A Higienização Social da Percepção Estética

“A percepção da estética ganhou, então, mais força, quando uma corrente médica fez discursos sobre a higienização, a partir de 1920, inaugurada pela “Belle Époque”, associando beleza física à saúde e jovialidade. Tais discursos favoreceram o desenvolvimento do imaginário que identificava a beleza à aparência saudável. De fato, ser saudável significava conservar o máximo possível o aspecto jovem. Tal ideia foi aproveitada por nós quando mostramos como no Brasil, mais especificamente, no século XIX (Santos Filho, 1991) deu-se como ponto de partida para a mudança das relações entre a medicina e o Estado, tendo o corpo como forma de comunicação culturalmente adquirida, inserida num universo simbólico.

Diversos mecanismos disciplinares se multiplicaram na transição do Império para a República marcando, no Brasil, a instauração da medicina social, que veio apossar-se de mais um filão de poder por meio das intervenções nas cidades e nas condições de saúde de seus habitantes (Santos Filho, 1991). Era preciso ser “civilizado” como os europeus, copiá-los, se possível reproduzir seus hábitos, para que, pela higiene, os indivíduos aprendessem a manter o gosto pela saúde, exorcizando o ranço colonial. A higienização social não pretendeu apenas garantir a vida, mas formou um determinado tipo de população, com a promoção do corpo social dos indivíduos, que foram adestrados e disciplinados. Del Priore (2006) retrata que, pela educação higiênica, os corpos foram redesenhados sob o paradigma de que devem ter saúde, agora significando status social, ao mesmo tempo em que são manipulados política e economicamente. O corpo saudável foi criado e designado como um “corpo robusto e harmonioso, organicamente oposto ao corpo relapso, flácido e doentio do indivíduo colonial” (Costa, 1979, p. 13). Costa aponta, ainda, que o corpo construído pela higiene foi um corpo burguês - higienicamente urbanizado e disciplinado – representante de uma classe e uma determinada raça, que serviu para incentivar o racismo e os preconceitos sociais. O Brasil entrou no século XX (Soihet, 1997) com a modernização por meio da higienização da nação, com a imitação dos hábitos civilizados, similares aos parisienses durante a “Belle Époque” (1890-1920). Evidentemente, não falamos desse processo de esterilização das impurezas sem nos reportarmos à eugenia, legitimadora de práticas sociais que enquadravam sujeitos
segundo padrões estéticos de corpo saudável. Foi evocada ainda a figura de Kehl (Maciel 2001), o maior representante da eugenia no Brasil, defensor do corpo plasticamente perfeito, de proporções cientificamente sancionadas - considerado ideal para o desenvolvimento do povo brasileiro - O corpo foi voltado para o aprimoramento das raças e para as questões estéticas. Surgiu o corpo ideal, referenciado pelas descobertas biomédicas, que promoveram intervenções estéticas, cirurgias modeladoras reconfigurantes do corpo, como um reflexo da sociedade narcisista, para a qual o corpo tornou-se estandarte, ou mostruário do desempenho do sujeito. Tal ideia foi também objeto de crítica de Novaes (2006):

Para Courtine, a ”pastoral do suor”, de inspiração puritana foi uma das molas mestras do bodybuilding, com crença de que a moralidade não é apenas uma questão de piedade religiosa, mas também de forma e disciplina muscular. O prazer é, irreversivelmente, associado ao esforço; o sucesso, à determinação; e a intensidade do esforço é claramente proporcional à angústia provocada pelo olhar do outro (p. 94-95).

Lipovetsky (1944/2000) comunga com o que foi ilustrado na citação anterior: [...] mas, ao mesmo tempo, nunca as mulheres combateram com tanto empenho tudo que parece flácido, gordo, mole. Já não basta não ser gorda, é preciso construir um corpo firme, musculoso e tônico, livre de qualquer marca de relaxamento ou de moleza. (p. 133).

Não estaríamos experienciando um novo tipo de eugenia que busca purificar o feminino pela sua inscrição primaz, o corpo, moldando e uniformizando sua imagem, seja por meio do vestuário, das práticas fisiculturistas, como se propusesse a construção de uma identidade de classe burguesa? Essas transformações foram propulsoras de alto consumo e governaram, determinando o que usar, o que ousar e do que cuidar. A magia da moda dita o modus operandi da cultura. Observado pela óptica do vestuário, o século XX foi caracterizado, cada vez mais, pelo desnudamento e pela flexibilidade. A aparência física ligou-se intrinsecamente ao corpo, e cuidar dele tornou-se imperativo, assim como o combate ao corpo em desalinho ou desalinhado.

Em 1945, fim da Segunda Guerra, o corpo ficou mais à mostra. Dior (2000) injetou feminilidade em suas criações para o desvendamento do corpo. Nos anos de 1950, surgiram os biquínis, gerando muitos conflitos, tendo em vista que a mulher tinha uma vida diretamente voltada para a família e a casa, e passou a expor socialmente o que era restrito ao território da casa. Com a chegada da década de 1960, uma série de acontecimentos mundiais influenciou a moda e o comportamento de maneira irreversível. No cinema, já em meados do século passado, divas “hollywoodianas” serviram como baluartes dos ideais de beleza e de comportamento femininos. Era fácil reconhecer a influência de pelo menos três delas. Audrey Hepburn (Spoto, 2008), encantou a todos com sua silhueta extremamente magra, símbolo de elegância, bem nos padrões da moda atual, aguçando a inveja das brevelíneas, embora, em uma cena antológica do cultuado “Breakfast at Tiffany’s, fosse vista contemplando diamantes em frente à Tiffany’s, comendo uma verdadeira bomba calórica, deliciosos croissants, sem medo algum de passar das medidas, apenas acalentando o sonho ideal da “bonequinha de luxo”. Grace Kelly (Lacey,
1994), outro ícone, com seu porte de princesa, traduziu como ninguém a imagem da mulher respeitável, serena e controlada, com quem se subiria ao altar. No extremo oposto, Marilyn Monroe (Spoto, 2009), sempre mostrada em seus filmes como ingênua e pouco inteligente, embora considerasse os diamantes os melhores amigos de uma mulher, foi a “material girl”, a predileta da maioria dos homens para uma fugaz aventura extraconjugal.

O surgimento da pílula anticoncepcional desencadeou a revolução sexual, quando explodiram os movimentos feministas, o movimento “hippie”, e a busca pelo naturalismo. Enfim, experimentamos meteóricas transformações em curtíssimo espaço de tempo, o que gerou mais diversidade de estilos de vida e comportamento. Nessa perspectiva histórica e cultural, o corpo feminino, imbuído de sua sexualidade, histórica e mutável, vinculou-se a uma relação de poder de ordem política, econômica, social, moral, subordinando este corpo feminino sexual e sexualizado que urgia por liberdade, a valores e instituições (Del Priore, 1993).

No Brasil, a partir dos anos 1960, deu-se a eclosão do movimento feminista que levou à revolução sexual e, consequentemente, a uma maior liberdade sexual e diminuição das desigualdades entre os sexos. O que ficou muito bem delineado com o surgimento da cultura do ”jeans”, que atendeu às necessidades do público jovem, com seu uso unissex, numa tentativa de igualdade sexual de direitos e ações, além de sua praticidade e a suposta liberdade que trouxe consigo, marcando, porém, e cada vez mais, a exposição das formas do corpo. Sobre isto, afirma Lipovetsky (1989):

Expressão das aspirações a uma vida privada livre, menos opressora, mais maleável, o jeans foi a manifestação de uma cultura hiperindividualista fundada no culto do corpo e na busca de uma sensualidade menos teatralizada. [...] o jeans sublinha de perto a forma do corpo, valoriza os quadris, o comprimento das pernas, as nádegas
(p. 148).

A exposição pública do corpo ganhou cada vez mais terreno. Diante desse padrão elevado de beleza, as mulheres que não o atendiam (idosas, gordas, etc.), perderam totalmente o valor e foram praticamente, excluídas da sociedade por representarem, a partir daí, um anterreflexo do desejável. Os cuidados com a saúde e as práticas esportivas, levaram ao surgimento da moda “fitness”, em que as roupas começaram a ter características próprias e serem mais difundidas, principalmente entre os jovens. O simbolismo com o qual estão carregadas essas roupas, os novos hábitos e o corpo cada vez mais objeto de exposição, marcaram a corrida desenfreada pelo desejo da eterna juventude, reflexo da inconformidade com nossa impermanência.

Na década de 1970, as mulheres buscaram cada vez mais espaço no mundo dos negócios, o que impulsionou a indústria do vestuário a investir em novas tecnologias e a desenvolver tecidos que facilitassem a vida dessas mulheres, que procuravam pela praticidade sem perder a elegância, pois começam a viver a correria dos tempos modernos. Foi a partir do final dos anos 1970 que surgiram as academias e o conceito de “malhação”, concretizados nos anos 1980.

Nos anos 80, a corporeidade ganha vulto nunca antes alcançado, em termos de visibilidade e espaço na vida social. As práticas físicas passam a ser mais regulares e cotidianas, expressando-se na proliferação das academias de ginástica por todos os centros urbanos
(Castro, 2003, p. 24).

As práticas físicas de modelagem do corpo, tão pertinentes ao universo masculino, passaram a ser absorvidas pelas mulheres. As academias de ginástica surgiram no cenário urbano facilitando o seu acesso e, neste universo de competitividade, a mulher se integrou de vez no mundo masculino, no que dizia respeito ao mercado de trabalho. Em consequência, a moda se voltou a certa androginia, onde as mulheres começaram a usar elementos de roupas masculinas, como ombreiras e “tailleur”.

Hoje, as novas divas, os novos baluartes do ideal estético feminino, parecem ser, para a maioria das mulheres, as top models. Isto se dá, não só pelos atributos estéticos, mas por representarem um paradigma de ascensão social, espelho de tudo o que deve ser consumido e ostentado como os “bens ociosos massivos [...] e bens de luxo destinados sempre a uma minoria de privilegiados” (Severiano, 2001, p.74), que buscam prender o olhar do outro usando, de forma emblemática, produtos que se tornaram símbolos do “status” por eles atingido. Almejou ser destaque, experimentando o sentimento de pertença da sociedade do espetáculo e da imagem. Ao longo de todo esse devir histórico feminino, algumas preocupações entre as mulheres nunca desapareceram: o que se espera delas e a imagem que passam, como se o império das aparências realmente dissesse sobre os sujeitos, seja envoltos em belos trajes ou desnudos. O corpo, memória material de muitas e múltiplas inscrições, vitrine móvel de conquistas científicas e tecnológicas, hoje, mais do que em outros tempos, lugar de exibição do prolongamento temporal de uma suposta jovialidade. Atualmente, além da obrigação de sermos magros, temos que parecer jovens.

Segundo Marra (2008),

[...] a criação da World Engineering Anthropometric Research, da qual fazem parte várias instituições, entre elas, o Instituto Nacional de Tecnologia, do Ministério da Ciência e Tecnologia. [...] Essa padronização, entretanto, é fundamental para evitar prejuízos e principalmente permitir que o Brasil concorra em pé de igualdade no mercado global. Na falta de um padrão definido, muitas vezes, as grifes, segundo a equipe de pesquisa, usam uma modelagem maior para que o cliente sinta-se psicologicamente magro (p. 7).

Relacionaram-se as dificuldades de permanecer jovem e saudável com as atitudes transformadoras e significativas em relação ao corpo, daí restou às mulheres submeterem-se aos apelos da indústria que, para não ter abalados os seus lucros, jogou com o calcanhar de Aquiles das mulheres, submetendo-as cada vez mais às padronizações. Ser belo é ser igual, reproduzir no próprio corpo um padrão desejado, um corpo que não “sou”. A reportagem citada apelou para o benefício não da dúvida, mas da mentira, do embuste diante da realidade.

A possibilidade de esculpir ou de redesenhar o próprio corpo é a promessa de um padrão de beleza estabelecido globalmente ao alcance de todos, o que nos levou a refletir sobre a relação entre estética e corporeidade. Dufrenne (2004), afirma: “a experiência estética se situa na origem, naquele ponto em que o homem, confundido inteiramente com as coisas, experimenta sua familiaridade com o mundo” (p. 13). Recorrendo ao que afirma Merleau-Ponty (1945/1994), compreendo melhor esta confusão hoje tão presente, também causada pelos ditames da moda, do consumo da cultura contemporânea que embotaram o corpo ao ponto deste ser apenas visto e tratado como objeto, ao invés de atuar como agente.

O mundo não se diferencia do sujeito à medida que o sujeito é uma representação desse mundo, e o sujeito só não se distingue ou diferencia do mundo que é projetado por ele mesmo. Severiano (2001) afirma que, neste caso, o sujeito tentou “reconstituir-se e personalizar-se através dos signos do mercado” (p. 221), assim aconteceu com a roupa que, segundo alguns estilistas, é um sonho, uma fantasia, por isso as top models desfilando suas roupas nos remetem ao campo da irrealidade. São corpos quase milimetricamente alinhados, mais do que vestidos, forjados segundo um padrão inatingível, acima de dietas rigorosas, fatores genéticos, compleição física, sorte ou ainda força de vontade. Para Schilder (1980), “as roupas fazem parte do esquema corporal, ganham o mesmo sentido das partes do corpo e podem ter o mesmo significado simbólico destas” (p. 177). Termos assim não foram pontuados como meras palavras, pois podem vir a ser condutores a um signo de dor e sofrimento que fragilizam o sujeito, pulverizando seu ser, sua subjetividade.

O corpo está no mundo e suas ações são atravessadas por ele, pela cultura, pois falamos aqui do ser mundano, vale ressaltar o papel histórico-cultural da mulher em termos de compreender a construção e constituição de seus sentimentos e do seu sofrimento. Segundo Lipovetsky (1944/2000), “duas normas dominam a nova galáxia feminina da beleza: o antipeso e o antienvelhecimento” (p. 134). Esta é a prova cabal de que a marca da indústria da moda foi e continua sendo a imposição de forças das transformações.

Na contemporaneidade, a cultura ocidental sustentou e idolatrou a padronização do corpo ideal, padrão este ainda mais visível em relação ao que é supostamente esperado para o corpo feminino (Sudo & Luz, 2007). O afã de tornar-se perfeito, em confronto com o risco de tornar-se igual, na cultura hedonista e individualista, faz o sujeito tentar sobressair-se à multidão. A busca de diferenciar-se, em relação ao grupo, impulsionou o consumo de produtos da moda através das roupas, de alimentos, e de biotecnologias. Este reflexo da cultura contemporânea, firmou, ratificou que o sujeito é consumido à mesma proporção em que consome, e este ato desenfreado teve seu nascedouro na revolução industrial, raiz do capitalismo.”

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É isso!


Fonte:
REGINA CLÁUDIA EUFRÁSIO RODRIGUES”: “ROUPA JUSTA OU CORPO INJUSTO? Da Moda à Psicopatologia” - Figure-hugging clothes or an unfitting body? From fashion to Psychopathology (Dissertação apresentada à Coordenação do Programa de Pós-graduação em Psicologia do Centro de Ciências Humanas da Universidade de Fortaleza – UNIFOR - como exigência parcial para obtenção de título de Mestre. Linha de Pesquisa: Produção e Expressão Sociocultural da Subjetividade. Orientadora:Profª. Drª. Virgínia Moreira). Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Fortaleza 2009.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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