uma corrente do positivismo em São Paulo ativa e engajada porém de um grupo de intelectuais autônomos. Alonso divide o positivismo de São Paulo em três segmentos, uma formada por intelectuais dispersos, esses da Faculdade de Direito; um composto pelos confrades de Lemos desde 1881 e, outro segmento de perfil sociológico de Pereira Barreto.

O positivismo no sul desenvolvera uma faceta política e menos cientificista em comparação ao positivismo das outras regiões. Fora uma versão mais particular tendo como principal formulador Júlio Castilhos, o qual “empolgaria a liderança das facções republicanas riograndenses graças à prolongada guerra civil ocorrida no Estado em seguida à proclamação da República”. Em 1893 assume o governo do Rio Grande do Sul podendo dar início à aplicação da doutrina comtiana na elaboração da constituição estadual na qual contempla dentre várias premissas a desautonomização do poder legislativo onde a assembléia reúne-se apenas para votar o orçamento e aprovar a prestação de contas do governante. O poder executivo é exercido e existente em torno do presidente o qual dispõe de poderes para intervenções nas jurisdições executivas municipais. O executivo elabora as leis, a reeleição é assegurada ao presidente e seu substituto é nomeado por ele. Castilhos governou até 1898 e Borges de Medeiros nomeado governou até 1928, afastado por intervenção federal dada a guerra civil iniciada em 1923. Getúlio Vargas deu provas de continuidade e fidelidade ao castilhismo na Revolução de 1930 e no Estado Novo, demonstrada a influência duradoura desse positivismo sulista na cultura brasileira.

No norte, como era denominada a região nordeste de hoje, a Escola do Recife e sua influência no Ceará fora um contraponto ao positivismo comtiano adotado nas demais regiões do país, pois admitiam o método, não obstante recusavam August Comte como guia moral e político. Na Escola do Recife destacam-se Tobias Barreto, agnóstico crítico a princípio e depois monista evolucionista a Haeckel e Noiré, e Silvio Romero, adepto ao que ele mesmo denominou de spencerianismo do evolucionismo (aderiu ao positivismo como método, mas tornara-se um combativo adversário da doutrina).

Em Fortaleza, na chamada Academia Francesa destaca-se Raimundo de Farias Brito, seguidor de Tobias Barreto do Recife, embora “um combatente isolado na luta pela restauração do espiritualismo”. Embora na moral e na política mais próximos de Spencer, houvera um pequeno núcleo de positivistas religiosos sob direção à distância de Miguel Lemos, no qual destacam-se Aníbal Falcão e Martins Júnior. A despeito disso torna-se evidente a predominância de um positivismo multifacetado tencionado a “conjugar o método positivo com o liberalismo político o que originou um positivismo híbrido em muito semelhante aquele que grassou pela maioria dos países da América Latina”.

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É isso!


Fonte:
Jaeder Fernandes Cunha: “O Tráfico Lícito no Atlântico: Importação de Idéias no Brasil Oitocentista. Legado Luso, Desdobramentos e a Relevância do Cientificismo nos Debates das Elites Dirigente e Intelectual da “Geração de Setenta”. (Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em História da Ciência pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Prof. Doutor José Luiz Goldfarb). Pontifícia Universidade Católica – PUC. São Paulo, 2008.

Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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