O culto aos heróis mortos

LORD BYRON NO SEU LEITO DE MORTE

“As coletividades, através de inúmeros fatores, definem o que deve ser representado, lembrado e cultuado, e o que deve ser esquecido. Aquilo que deve ser lembrado é objeto de ritos e celebrações. Nos casos atuais de dimensão nacional, das comemorações cívicas, o cumprimento da tarefa de recordar refere-se aos grandes feitos e aos seus protagonistas.

Será com o Iluminismo que o culto aos homens de grande valor ganhará força. No mundo ocidental, no século XIX e inicio do século XX, os grandes acontecimentos e os importantes heróis deveriam ser lembrados como modelo e proeminência histórica que o devir alcançaria, atingindo assim, a sociedade perfeita.

Nesse sentido Fernando Catroga refere que a “comemoração implicava, portanto, uma clara finalidade revivescente, não obstante o seu espetáculo também remeter para uma analogia com o próprio culto cemiterial dos mortos, pois, como na própria época se reconhecia, havia algo de fúnebre nas pompas e préstitos comemorativos”. Segundo Catroga

Para os positivistas, não havia dúvidas – os mortos governavam os vivos; e, para outros, como Ricardo Jorge, tudo mostrava que “o homem hodierno deriva diretamente do passado, como um sigma de séries convergentes dos seus ascendentes históricos”. Esta convicção historicista levava-o a concluir que “a alma moderna é uma estratificação das civilizações pretéritas”, pelo que, em certo sentido, o já morto (o passado) continuaria a viver no presente. Isto é, as novas concepções sobre a morte escudavam-se no evolucionismo naturalista, antropológico e histórico característico da modernidade, modo indireto de se perceber por que é que o século XIX foi, simultaneamente, o “século dos mortos” e o “século da história”.

Esse escudamento das concepções sobre a morte, ligadas ao evolucionismo naturalista, produziam uma certeza inabalável da eternidade da matéria, da transformação do ser. A morte não seria o fim. O morto apenas se modificaria, evoluindo.

Foi com o positivismo comtiano que o culto aos mortos recebeu status de extraordinário acontecimento social. Para os atores sociais mais importantes eram produzidas exéquias sultuosas e extremamente ritualísticas, realizando-se também discursos enaltecendo as qualidades do falecido e pompas fúnebres que alçavam o funeral ao patamar de grande espetáculo coletivo. Todos esses elementos de profunda devoção tinham como objetivo fazer com que o morto escapasse da condenação de não fazer parte da memória coletiva. Refere Catroga

Por outro lado, relembre-se que, se, já no iluminismo, se havia sublinhado a importância educativa do culto dos mortos, foi no positivismo comtiano que esta vertente recebeu um
tratamento mais sistemático; este deu cobertura teórica ao fomento de um novo ritualismo cívico-religioso apostado em combater as anomias provocadas pelo avanço da sociedade urbano-industrial e dos seus efeitos atomizadores. Comte procurou mesmo institucionalizar uma solução inspirada no modelo do próprio catolicismo. Sem irem tão longe, os cultuadores cívicos portugueses não deixaram de ter presente a concepção positivista do post-mortem, acasalando-a, todavia, com proposições filosóficas de cariz materialista. Daí, que não se cansassem de destacar o valor pedagógico-cívico do culto dos mortos, e de prometer a “incorporação subjetiva” da exemplaridade do antepassado no empíreo da memória coletiva.

A importância conferida à memória do morto era elemento vital do culto aos mortos nesse período. Para Catroga “A memória era apresentada, assim, como a morada da nova eternidade, promessa que servia de argumento decisivo para se recalcar a angústia perante a morte, e para se semear uma esperança que funcionasse como ideal normativo”. Dessa forma, os homens venceriam a morte, e, principalmente, o esquecimento. Catroga exemplifica:

Isto é, e segundo as palavras do operário Isidoro Gomes Pinheiro, um morto é “apenas um cadáver que vai desaparecer!”; mas, “em compensação, ficará a memória”. E como dizia Sebastião de Magalhães Lima no funeral de José Elias Garcia (1891), “para os grandes homens a morte não é o desaparecimento – é sagração; não é aniquilamento – é apoteose!” e ascensão ao céu substitutivo; destino que, em 1910, Teófilo Braga enaltecia com a esta convicção:
“Eu tenho para mim que, se não há a imortalidade da alma, existe a imortalidade da memória.

Interessante perceber que, mesmo em uma época na qual se acreditou ser a ciência o caminho para a luz, a prosperidade e o progresso, os ritos fúnebres ainda traziam evidentes semelhanças com as práticas realizadas em tempos remotos, nos quais o poder era conduzido pela magia. Isso ocorria como numa reatualização de um conjunto de formas empregadas com o intuito de adaptar desejos e necessidades à realidade expressiva do advento da morte.

A importância de teatralizar o encontro derradeiro com o morto, de honrá-lo, enfim, de fazer como se este não houvesse morrido são aspectos comuns nos rituais da morte. Por isso os ritos fúnebres positivistas trazem elementos essenciais existentes nas práticas mortuárias de diferentes períodos e culturas da história do homem. Sendo assim, refere Bayard “rito é profano só na aparência, porque em última análise, abre-se naturalmente para o sagrado”.

No caso dos funerais contemporâneos, o ritualismo é cada vez menor, sendo que na maioria das vezes o defunto é sepultado rapidamente, ou então, como refere Thomas “procedem muitas vezes de um formalismo vazio de conteúdo. Nesse caso, o termo ‘cerimonial’, que conota o aspecto protocolar exterior de alguns enterros, será talvez mais adequado do que o termo ‘ritual’, o qual engloba o fundo e a forma”. Isso por que os rituais da morte, segundo Ziegler “expressam, reabsorvem e exorcizam um trauma provocado pelo aniquilamento”.

Nos retratos mortuários fotográficos, que serão mais detidamente analisados no segundo capítulo, também se evidenciam aspectos que demonstram continuidades, de longa duração, com relação aos rituais fúnebres. Se, a partir das imagens coletadas, constata-se que no meio rural, em tempos remotos, as pessoas eram veladas em casa, sabe-se que esse tipo de velório ainda acontece atualmente, em menor número, mas a prática persiste.

Os retratos também nos mostram que os ritos fúnebres são muitos e variados, e que diferem a partir de costumes religiosos, de idade, de sexo e da posição que o morto ocupava na sociedade. Para cada caso existe um rito, e as fotografias de mortos podem muito bem ser relacionadas com uma espécie de honraria, que testemunha que os vivos se preocuparam com o morto e produziram um artefato “imortal” a partir do corpo que irá desaparecer.

As efígies, a mumificação e os monumentos atestam o desejo de conservar, de alguma maneira, o antepassado. No que se refere à memória do morto, essa conservação atinge também as ações por ele praticadas em vida, servindo como modelo para os seus e para a comunidade onde ele viveu. Com o tempo todos desta comunidade morreram, e com um tempo maior a comunidade também morrerá. Assim como a sociedade da qual essa comunidade fazia parte. É como anunciava Paul Valery sobre a morte das sociedades e civilizações “Civilizações, agora sabemos que vocês são mortais”.

Entretanto, a memória permanece através de diferentes formas. Aspectos culturais das civilizações desaparecidas acabam por chegar, de uma maneira ou de outra, à contemporaneidade. É o caso dos retratos mortuários, que através da fotografia tomaram um
grande impulso no final do século XIX. Tanto na Europa, como na América, a prática de fotografar os mortos foi usual e hoje muitas dessas imagens fazem parte de arquivos públicos e de álbuns de família, evidenciando o que Warburg definia como sintomas, ou seja, representações simbólicas e formais que se repetem ao longo do tempo nessas imagens, que alertam o pesquisador a interrogar as motivações que ocasionaram a sua recorrência.”


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Fonte:
MIGUEL AUGUSTO PINTO SOARES: “REPRESENTAÇÕES DA MORTE: FOTOGRAFIA E MEMÓRIA”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em História. Orientadora: Profª. Drª. Maria Lúcia Bastos Kern). Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2007.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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