“Devemos ressaltar o fato de que a doutrina espírita desde Kardec tinha como princípio o fato de terem, além do caráter filosófico e religioso, a cientificidade, através da observação e empirismo (experimentação). Uma das idéias fortes do espiritismo é de que a doutrina é complementar à ciência vigente, ou seja, a de meados do século XIX, quando houve a publicação das obras de Allan Kardec.
Um dos exemplos interessantes sobre a incorporação de preceitos oriundos de teorias científicas em voga em uma determinada época pelo kardecismo é acerca da questão da evolução das almas e das espécies, que foi baseada na teoria da evolução de Charles Darwin. Kardec teve contato com as idéias deste cientista após a publicação de “O Livro dos Espíritos” (1857), já que a obra que consolida o novo paradigma científico da época, “A Origem das Espécies”, é de 1859. A visão darwinista foi incorporada no livro de Kardec “A Gênese”, de 1868, atualizando pressupostos da doutrina espírita acerca da origem do homem.
Porém, antes mesmo de ter contato com o novo paradigma de Charles Darwin sobre evolução, Kardec apresentava idéias sobre progresso espiritual. Em “O Livro dos Espíritos”, afirma que a alma humana reencarnava sucessivas vezes para se aprimorar e progredir. Tal progresso espiritual se efetuava através de uma longa cadeia de existências encarnadas, provas e sofrimentos que contribuíam para a evolução moral do ser humano. Desta maneira, dentro da concepção evolutiva e progressiva apresentada pela doutrina espírita, os ciclos sucessivos de reencarnação permitiriam o aprimoramento da alma para chegar às formas espirituais superiores e puras, cumprindo missões cada vez mais adequadas, até alcançar estágios superiores da espiritualidade. Segundo Sandra Stoll, haveria uma tensão entre duas forças, as quais definiriam a concepção espírita de evolução: por um lado, o processo de evolução como uma lei, que remeteria à formulação das ciências naturais e, por outro, coloca também a sujeição do funcionamento do processo da evolução ao exercício do livre-arbítrio do homem.
Como vimos, “O livro dos espíritos” (1857) é publicado dois anos antes do livro de Darwin, “A origem das espécies” (1859), que consolida o paradigma evolucionista que passa a predominar a partir de meados do século XIX. Nesta obra, Kardec reproduz a visão científica dominante à época, que é a poligenia e, portanto, “neste primeiro livro de Allan Kardec, a idéia de uma origem comum a todas as raças humanas, tese difundida pelos monogenistas, não se coloca”. A publicação do livro de Darwin dilui os debates: postula a unidade da espécie e a origem comum de todas as raças humanas. Estas idéias tiveram impacto no Espiritismo, havendo algumas mudanças na postura de Allan Kardec sobre o tema.
Na obra “A Gênese” (1968), Kardec atualiza pressupostos da doutrina espírita em decorrência da incorporação de idéias que traduziam o pensamento das nascentes correntes que vinham conquistando hegemonia no campo científico. Nesta obra, descarta a idéia de Criação, porém não endossa todos os postulados das novas teorias evolucionistas, sendoreticente com relação à questão da origem das raças humanas. O que Kardec sustenta é uma combinação de idéias que se sedimentam em versões concorrentes do evolucionismo: 1) defende a tese corrente entre os monogenistas de que a humanidade teria uma origem única (a princípio divina, depois natural); 2) mantém o argumento dos poligenistas quanto à pluralidade de origem das raças que conformam o gênero humano”.
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É isso!
Fonte:
Roberta Müller Scafuto Scoton: “ESPÍRITAS ENLOUQUECEM OU ESPÍRITOS CURAM? UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES, CONFLITOS, DEBATES E DIÁLOGOS ENTRE MÉDICOS E KARDECISTAS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX - JUIZ DE FORA-MG”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Ciência da Religião. Orientador: Prof. Dr. Francisco Luiz Pereira da Silva Neto). Juiz de Fora, 2007.
Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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