Higiene, eugenia e poder público no Brasil

“Diversas descobertas científicas no campo da hereditariedade estavam presentes no discurso dos cientistas no início do século, inferindo-lhes o teor das estratégias.

Segundo o neo-lamarckismo11, a degeneração – deterioração da constituição física e moral do brasileiro – era causada pela transmissão hereditária de uma bagagem genética modificada pela incorporação de caracteres adquiridos no meio.

Sendo assim, as ciências recém-chegadas da Europa eram consideradas a salvação para alcançarmos o modelo de uma nação desenvolvida. Foi assim que a eugenia – considerada um eficiente recurso para o aprimoramento racial – aportou no país, apoiada pela higiene mental, na época uma esperança para a consolidação de uma nova psiquiatria que sustentasse o lema “ordem e progresso” para a elite e o governo. Reunidos em torno de Renato Kehl, um grupo de 140 membros, entre médicos, educadores e juristas, criaram em 1918 a Sociedade Eugênica de São Paulo, para discutir propostas de regulamentação que pudessem controlar a “transmissão hereditária, a evolução e a influência do meio ambiente, das condições econômicas, da legislação, dos costumes e dos hábitos sobre a raça brasileira” (Stepan, 2004:341).

O neo-lamarckismo, que contribuía para a concepção da degeneração e já havia
servido de apoio para os ideais higienistas, associava-se então também à eugenia, reforçando as propostas científicas no campo social e comparecendo não só no discurso dos cientistas, dos políticos e da sociedade, como também reivindicando lugar em estratégias de controle social (Teixeira, 1997).

Com a intenção de projetar-se fora do estado, a Sociedade Eugênica convidou o
sanitarista carioca Belisário Penna para vice-presidente honorário. Perfeitamente identificado com os anseios pela “definição de uma política educativa sanitária para efetivar o melhoramento da raça, levando ao engrandecimento do país”, Penna aliava o prestigio político e o reconhecimento científico (Vilhena, 1993:83) que permitiriam alavancar o novo saber. Renato Kehl transferiu-se então para o Rio de Janeiro e se integrou à Academia Nacional de Medicina e à Faculdade de Medicina, penetrando no campo da medicina legal e no poder legislativo.

No Rio de Janeiro, a eugenia encontrou muitos adeptos, graças a sua penetração
na Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM). Fundada em 1923 por Gustavo Riedel, então diretor da Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro, a Liga pretendia promover uma “nova psiquiatria”, ampliando seu campo de intervenção por meio de um programa de higiene mental e eugênico na vida individual, escolar, profissional e social. Preocupava-se com a delinquência infantil, a prostituição, o alcoolismo, as doenças venéreas, a subnutrição e a criminalidade, os chamados “venenos raciais”, relacionando os costumes locais com questões biológicas, tanto raciais como eugênicas, já que estes males poderiam degenerar a prole (Souza, 2004).

Ao longo da década de 1920, as teorias lamarckistas passaram a sofrer fortes contestações no país, quando foi colocada em questão a influência do ambiente na constituição genética. Perdeu assim, paulatinamente, o lugar para a eugenia mendeliana.

De fato, problemas como as fortes epidemias que assolaram o país no período e as dificuldades advindas da intensa mobilização imigratória, provocada pela primeira Grande Guerra, mantiveram em pauta uma forma de “racismo científico” que continuava a ver, tal como no final do século XIX, o branqueamento do povo como solução para os problemas da saúde do brasileiro. Ao mesmo tempo, a onda otimista sobre a possibilidade de regeneração e o espírito nacionalista do pós-guerra contrapunham-se à situação de pobreza, à migração interna, à imigração e ao desemprego do fim da década de 1920, causando instabilidade social. As medidas com base na máxima “governar é sanear” ou “higienizar é eugenizar” não haviam resolvido como se esperava a constituição genética da “raça brasileira”.

Esse panorama acentuou a visão de que, para sobrepujar as dificuldades, seria necessário o apoio no cientificismo biológico alemão, que se impunha na época como dogma à pesquisa. Além disso, com a consolidação da psiquiatria como disciplina, aumentava o seu poder de interpretação acerca dos problemas culturais em geral. Essa tendência biologizante teve eco na reconfiguração dos objetivos da LBHM, que, por sua vez, recebia de bom grado a contribuição do pensamento eugênico de Kehl, cada vez mais apoiado na eugenia negativa anglo-saxã.

Ainda assim, a eugenia negativa, proposta por Kehl no fim da década de 1920, não obteve o sucesso esperado junto à Assembléia Constituinte e à Câmara dos Deputados.Essas ideias sofreram pressão por parte da Igreja e do Exército, que também tomavam para si a tarefa de promover a educação moral e social2 (Reis, 1993). Mesmo assim, foi um modelo positivo e preventivo de eugenia que preponderou no país e que, por meio de conceitos de adequação e inadequação, permaneceu influenciando a política de nação, no meio científico, político e cultural da época (Souza, 2004). Vale dizer que o crescimento da eugenia foi contemporâneo às críticas ao saneamento e à higiene, propostas que vigoravam como solução para o país desde 1910 e que já pareciam não dar conta dos problemas nacionais.

Mas, de uma forma ou de outra, tanto pelo pensamento eugênico positivo, preventivo-higiênico, quanto pelo negativo, a crença na inferioridade do povo era fato consumado. Seja pela condição da raça degenerada, seja pela insalubridade do meio, os fantasmas do determinismo e da inviabilidade faziam eco. Em contrapartida, surgia um movimento de oposição, tentativa de resposta ao pessimismo que tomou conta da intelectualidade da época. A esse esforço, próprio do entre-guerras, se agregaram a eugenia, a higiene mental e a psiquiatria, intervindo na individualidade do cidadão, seus costumes e personalidade, em nome de uma coletividade, traduzida como saúde pública; em nome, como Kehl formularia, do homem saudável (apud Facchinetti, 2006:4).

A preocupação com o espaço social onde se desenvolve a vida dos indivíduos, e as influências negativas que ele pode causar, é característica marcante no discurso de alienistas, higienistas e eugenistas nas primeiras décadas do século XX (Vilhena, 1993:82).

Assim, o debate sobre as políticas necessárias para a construção de uma nação
moderna acabou por alimentar-se da possibilidade da intervenção da medicina e em particular da psiquiatria da época, a partir da influência da biologia. Se o saneamento e a educação já não podiam garantir a regeneração da “raça brasileira”, a previsão do aparecimento de psicopatas permitia a prática de políticas de controle sobre a procriação daqueles cujas características degeneradas ameaçassem o modelo de saúde do brasileiro."

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É isso!

Fonte:
Maria teresa saraiva melloni: “O movimento psicanalítico no Rio de Janeiro - 1937-1959: Um processo de institucionalização”. (Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: História das Ciências. Orientadora: Profa. Dra. Cristiana Facchinetti). Casa de Oswaldo Cruz – FIOCRUZ. Rio de Janeiro, 2009.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.

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