Humores, sangrias, analogias e simpatias

"Ao lado da idéia de que as enfermidades resultavam da ação de Deus, a teoria dos humores foi uma das concepções que exerceria uma grande influência no diagnóstico e no tratamento das enfermidades no mundo luso-brasileiro. Estabelecida na Antiguidade, a teoria dos humores concebia a relação doença/corpo de forma distinta das concepções inauguradas pela medicina das Luzes, já que não se fundamentava na análise dos princípios patológicos internos ao corpo humano.

A então denominada “patologia humoral” está associada à concepção — já exposta no capítulo anterior — do corpo humano concebido como um microcosmo por conter dentro de si as qualidades dos quatro elementos da natureza. No pensamento grego, o corpo era percebido a partir da physis, termo que designava tudo aquilo que havia na natureza, incluindo a terra e os homens. Esse conceito, extraído da filosofia pré-socrática, foi de suma importância para o pensamento dos médicos que formaram o conjunto do Corpus Hippocraticum, constituindo-se a partir daí uma concepção physiológica da medicina. Segundo essa teoria, o corpo era constituído por quatro humores: sangue, fleuma, bile amarela e negra. A saúde do organismo era entendida como harmonia (isonomia) das faculdades — o seco, o frio, o quente, o amargo, o doce, etc. —, e como mistura equilibrada das qualidades dos humores, enquanto a doença era explicada como predomínio (monarkhia)
de uma qualidade.

O estabelecimento posterior de uma relação entre os elementos e os humores, permitiu que se elaborasse uma doutrina geral do organismo humano. Atribuída a Hipócrates (460-377 a. C), a teoria dos humores foi sistematizada pelo seu discípulo Políbio, em um texto intitulado A natureza do homem, publicado por volta do século IV a.C, e continuada, com variações, por Galeno (131-201 d.C.), que incorporou a idéia dos temperamentos (Kraseis) associando-os aos humores.Difundida por médicos árabes na Idade Média, como Razis (894-925) e Avicena (980-1037), a sua influência estendeu-se na medicina européia até o século XIX, não obstante o predomínio de outras teorias médicas.

Seja pela influência dos autores árabes na península ibérica, seja pela leitura das obras de Hipócrates e Galeno, a concepção dos humores se difundiu na medicina luso-
brasileira.No seu Vocabulário portuguez e latino, Bluteau dedicou um verbete onde expressava seu entendimento da teoria humoral:

Medicamente falando, pelos humores não se entende só os quatro humores do corpo, como é o sangue, fleuma, cólera e melancolia, mas todas as mais umidades, como é o leite, o esperma e ainda os humores excrementícios, como é a saliva, as lágrimas e o soro do sangue, os quais por cópia ou por vício ofendem a saúde, por cópia, quando o sangue é demasiado, sobejando nas veias, o fleuma obstruindo os poros e as veias, o soro redundando por todas as veias; o esperma supérfluo, por vício, quando o sangue apodrece, a fleuma é salgada, a cólera e melancolia, podre ou requeimada, o esperma corrupto, o soro viciado, o leite grumoso, a saliva salgada, a urina acre, as lágrimas mordazes.

Os humores possuíam tamanha influência que contribuíam para a “boa ou má disposição do ânimo” e ainda influenciavam no “temperamento do homem”, “nos seus costumes, e no seu modo de obrar". Francisco da Fonseca Henriques foi um dos médicos que seguiu os preceitos hipocráticos e galênicos. Na Âncora medicinal para conservar a vida com saúde afirmava, por exemplo, que se a urina não se “evacua na porção que é necessária, ficam muitos soros nas veias e muita linfa nas glândulas, de que se seguem defluxões, reumatismos, gota artéria, febres catarrais e outros vários danos”, corrompendo o sangue em poucos dias. Não bastassem essas afirmações, ao longo da obra o médico faz inúmeras referências a Hipócrates, Galeno e Avicena.

Nessa perspectiva, a saúde só podia ser restabelecida a partir do equilíbrio humoral, mediante o uso de terapias e remédios que extraíssem do corpo o excesso dos humores corrompidos. Os purgativos, escarificações e sangrias consistiram nos meios mais utilizados na medicina européia do século XVI ao XVIII, e na arte médica do Brasil do século XIX.

Os remédios com ação purgativa visavam geralmente expelir os humores corruptos do corpo. Para purgar os humores, o cirurgião Luís Gomes Ferreira recomendava diversos remédios, como ferver uma dúzia de “juás-bravos” e acrescentar “duas colheres de azeite-de-mamona” e uma colher do “sal do Reino”. Considerava-se esse remédio ótimo para livrar o corpo das lombrigas, pois “além de purgar os maus humores em que elas se cevam, as faz também sair”. Além disso, recorria também a técnica da sangria como procedimento necessário na cura, dentre outras doenças, das “pontadas pleuríticas”, resultantes dos “enchimentos do estômago, lombrigas, corrupção-do–bicho e alguma obstrução”.

Para além de seu uso na medicina sancionada pelos médicos, a sangria foi prática recorrente em universos culturais com significados distintos. O médico holandês Guilherme Piso, quando esteve na América Portuguesa, no século XVII, acompanhando a comitiva de Nassau, teve a oportunidade de observar os indígenas se sangrarem “mutuamente, a qualquer hora do dia ou da noite, rápida, segura e prazerosamente”. Entretanto, Piso alertava aos estrangeiros que provinham da Europa para a América Portuguesa que evitassem os excessos daquela prática. “As sangrias convém sejam feitas escrupulosa e [cautelosamente] nos nossos e na maioria dos estrangeiros recém-chegados”, já que, segundo o médico, os corpos dos lusitanos e dos índios por serem amplos e “cheios de vasos sanguíneos”, tornavam-se aptos a “suportarem os esfalfamentos e perdas de sangue”.

É significativo observar que, antes de ser uma prática indiscriminada, havia um esforço por parte de médicos e cirurgiões em regulamentar a sangria. Sobre essa técnica em particular, Manoel Leitão, cirurgião do Hospital Real de Lisboa, publicou um tratado específico em 1604, Practica de barbeiros, onde ensinava aos barbeiros como deveriam proceder nas sangrias, em que parte do corpo e em quais casos aplicar as lancetas, ventosas ou sanguessugas.

Francisco Soares Ribeira, médico espanhol da Universidade de Salamanca, cuja obra foi publicada no Reino em 1720, alertava acerca dos riscos das sangrias. “Isto se vê claro em Espanha, porque se há febre, e é um pouco ardente no mesmo instante está prevenida a lanceta, se doem os dentes, manda que se sangre”. Entretanto, o médico não as condenava, usando “delas na ocasião que convém, porque onde não são precisas, fazem dano”.

Com base nas observações dos efeitos das sangrias nos corpos de homens e mulheres que viviam na América Portuguesa, Luís Gomes Ferreira também sustentava que se devia proceder “com cautela”, pois essas “debilitam os doentes por muitos tempos e fazem outros grandes danos”. Nessa matéria, discordava das opiniões de Galeno e Avicena, que diziam ser impossível sangrar os meninos antes dos quatorze anos, pois a experiência mostrava que “com sangrias moderadas” se tinham livrado crianças de menos
de um ano. O cirurgião José Antônio Mendes, cuja obra Governo dos mineiros apontava remédios que “tem mostrado singulares no efeito no clima da América”, condenava igualmente os excessos das sangrias, observando que essas deviam ser reguladas “conforme as forças, e a fereza do mal o pedem, e também a idade e temperamento”. Como já se observou no primeiro capítulo, o conhecimento obtido por meio da experiência e observação permitia aos cirurgiões adaptar as teorias médicas da Antiguidade na América Portuguesa. Tais testemunhos indicam, portanto, que antes a uma aceitação inquestionável das teorias da medicina, os cirurgiões foram capazes de adequá-las às necessidades da população.”

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É isso!


Fonte:
JEAN LUIZ NEVES ABREU: “O CORPO, A DOENÇA E A SAÚDE: O saber médico luso-brasileiro no século XVIII”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em História. Orientadora: Profª Drª Adriana Romeiro). Universidade Federal de Minas Gerais . Belo Horizonte , 2006.

Nota:
As imagens inseridas no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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