“A vontade é um ato da alma e o homem não é apenas uma substância pensante, nem uma dualidade absoluta, mas uma mistura, uma união substancial. Se como substância extensa está preso aos determinismos físicos, como podem ser livres, então, seus atos no mundo? A Alma não age no mundo sem o corpo, mas age através dele. E isso Descartes nos diz, por exemplo, para apoiar suas afirmações acerca das paixões:
(...) há tal ligação entre a nossa alma e o nosso corpo que, quando se uniu uma vez qualquer ação corporal com algum pensamento, nenhum dos dois torna a apresentar-se a nós sem que o outro também esteja presente” (Paixões, II, Os Pensadores, p. 275)
Como a vontade está relacionada de forma íntima com todas as ações humanas, seria natural pensar que a liberdade da vontade não assegura somente nossa liberdade de julgamento,mas também nossa liberdade de intervenção no mundo.
Nos Princípios, o que antecede a afirmação cartesiana de que “estamos tão conscientes da liberdade e da indiferença que existe em nós que nada há que conheçamos mais claramente” é a questão de como Deus que preordenou o mundo, “deixa indeterminadas as livres ações dos homens”. Nas Meditações temos que
[A vontade] consiste somente em que podemos fazer uma coisa ou deixar de fazer (isto é, afirmar ou negar, perseguir ou fugir) ou, antes, somente em que, para afirmar ou negar, perseguir ou fugir às coisas que o entendimento nos propõe, agimos de tal maneira que não sentimos absolutamente que alguma força exterior nos obrigue (Meditações, IV, Os Pensadores, p. 126).
Gostaríamos de remarcar nessa passagem que a explicitação do “fazer”, nas Meditações, nos parece indicar que o poder da vontade não é simplesmente o de assentir ou não - “afirmar ou negar”. Já nos Princípios, às “ações dos homens” correspondem todos os tipos de ações humanas. Assim sendo, a ação da vontade não se restringe apenas a julgar algo certo ou errado ou, ainda, não julgar, mas refere-se, em um sentido mais amplo, a fazer ou não fazer qualquer coisa. Pedimos licença, então, para repetir aqui um trecho já citado:
Nossas vontades são, novamente, de duas espécies; pois umas são ações da alma que terminam na própria alma, como quando queremos amar a Deus ou, em geral, aplicar nossos pensamentos a qualquer objeto que não é material; as outras são as ações da alma que terminam em nosso corpo, como quando queremos andar e nós caminhamos. (Paixões, I, Os Pensadores, Art.18, p. 234)
Assim, consideraremos que em Descartes toda ação livre é antes um ato volitivo e que um discurso sobre a vontade se estenderia a um discurso sobre a liberdade da ação humana, uma ação que, enquanto volitiva, é ação da alma, porém, é através do corpo que chega ao mundo. Poderíamos dizer talvez, que até aqui o homem é metafisicamente livre, enquanto coisa pensante que quer e que não quer. Possui uma vontade livre que se expressa, sobretudo, na resolução da vontade. Na metafísica também é substância diversa, ontologicamente apartada de Deus, o que lhe garante ser auto-suficiente, que é um outro aspecto de liberdade. A liberdade da alma lhe garante também certo domínio sobre os efeitos sentidos na alma através das ações que vêm do corpo, como vimos anteriormente. Porém, poderia a espontaneidade da alma vencer o determinismo do mundo? Considerando o mecanicismo, ainda podemos falar em ação livre do homem? Se “Deus fabricou nosso corpo como uma máquina, e ele quis que funcionasse como um instrumento universal, que produz sempre seu efeito da mesma maneira conforme suas leis”, como se dá essa liberdade?
Sabemos que o problema da liberdade das ações humanas não será colocado por Descartes no contexto do mundo máquina, mas no contexto das paixões, ou seja, enquanto vontades (ações da alma) e sua relação com as paixões (ações do corpo). Todavia, podemos dizer que o reconhece (Princípios I, 41).
Após tais considerações, vejamos como a mesma questão é colocada por alguns comentadores. Comecemos por Jean Laporte:
Quando eu movo meu braço por um esforço voluntário, o movimento dessa forma imprime não a simples continuação daquele que existia anteriormente seja no braço seja no resto do organismo. Meu braço se move porque minha vontade quis movê-lo. Há certamente aí alguma coisa de novo e que não pode ser reconduzido a nada de anterior, porque minha vontade é livre, e pode sempre, diante de um situação dada, decidir-se num sentido ou no sentido contrário. A lei de conservação não é, portanto, respeitada. (LAPORTE, 1945, pp. 245-46).
Continuemos com Baertschi,
Quando a alma move a glândula pineal, ela aumenta a quantidade de movimento dessa última. Ora ela contradiz a lei de conservação da quantidade de movimento no universo, enunciada assim por Descartes: ‘há uma certa quantidade de movimento em toda matéria criada que não aumenta nem diminui jamais.’(BAERTSCHI, 1992, p. 81).
E, finalmente, perguntemos com Gordom Baker (1996:54) se “nós não precisamos no mínimo considerar a possibilidade de que pensamentos são causas finais de movimentos?”; e concluamos também com ele: “(...) a alternativa é aceitar que os princípios fundamentais de sua física são logicamente incompatíveis com uma das principais idéias do dualismo”.
Todavia devemos também considerar a falta de elementos textuais para encerrar aqui a questão, afinal Descartes admite não ter experiências suficientes para atestar conhecimentos da natureza humana e sabemos que seus estudos sobre o homem ficaram incompletos.
De fato, também se pode dizer que o problema levantado não interdita o prosseguimento das investigações de Descartes. Apesar de não negar que a união substancial e as coisas relacionadas a ela sejam contraditórias, também diz que a experiência garante a união substancial ainda que o entendimento não consiga concebê-la. Logo podemos concluir que: ainda que não possamos compreender simultaneamente que uma ação voluntária pode ser fonte de força para um movimento e a quantidade de movimento no mundo permanece constante, não podemos negar o princípio de conservação, que é uma verdade eterna, e tão pouco a liberdade da ação, porque, embora qualquer coisa relacionada à união substancial seja obscura, podemos ter dela uma experiência clara:
Nada mais difícil de explicar, mas a experiência aqui basta, que é aqui tão clara que não a meio de assegurar o contrário, como aparece nas paixões, etc.” (Entretien avec Burman, Ed. Beyssade, texto 33, p. 88, tradução nossa)
À mesma conclusão chegamos junto com o filósofo, quando tratamos do livre arbítrio. Acrescento, como apoio, as palavras de Lívio Teixeira (1990: 98) sobre a união da alma com o corpo “trata-se de um mistério da natureza, de algo incompreensível ao entendimento humano, ainda que irrecusável ao fato da experiência”.E não é outro o entendimento proposto por Descartes: o fato é que o homem age no mundo munido de corpo e de alma, de maneira voluntária.
No entanto, ensaiaremos possíveis formas de se solucionar o problema e relacionar de maneira pacífica a vontade livre, a união substancial e o mecanicismo.
Um modelo de resposta à questão
Leibiniz tentará resolver este problema. Segundo o filósofo, a alma não alteraria a quantidade de movimento, mas teria o poder de mudar sua direção. O poder da alma é comparado ao do cavaleiro sobre o cavalo. A diferença é que sabemos como o cavaleiro muda a direção do cavalo, mas não podemos dizer o mesmo sobre os meios pelos quais a alma atua sobre o corpo, e erramos em tentar explicar que a alma atua sobre um corpo pela maneira que os corpos atuam uns sobre os outros. Porém, Leibiniz não considera que a alma pode gerar movimento, discordando da seguinte afirmação de Descartes:
(...) a máquina do corpo é de tal forma composta que, pelo sim ples fato de seressa glândula diversamente movida pela alma ou por qualquer outra causa que possa existir, impele os espíritos animais que a circundam para os poros do cérebro, que os conduzem pelos nervos aos músculos, mediante o que os leva a mover os membros (Paixões, I, Os Pensadores, art. 34, p. 240) E toda ação da alma consiste em que, simplesmente por querer alguma coisa, leva a pequena glândula, à qual está estreitamente unida, a mover-se da maneira necessária a fim de produzir o efeito que se relaciona com esta vontade (Ibidem, art. 41, p. 243)
Como já foi dito, para a pergunta: em que medida a espontaneidade da alma garante a liberdade das ações humanas no mundo, enquanto este mundo é feito de engrenagens cujos movimentos têm Deus como fonte primária e obedecem às leis da natureza?, apenas podemos elaborar um modelo de resposta por falta de elementos textuais.
Propomos imaginar a liberdade não como sendo um espaço de criação ou introdução do absolutamente novo (pelo menos não para Deus), mas que Deus usa de nossa vontade como ocasião de movimento para manter o equilíbrio e, assim, a imutabilidade geral.
Uma carta de Descartes, em particular, exemplifica a tese. Escrita para Elisabeth em janeiro de 1646, nela Descartes, buscando uma comparação, fala de um rei que, ciente das vontades de dois fidalgos de duelarem, arranja o encontro deles sem o conhecimento de ambos. O que Descartes parece querer dizer é que o arranjo do rei e o fato de conhecer as intenções dos cavalheiros não interfere em suas vontades. Descartes usa tal relato como metáfora para afirmar que Deus age com relação à vontade do sujeito, de maneira semelhante ao rei, diante dos fidalgos – semelhante, mas não igual, já que Deus conta com a onisciência e onipotência, logo é mais abrangente e perfeito em seus “arranjos”:
Se um rei que proibiu os duelos, e que sabe muito seguramente que dois fidalgos de seu reino, que moram em cidades diferentes, têm uma rusga, e estão totalmente inflamados um contra o outro, que nada os poderia impedir de lutar caso se encontrassem; se, eu digo, esse rei dá a um deles alguma incumbência para ir certo dia à cidade onde está o outro, e que ele dá também uma incumbência a este outro para ir no mesmo dia ao lugar onde está o primeiro, ele sabe bem seguramente que eles não deixaram de se encontrar, e de lutar, e assim de contrariar a sua proibição, mas ele não os constrange por isso; e seu conhecimento, e mesmo a vontade que ele teve de determiná-los dessa forma, não impede que seja tão voluntária quanto livremente que eles lutam, quando de seu encontro, como eles teriam feito se ele não tivesse sabido de nada, e tivesse sido por acaso que eles se encontrassem. E eles podem também justamente ser punidos, pelo fato de terem contrariado a sua proibição. Ora isso que o rei pode fazer nesse caso, com respeito a quaisquer ações livres de seus súditos, Deus, que tem uma presciência e um poder infinito, o faz infalivelmente com respeito a todas as ações livres dos homens. E antes que ele nos tivesse enviado a este mundo, ele sabia exatamente quais seriam todas as inclinações de nossa vontade; é ele mesmo quem as colocou em nós, é ele também quem dispôs todas as outras coisas que estão fora de nós, para fazer que tais e tais objetos se apresentassem a nossos sentidos em tal e tal tempo, ocasião das quais ele sabia que nosso livre arbítrio nos determinaria a tal ou tal coisa; e ele o quis assim, mas ele não quis com isso constrangê-lo. E como podemos distinguir nesse rei dois diferentes graus de vontade, um pelo qual ele quis que seus fidalgos lutassem, porque ele fez com que eles se encontrassem, e outro pelo qual ele não o quis, porque ele proibiu os duelos; assim os teólogos distinguem em Deus uma vontade absoluta e independente, pela qual ele quer que todas as coisas aconteçam assim como elas acontecem e uma outra que é relativa, e que se relaciona ao mérito ou demérito dos homens, pela qual ele quer que nós obedeçamos as suas leis”. (A Elisabeth, janeiro de 1646, ed. Grimaldi, p. 114-15; AT IV, pp. 353-354, tradução nossa)
Podemos pensar, então, que enquanto substância que tem subsistência (“subexistência”), o homem teria também “sub-voluntariedade” que é auto-suficiente de fato e de direito, como a “sub-existência” o é, e que, por outro lado, reserva ainda dependência em relação a Deus. Assim, a liberdade das ações apenas está submetida a Deus, que pode controlar a ocasião em que acontecem. A vontade é livre, porque partiria apenas do sujeito, mas, enquanto se converte em ação e movimento, a ação, voluntária originalmente, estará submetida ao uso deDeus, às leis do mundo, e por sua vez se encaixa e se acomoda às engrenagens no momento oportuno, conforme a vontade de Deus. Poderíamos, ainda, pensar em que sentido a Física antecede a Moral: é importante conhecer os mecanismos do mundo, a fim de potencializar ações humanas.
Aqui temos, pois, uma presciência diferente da que encontramos em Santo Agostinho. Para ele parece que as coisas acontecem “quando têm de acontecer” – e Deus sabe quando seria –, já em Descartes, no momento em que Deus quis que algo acontecesse – Ele sabe porque ele escolheu esse momento –, e ainda que a vontade parta do sujeito, Deus pode usá-la e controlar a ocasião em que deve ocorrer o movimento. Se a alma é, pois, fonte de movimento, Deus terá na vontade a ocasião para o movimento e pode, por meio de sua onisciência, manter o controle da quantidade de movimento no mundo.
A carta, pois, parece resolver nosso problema. Ao questionamento sobre o fato de “que o sujeito da ação pode controlar seus estados internos que causam suas ações” aparentemente a resposta é sim, a vontade é espontânea. O que não está sob seu controle é o momento quando a ação passa a fazer parte do mundo, assim como a disposição dos objetos que incitarão o seu querer. Esse querer parte tão somente dele, mas o uso das ações não estará sob seu controle. O uso das ações, por assim dizer, será, antes, controlado por Deus através das lei uniformes da natureza. Não há, pois, como se realizar um movimento voluntário que já não tenha seu uso no mundo, uma ocasião certa de acontecer. Não há como surpreender Deus. Nossos movimentos voluntários de alguma forma já estavam previstos e foram adequadamente dispostos no mundo.
Podemos, talvez, ainda chegar à hipótese de um certo “deus manipulador”, que tal como o rei que escolhe o momento em que o duelo deve acontecer, manipula as situações do mundo de acordo com as nossas vontades livres, a fim de dar ocasião, na verdade, à conservação do mundo tal com foi criado. Obviamente que este Deus manipula livre de qualquer negatividade, apenas com o propósito da conservação. Vale lembrar que tal tese é compatível com a atividade recriadora de Deus, com a interferência de Deus no mundo a cada instante sem, contudo, interferir na vontade do sujeito. Mais do que isso, a tese do deus manipulador faria parte da tese da criação contínua. E assim:
(...) tudo é conduzido pela providência divina cujo decreto eterno é de tal modo infalível e imutável que, excetuando as coisas que este mesmo decreto quis pôr na dependência de nosso livre arbítrio, devemos pensar que, com respeito a nós, nada acontece que não seja necessário e como que fatal, de sorte que não podemos sem erro desejar que aconteça de outra forma. (Paixões, Os Pensadores, art. 146, p. 280)
Haveria, pois, liberdade em minhas ações no mundo onde Deus permitiu que houvesse. Devemos lembrar, no entanto, que esta interpretação se propõe a ser apenas um modelo de resposta que apresenta problemas como, por exemplo, a pouca base textual para apoiá-la. Além disso, ao considerar seriamente o que nos propõe a carta de janeiro de 1646, cairíamos num problema talvez ainda maior : o de termos nossas vontades dispostas por Deus em nós. Afinal, como assegurar “que o sujeito da ação pode controlar seus estados internos que causam suas ações” diante da afirmação de que Deus dispôs no sujeito as inclinações de sua vontade? Diante disso, como afirmar que há liberdade para querer qualquer coisa, por exemplo? Enfim, o problema persiste.”
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Fonte:
Geisa Mara Batista: “DEUS E A FÍSICA MECANICISTA COMO DESAFIOS À QUESTÃO DA LIBERDADE HUMANA EM DESCARTES”. (Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Filosofia. Área de concentração: Filosofia Moderna Orientadora: Profa. Dra. Telma Birchal Universidade Federal de Minas Gerais). Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Belo Horizonte, 2006
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
A física e suas implicações morais
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