A Abolição da Escravidão... E depois?

“Menos de um ano depois de assinada a Lei Áurea, em abril de 1889, uma comissão formada por libertos no Vale do Paraíba, em São Paulo, enviou uma carta a Rui Barbosa, então jornalista, reivindicando apoio para denunciar a pouca efetividade da legislação do fundo de emancipação de 1871 que previa recursos do governo imperial e principalmente responsabilidade dos ex-proprietários de escravizados em relação àqueles nascidos livres e beneficiados pela lei. O não cumprimento da lei ocorria, especialmente, no caso da parcela do imposto a ser destinada à “educação dos filhos dos libertos” (GOMES, 2005: 10). Vieram o regime republicano em novembro de 1889 e um ministério para Rui Barbosa em 1891, mas permaneceu a inexistência de políticas públicas para além da intolerância e da truculência.

Um mês depois da carta da comissão de libertos, em maio de 1889, também no Vale do Paraíba, uma senhora chamada Pequetita Barcelos encontrava-se bastante assustada com o primeiro aniversário da abolição, denominando o 13 e maio de “malfadado dia”. Em meio às disputas entre republicanos e monarquistas, temia por sua vida e de sua família, pois os libertos, segunda missiva enviada por ela a seus parentes, estavam “altaneiros” e já não faziam questão de outras coisas, “mas sim da raça”.

As primeiras décadas pós-emancipação foram decisivas. No mundo rural, festas e comemorações cederam lugar à apreensão. Fazendeiros, insatisfeitos com a abolição imediata, tentavam manter os ex-escravizados nas unidades produtivas, muitas vezes recorrendo ao uso da violência. Migrações de famílias negras inteiras alternavam-se com organizações coletivas, como as comunidades negras rurais. Alguns libertos negociaram permanência e relações de trabalho com antigos proprietários. O status das pessoas negras, então, oscilava entre o de camponeses, parceiros e vadios, abrindo fronteiras ou fechando portas. Nas áreas urbanas, ao contrário do êxodo rural de uma massa negra supostamente desqualificada e excluída do mercado de trabalho, assistia-se ao ressurgimento de tradições operárias, no qual o debate sobre raça e nação chegava muitas vezes à violência física, em confrontos sindicais entre trabalhadores nacionais e estrangeiros, muitos dos quais confrontos direitos entre negros e imigrantes.

Para muitos libertos, apelidados de “os 13 de maio”, em cidades como Rio de Janeiro, Salvador e Recife uma face dos debates tinha como interlocutores os propagandistas republicanos, em embates na rua e na imprensa. Também no interior foram vários os conflitos, até mesmo armados, entre libertos e propagandistas republicanos. Diante da reticência que o movimento republicano tivera em relação à escravidão e ao abolicionismo, além dos discursos republicanos, muitas vezes inspirados no racismo e determinismo científicos, criticando os desdobramentos do pós-emancipação e a politização dos libertos, não é difícil entender tal posição de alguns libertos negros. Tal confronto foi alvo de polêmicas nos jornais, sendo potencializado pelo cenário político da época. Com a organização da Guarda Negra no Rio de Janeiro, em fins de 1888, a mobilização negra ganhou nova visibilidade, provocando episódios e repercussões diversos em outras partes do Império. Teria sido criada em 1888, alguns meses após a abolição, pela Confederação Abolicionista, nas dependências do periódico abolicionista Cidade do Rio, justamente quando da comemoração do aniversário da Lei de 1871 e como uma homenagem à Princesa Isabel que recebera do Papa Leão XVII a Rosa de Ouro. Ali, teriam se reunido abolicionistas como João Clapp, José do Patrocínio e representantes da Liga dos Homens de Cor. A Guarda Negra seria uma organização de libertos que teria como objetivo proteger a liberdade do “negros” e, em especial, a figura da Princesa Isabel que a representava.

O aparecimento da Guarda Negra, na imprensa, em julho de 1888, coincide com uma campanha de recrutamento militar forçado que tinha como alvos os capoeiras e os considerados “vadios”. A guerra nas ruas estava declarada.

A notícia da criação da Guarda Negra provocou alvoroço, surgindo especulações sobre seus objetivos, influências e lideranças. Na cidade de São Paulo, os periódicos Província de São Paulo e a Redenção registraram polêmicas sobre a Guarda Negra. Em Campinas, no começo de 1889 um grupo de libertos distribuíram um documento intitulado “Protestos dos homens de cor” que, dentre outras coisas, dizia:

Os libertos, aqui reunidos em assembléia popular para tratarem do interesse da sua classe, vêm declarar que de modo algum concordam com a organização da Guarda Negra com o fim de defender o trono da Princesa (Apud GOMES, 2005: 16).

Em São Luís, um grupo de pessoas negras reagiu à proclamação da República invadindo a redação do periódico republicano O Globo, sendo imediatamente reprimida pela força policial local, com a morte de vários ex-escravizados.

Após um confronto em um comício republicano, em 30 de dezembro de 1888, na cidade do Rio de Janeiro, no qual houve tiros e muitos feridos, em função da intervenção policial, periódicos diversos revezavam-se noticiando o conflito com interpretações variadas. As folhas republicanas consideravam a Guarda Negra uma milícia de navalhistas e capoeiras arregimentada pelo ministério do conservador João Alfredo para intimidar e provocar os “seguidores dos ideais republicanos”. O que mais assustava observadores da época era a deflagração de um conflito aberto entre libertos e republicanos, o que levou a reforçar imagens de manipulação política. Porém, algumas vezes, o discurso da manipulação cedia lugar ao discurso do terror, como os que impressionaram a senhora Pequetita Barcelos.

Alguns periódicos abolicionistas e políticos como José do Patrocínio saíram em defesa da Guarda Negra, apontando outras razões para o conflito naquele comício. Os editoriais de José do Patrocínio esforçavam-se por elaborar uma versão racional da ação da população de cor*contra os republicanos durante o comício de Silva Jardim, afirmando que a Guarda Negra, ao invés de um grupo de desordeiros, era “um partido político tão legítimo como outro qualquer”, sendo um grupo representativo de “negros” livres e libertos. Tentava-se, então, articular a questão racial no discurso político público, além da emergência da expectativa do surgimento de um possível confronto político racial.

A questão racial, aparentemente tornada invisível na campanha abolicionista, surgira cristalina em torno da participação da Guarda Negra. Enquanto setores republicanos diziam que evocá-la era manipulação monarquista, políticos negros e setores organizados como a Liga dos Homens de Cor tentavam colocá-la na pauta dos debates (GOMES, 2005: 20).

Enquanto alguns libertos eram estigmatizados sendo chamados de “13 de maio”, fazendeiros e políticos foram apelidados de “republicanos de 14 de maio”, nos meses que sucederam à abolição. A demanda frustrada dos fazendeiros por indenização soava muitas vezes como tentativa de reescravização. Os libertos perceberam rapidamente que seus ex-senhores haviam trocado suas roupas de fazendeiros por fardas republicanas.

O tema racial foi usado freqüentemente como recurso político para mobilizar a população da Corte em defesa dos interesses abolicionistas. Patrocínio acusava a propaganda republicana de expressar um ódio aos “homens de cor”, resultante da insatisfação dos setores agrários com a abolição:

O modo como os republicanos de 14 de maio estão dirigindo a propaganda contra as instituições vigentes tem provocado em toda parte do país a maior indignação. Desnaturado o sagrado ideal da República, servem-se dele como a arma de vingança contra a Monarquia, os quais não queriam e não querem ainda agora se conformar com a igualdade de todos os brasileiros. Contra os homens de cor são vulcânicas as explosões de ódio (Cidade do Rio 31/12/1888 apud GOMES, 2005:21).

Reclamando indenização, defendendo interesses privados e preocupados com o controle do trabalho dos ex-escravizados, os “republicanos de 14 de maio” haviam, segundo Patrocínio, “desnaturado o sagrado ideal da República”. O ardor com que atacavam a Monarquia e os libertos soava à intolerância racial.

Em outro momento dirá, ainda, Patrocínio:

(...) explorando a má vontade dos ex- senhores contra os libertos,(...) açulavam o ódio contra a raça negra, insinuando, para ser agradável aos fazendeiros, que a República não tarda e que com ela virá imediatamente a indenização e a opressão para o liberto (Cidade do Rio 02/03/1889 apud GOMES, 2005: 22).

Patrocínio, sendo um político mulato, sofria constantes e agressivos ataques racistas. Em 1881, a se casar com uma mulher branca, foi violentamente atacado por parte da imprensa. Nem os abolicionistas brancos, seus correligionários, lhe pouparam acusações de cunho racista. Por isso, assim como Luís Gama, Patrocínio tomou como acusações quase pessoais os termos raciais encontrados nos debates sobre o fim da escravidão. Porém, segundo Gomes, as acusações de preconceito racial visavam, muito mais, apontar o absurdo que seriam tais discriminações numa sociedade miscigenada e sem ódios raciais do que de denunciar as elites que tratavam a questão da emancipação. Isso reforça nossa afirmação anterior de que setores dos movimentos sociais negros também articularam o discurso da miscigenação e da cordialidade racial brasileira.

Enquanto articulistas políticos se enfrentavam na imprensa, as ruas da cidade do Rio de Janeiro eram ocupadas por libertos e militantes republicanos que defendiam através de conflitos violentos suas opções políticas. Republicanos, precavendo-se contra a agitação pró-monárquica da maior parte da população negra da Corte, iam armados aos comícios e vários deles descarregavam os revólveres contra pessoas negras armadas de paus e pedras. A imprensa reduzia os conflitos a uma ação dos “pretos monarquistas pobres” contra os “brancos republicanos de boa família”. Os primeiros “massa ignorante” e não “sujeito político” seriam manipulados pelas elites conservadoras.

Porém, os discursos em torno da Guarda Negra e da mobilização racial são um emaranhado de lutas, projetos e expectativas que articulavam percepções diversas de libertos no urbano e no rural a respeito de “raça”, “cidadania”, “liberdade” e “trabalho”, bem como disputas simbólicas de setores abolicionistas, monarquistas e republicanos, tendo vários sentidos e significados para diferentes agentes e personagens. Mais do que projetos antagônicos, supostamente desvirtuados ou monopolizados, havia disputa e articulação de símbolos, emblemas e significados diversos envolvendo aqueles conflitos, na constituição de um projeto hegemônico pós-abolicionista.

Com o golpe militar republicano de 15 de novembro de 1889, a Guarda Negra desaparece dos noticiários jornalísticos e das intrigas entre militantes monarquistas e republicanos.

O Código Penal de 11 de outubro de 1890, modernizando o sistema jurídico brasileiro, aboliu a pena de morte e instalou um regime penitenciário correcional, fixou a responsabilidade penal em 9 anos (segundo Nina Rodrigues, “as raças inferiores chegam à puberdade mais cedo que as superiores”), criminalizou a capoeiragem (tão inconveniente em tempos da campanha republicana), o curandeirismo e o espiritismo (perseguindo as expressões religiosas e de sabedoria de matriz africana e indígena), a mendicância e a vadiagem (como defendia Nina Rodrigues, os selvagens seriam incapazes para um trabalho físico continuado e regular, conforme a fisiologia comparada das raças humanas).

Entre dezembro de 1889 e o final de 1890, eclodiram greves e protestos de carpinteiros navais, tecelões, gráficos, alfaiates e carroceiros, nem todos libertos ou negros, mas que buscavam recuperar o processo de formação da classe operária em suas dimensões étnicas. O aparato legal e policial da intolerância republicana invadiu ruas e cortiços atrás de capoeiras, “desordeiros” e “vadios”.

Porém, as mobilizações não pararam de acontecer: conflitos entre fazendeiros e seus ex-escravizados sobre a posse e o uso da terra e sobre o controle da mão-de-obra, migrações para outras áreas rurais e urbanas, organizações camponesas e sindicais e outros formatos de organização e ação política rearticularam os discursos do período pós-emancipação, ainda que a partir de narrativas nas quais as questões raciais não eram exclusivas ou explícitas. A questão racial ainda não tinha sido articulada em um discurso racial emancipatório e próprio, politicamente independente. Isso irá mudar nas primeiras décadas do século XX.”

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É isso!


Fonte:
Ronaldo Laurentino de Sales Júnior: “RAÇA E JUSTIÇA O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA”. (Tese elaborada sob orientação da Profª Drª Silke Weber e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco para obtenção do grau de Doutor em Sociologia). Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2006.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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