Eugenia, pseudociência do irracionalismo

“Mesmo com o advento da bacteriologia, que, do ponto de vista científico, exigem-se instrumentais técnicos cada vez mais complexos para as observações dos movimentos e funcionamento dos microorganismos, em virtude da inerente dificuldade em apropriar-se materialmente de tais elementos, que, literalmente, não são apreendidos a olho nu, as questões de raça, clima ou condição social influenciavam fortemente as idéias de vários cientistas higienistas e sanitaristas. Isso significa dizer, em outras palavras que, apesar de se lançarem a uma prática materialista de observação em seus laboratórios, mapeando e procurando apreender a etiologia de bactérias e bacilos, em longos anos de experimentos, tal práxis não fora suficientemente capaz de refutar idéias preconceituosas, calcadas numa visão de classe que objetivava domesticar e controlar o proletariado. Apesar de alguns sanitaristas brasileiros de boa-fé intelectual terem dado sua vida pela causa da superação dos grandes males que eles consideravam ser do Brasil, como herança colonial, composição étnica da população, ausência de poder público na educação e saúde, seu trabalho não se torna mais científico se os mesmos não aceitarem entrar em choque contra os interesses do capital, que não se subordina a uma relação social, ao contrário, a constrói organizando-a em quase todas as instâncias da vida. A ciência requer autonomia.

No entanto, vale lembrar que tal influência não surge espontaneamente, agregando-se ao pesquisador de forma passiva. Há um momento histórico pertinente que possibilita a construção de preconceitos e estratagemas para difundi-los (como através do trabalho considerado científico e chancelado pela elite governante), sobre o qual – o momento histórico – as posições ideológicas dos/as cientistas se adequam levando em conta suas posturas de classe, ainda que o/a mesmo/a afirme que sua atividade científica seja balizada pela neutralidade que ele/a julga conter em seu trabalho. O que, de fato, leva cientistas a considerarem questões de raça, tamanho de crânio (antropometria), etc. como elementos pressupostos de cientificidade é o irracionalismo filosófico que embasa uma parcela das ciências – originando, inclusive, pseudociências, como é o caso do eugenismo. E esse irracionalismo é fruto direto do totalitarismo que se engendra com o imperialismo, cujo fruto mais relevante fora o fascismo, que triunfava durante a década de 1930. Cabe ao irracionalismo ocultar a crise da burguesia imperialista, que encaminhava a humanidade para a Segunda Guerra Mundial. Quanto à questão das falsas teses raciais e eugênicas – que estabeleciam que a humanidade se dividia em raças superiores (arianas) e inferiores –, que ganharam terreno na América Latina, Sodré (1965) lança luz sobre a historiografia para discutir tal tema:

Às áreas que haviam permanecido sob regime colonial, ainda aquelas que tinham conquistado a autonomia política, mantendo formas de exploração meramente subsidiárias, subalternas e complementares, não se poderiam conceber condições iguais às que vigoravam, embora por força da natureza, naquelas de onde partiram os elementos humanos e materiais que as haviam aberto e fecundado. Dessa fase é que se originam os preconceitos de raça, de clima, de religião, que se fundam em escalas de valor, não apreciando as raças, os climas, as religiões como diferentes, mas sob uma escala comparativa em qualidade: climas bons e climas ruins, raças inferiores e raças superiores, religiões adiantadas e religiões atrasadas. Todo o complexo que muitos distinguem hoje sob a palavra cultura, em seu sentido sociológico, ficava subordinado a padrões de referência, conferindo-se a cada um de seus elementos um coeficiente, numa escala em que o ótimo era constituído pelo continente originário, ou mais adiantado sob o ponto de vista do desenvolvimento da riqueza; ali estava o homem mais inteligente, o ariano; ali estava o clima melhor, o temperado frio; ali estava a religião que todo mundo deveria aceitar, o cristianismo” (pág. 84).

Ainda em relação à eugenia, seu modelo epistemológico fora construído sobre alicerces das ciências naturais, cujo objetivo era revolucionar, no campo da biologia no século XX, as questões de hereditariedade. Tal modelo, que pretendia resolver questões da botânica, fora transposto ao campo das ciências sociais, cujo objetivo, no plano ideológico, era de alcançar a melhoria e a regeneração racial. Hoje sabe-se que a eugenia não passava de uma teoria racista, que buscava chancelas pseudocientíficas para sua sustentação. Os modelos ditos científicos, para as questões sociais, da escola positivista, cujo pensamento ganhava enormes terrenos entre a intelectualidade brasileira, eram advindos das ciências naturais. Os modelos das ciências naturais não têm alcance para a compreensão dos fatos sociais, uma vez que se baseiam em pressupostos cartesianos – “nós e os outros” significa poder isolar o objeto e estudá-lo a partir da neutralidade do cientista, e não significa buscar compreender as ações humanas, suas motivações e significação, e a finalidade de seus comportamentos e ações (GOLDMANN, 1979).

O encontro entre eugenia e higienismo (Boarini e Yamamoto) se deve, por exemplo, na década de 1920, com a Liga Brasileira de Higiene Mental, que tinha como objetivo a prevenção de doenças nervosas e mentais, observando os princípios de higiene geral, cujo alvo era a prevenção do indivíduo não doente e não a cura do doente (grifos meus). O projeto eugênico espraiou-se pelos meios escolares, profissionais e sociais em geral.

Reforçamos, assim, que a crítica à pseudociência da eugenia pode nos mostrar que, por intermédio de discursos travestidos de uma roupagem aparentemente racional e científica, o que existe, na realidade, é um obscurantismo do conhecimento, propositadamente manipulado para justificar ações políticas com um aval reificado de caracteres científicos. Hobsbawm (1998a), discute os modelos biológicos adotados por neopositivistas para tentar explicar o mundo social:

O que tornou a eugenia “científica” foi justamente o surgimento da genética após 1900, que parecia sugerir a exclusão total das influências ambientais na hereditariedade e a determinação, por um único gene, da maioria ou de todas as características; isto é, que o cruzamento seletivo dos seres humanos segundo o processo mendeliano era possível. Seria pouco admissível argumentar que a genética cresceu devido às preocupações da eugenia, embora haja casos de cientistas que foram atraídos para a pesquisa sobre hereditariedade “como conseqüência de um compromisso anterior com a cultura-da-raça”.

O eugenismo, que não deixou de estar presente nas concepções de saúde pública do Brasil, pertence ao campo das teorias racistas positivistas que propõem o branqueamento da população, o que traduz um irracionalismo filosófico desenvolvido a partir do século XIX, que ganha corpo no século seguinte com as teorias arianas, tendo como pensadores Cuvier, Gobineau e Galton. No Brasil, o eugenismo encarna-se, por exemplo, em Belisário Penna, Silvio Romero e Oliveira Vianna. O eugenismo foi, como informa Stepan (1991), uma ação política adotada na América Latina, principalmente no Brasil, México e Argentina.

No Brasil, a trajetória sanitarista de Belisário Penna pode ilustrar a afirmação acima, i. é, de que foi uma ação política. Penna nasceu em 1868, em Barbacena (MG), e tornou-se médico no final do século XIX. Em 1903, Oswaldo Cruz nomeou-o para dirigir os serviços de saúde pública, cargo em que realizou campanhas sanitárias. Já em 1904, Penna desenvolveu tais atividades no Rio de Janeiro. O Rio, naquela época, passava por uma forte epidemia de varíola. E havia resistência por parte da população por essas campanhas, uma vez que entendiam como violentas tais ações sanitaristas (a Revolta da Vacina é um exemplo desse tipo de movimento, no Rio do início do século XX). Penna nunca vacilou em recolher pessoas que resistissem (os pobres) para hospitais – obviamente, não era ele própria quem fazia tal recolhimento, isso significa que o mesmo havia poder de governo e, indiretamente, de polícia para pôr em prática tal tarefa. Trabalhou em Minas Gerais para combater o impaludismo (malária) entre os operários que construíam uma estrada de ferro naquele estado, de 1906 a 1909. Esteve também junto à construção da estrada de ferro Madeira-Maroré, em 1910, para dar consultoria sobre a profilaxia da malária, que também atacava operários. Foi a Belém para estudar a febre amarela e no Nordeste para verificar as condições sanitárias daquela região. Penna esteve à frente de campanhas de saneamento para o Brasil, pois isso significava, para a intelectualidade da época, a povoação e a moralização do país. Penna era um nacionalista e, na década de 1920, apoiou o Tenentismo. Nessa mesma década (1922), exonerou-se do serviço de profilaxia em saúde pública por não concordar com interferências políticas. Penna participou do movimento eugênico, ao lado de Renato Kehl, que fora seu genro. Em 1927, Penna retorna ao serviço público, desenvolvendo atividades no sul do Brasil, aposentando-se em 1933 do serviço de sanitarismo. Em 1932, Penna filiou-se à Ação Integralista Brasileira, de Plínio Salgado. Fascista, dizia que os bolcheviques eram uma calamidade.

Além de Penna, vale destacar a presença do médico Renato Kehl. Este esteve à frente do movimento eugenista, de 1917 a 1937, numa militância acirrada. Kehl defendia a esterilização de pessoas portadoras de deficiência mental e de criminosos. Para ele, não havia outra saída para a “melhora” do ser humana a não ser pela via do biológico. Conheceu a política do Holocausto e produziu até 1947 ensaios sobre eugenia; não continuou seu trabalho por ser insustentável politicamente a defesa da eugenia depois da denúncia da existência dos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Monteiro (1995), que também discute a questão eugênica no Brasil, assim a analisa:

Os eugenistas pleiteavam uma legislação que permitisse separar do todo social, e mesmo proibir a prole, a todos aqueles que não contribuíssem, ou que pudessem vir a comprometer os ideais da raça, identificados como os ‘degenerados’, os portadores de moléstias infecto-contagiosas ou de taras que pudessem ser hereditárias tais como os loucos, criminosos, alcoólatras e até mesmo os pobres, uma vez que acreditavam ser a pobreza resultante da doença e, em especial dos vícios, sendo portanto patológica” (MONTEIRO, 1995: 158).

Em suma, a intelectualidade brasileira das primeiras décadas do século XX fora fortemente influenciada pela noção de que a pobreza do país era oriunda de um povo portador de uma raça fraca – pois eram miscigenados e sofriam influências do clima tropical, não ideal para a construção de uma civilização do tipo européia. O povo, na sua maioria camponês, encontrava-se doente e pouco apto ao trabalho por ser historicamente constituído a partir de raças consideradas fracas. Em suma, a refutação do discurso da inferioridade étnica da população brasileira foi um processo difícil, pois parte da intelligentzia brasileira não negava que o Brasil era um país condenado pela raça (toda e qualquer que não fosse branca), uma vez que os elementos não brancos eram propícios à indolência. E onde há indolência, torna-se mais difícil a disciplina para o trabalho, é óbvio.

Em estudo psicossocial sobre eugenia e higienismo, Boarini e Yamamoto (2004) afirmam que, em várias instâncias da vida social – educação, saúde coletiva –, é comum que as dificuldades e problemas de uma pessoa nas relações justifiquem-se ao culpabilizar o indivíduo, deslocando-se, assim, do eixo social. Medicaliza-se e psicologiza-se para explanar questões de esfera social. Historicamente, pode-se constatar que, por exemplo, a “medicalização, salvo erro de generalização, é o cerne do pensamento higienista” (BOARINI et YAMAMOTO, 2004: 3). As instituições brasileiras tiveram, como contribuição à sua sustentação, bases teóricas de caráter higienista e eugenista, entre o final do século XIX e o começo do XX.

Deixando, por ora, a questão particular do eugenismo, que fora dirigida por sanitaristas, elevemo-nos à geral da saúde pública. Segundo Hochman (1993), a afirmação de que “as políticas de saúde pública tiveram um papel central na criação e no aumento da capacidade do Estado brasileiro de intervir sobre o território nacional e efetivamente integrá-lo” é fundamental para pensarmos sobre o processo de consolidação política do território brasileiro a partir de ações sanitaristas. Mas, também nesse texto, o autor, provavelmente por não considerar que a instância econômica, enquanto momento central da organização da vida do ser social, diz que se afasta da perspectiva de análise da saúde pública associada à dinâmica do capital, pois considerar o econômico seria lançar mão de uma visão determinista, que não responde ao processo de construção de “aparatos públicos e centralizados para implementar políticas de saúde” (HOCHMAN, 1993: 41). Lima e Hochman entendem que o movimento sanitarista brasileiro do início do século XX tinha “papel central e prolongado na reconstrução da identidade nacional, a partir da identificação da doença como elemento distintivo da condição de ser brasileiro” (LIMA et HOCHMAN, 2000: 318). Louvável tal esforço para entender a formação histórica brasileira. No entanto, tal movimento, constituído por elementos intelectuais, conscientes ou não de sua postura ideológica, respondia, na produção de ações políticas de cunho dito científico, no campo da organização da saúde pública, pela necessidade de garantir uma nascente classe trabalhadora urbana, controlada e educada minimamente para adaptar-se à nascente industrialização, que tem métodos de organização e gestão. Esta questão será tratada no Capítulo.”

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É isso!


Fonte:
Ivan Ducatti : “A hanseníase no Brasil na Era Vargas e a profilaxia do isolamento compulsório: estudos sobre o discurso científico legitimador”. (Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em História. Orientador: Prof. Dr. Marcos Antônio da Silva). Universidade São Paulo – USP. São Paulo, 2008.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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