Karl Popper e o problema do psicologismo

“Segundo Popper (1979, p. 107), a epistemologia tradicional ou clássica (positivismo e empirismo), baseada em crenças subjetivas, procura a certeza do conhecimento dentro da mente humana ou na psicologia humana. Essa tradição está relacionada com os filósofos da crença, tais como Rene Descartes, John Locke, George Berkeley, David Hume, Immanuel Kant e Bertrand Russell. Para Popper, essa tradição está conectada também à situação histórica de separação religião vs. não-religião ou crença religiosa: “this explains why knowledge is throughout regarded as a kind of belief – belief justified by evidence, especially by perceptual evidence, by the evidence of our senses” (ibid., p. 127). Popper critica tal tradição com os seguintes argumentos: (i) a origem subjetiva da explicação, com seu caráter privado, é irrelevante para o desenvolvimento do conhecimento científico e (ii) a crença subjetiva se torna a única autoridade do pensamento, restringindo o debate crítico e público, o que denota a diferença entre um pensamento crítico e um pensamento dogmático.

Popper (1979, p. 60 ff.) chamou essa epistemologia clássica de “teoria da mentebalde” (bucket theory of the mind). O sujeito conhecedor, segundo tal visão, justifica seu conhecimento nas acumulações pela mente de percepções (ou impressões) recebidas através dos órgãos do sentido, isto é, pela experiência. No nascimento, a mente-balde estaria perfeitamente vazia (a tábula rasa de Aristóteles e de Francis Bacon), mas o contato com os objetos externos, o ato de perceber, imprimiria conhecimento (enchendo o balde). Então, o sujeito conhecedor justifica sua crença em “razões subjetivas suficientes”, isto é, “kinds of personal experience or belief or opinion which, though subjective, are certainly and unfailingly true, and can therefore pass as knowledge” (ibid., p. 76). Ou seja, obtém justificativa na força da crença (Hume), no pensamento claro e distinto (Descartes), ou ainda, no que é detectado ou dado pelos órgãos de sentidos (sense-given, sense datum), pela sensação imediata ou intuitiva (ibid., p. 77).

Popper (1979, p. 63) sugere, contudo, a conjectura de que o conhecimento subjetivo é parte de um aparato ou mecanismo biológico. Nossa mente não é perfeitamente vazia ao nascermos, nem existe o ato de colecionar dados ou elementos. Possuímos disposições inatas para decodificar parte do ambiente, ignoramos a maioria, e amadurecemos essas disposições ao longo de nossas vidas “by the method of trial and elimination of error, or by conjecture, refutation, and self-correction” (ibid., p. 77).

Segundo a epistemologia clássica, as percepções acumuladas habilitam-nos a perceber novas informações. Os seres humanos percebem uma conexão entre objetos ou eventos devido à sucessão regular (Hume).11 A regularidade na sucessão dos eventos indica uma conexão (ou causação) entre causa e efeito. Para Hume, contudo, a inexistência de certeza para essa conexão poderia ocorrer indefinidamente. Isso caracteriza o problema psicológico da indução – isto é, a associação de idéias é um mecanismo biológico e útil para o ser humano, mas não teria qualquer base racional. A solução de Hume, baseada na associação por costume ou hábito, é irracional (Popper, 1979, p. 90). Para Popper, Hume enfraqueceu o empirismo e subjugou o racionalismo, desde que ele não encontrou uma explicação racional para a associação de idéias.

Segundo Popper, as conjecturas ousadas (bold conjectures) explicam a associação entre as idéias. A ligação entre causa e efeito é uma conjectura de certa regularidade como uma lei natural. Impomos a conjectura, nossa lei, sobre a natureza. Mas tal conjectura não é uma certeza absoluta; ela deve ser criticada e, talvez, refutada. A solução de Kant é, no entanto, assegurar que as regularidades são válidas a priori, uma certeza irrefutável.

When Kant said that our intellect imposes its laws upon nature, he was right – except that he did not notice how often our intellect fails in attempt: the regularities we try impose are psychologically a priori, but there is not the slightest reason to assume that they are a priori valid, as Kant thought. The need to try to impose such regularities upon our environment is, clearly, inborn, and based on drives, or instincts. There is the general need for a world that conforms to our expectations; and there are many more specific needs, for example the need for regular social response, or the need for learning a language with rules for descriptive (and other) statements. This led me first to the conclusion that expectations may arise without, or before, any repetition; and later to a logical analysis which showed that they could not arise otherwise because repetition presupposes similarity, and similarity presupposes a point of view – a theory, or an expectation
(Popper, 1979, p. 24).

Popper insiste que a psicologia empírica usada para resolver a causação humeana seria insustentável; antes de nossas percepções se tornarem dados, usamos nossas teorias. Tentamos impor certa regularidade sobre a natureza, o que é um comportamento biológico ou geneticamente a priori, mas nós podemos falhar. Nosso conhecimento subjetivo consiste em ajustar ou adaptar disposições inatas ao ambiente (Popper, 1979, p. 63). Isso exige, conseqüentemente, revisão que significa aprendizagem por seleção (Darwin) ao invés de por repetição (Lamarck) (ibid., p. 149).

Popper não elimina o psicologismo, o qual é, também, uma conjectura. Porém, a epistemologia tradicional tem requerido a escolha de um ponto de partida certo e verdadeiro para o conhecimento, o qual é encontrado em nós mesmos ou em nossas experiências perceptuais. Esse subjetivismo inicia com a experiência externa (realismo), mas é compelido a terminar com uma teoria intrincada sobre nossas experiências internas (idealismo). Para Popper, a conjectura de um aparato biológico de ajustamento (sua teoria subjetiva) e o racionalismo crítico de conjecturas (sua teoria objetiva) permitem superar as dificuldades com a posição pessoal incerta. Em resumo, Popper enfatiza a irrelevância das diversas formas de psicologismo epistemológico, substituindo as mesmas por uma teoria epistêmica objetiva, ou seja, uma teoria da crítica de nossas conjecturas, tendo como base nosso conhecimento limitado e incerto. Popper inicia, portanto, com o realismo das conjecturas ousadas, o que, por sua vez, é uma suposição mais adequada para alguém que está interessado no crescimento do conhecimento do que a busca idealista por pontos de partida psicológicos.

Em filosofia política, o psicologismo é a teoria que declara a sociedade como dependente da “natureza humana” de seus membros (Popper, 1957, p. 84). Para Popper (1966, nota 19, p. 323), o perigo está na tendência de tornar a psicologia a base fundamental de outras ciências Uma certa visão microscópica do funcionamento do mercado pode ser um exemplo do psicologismo atacado por Popper (1966, p. 91). Segundo John Stuart Mill (1806 - 1873), o mercado está baseado na psicologia do homem econômico que busca a riqueza. Mill, procurando uma explicação para a origem e desenvolvimento do “mercado”, sugere uma versão psicológica do contrato social. Para Popper (1966, p. 93), Mill explora a causa psicológica; sendo então obrigado a operar com a idéia de origem da sociedade. Se a epistemologia tradicional trabalha com a especulação psicológica sobre origens, é possível conjecturar que a teoria econômica tradicional tem estudado a psicologia do homem econômico principalmente na sua definição de racionalidade.

The adepts of psychologism need to explain the individual behavior and actions with the idea of a psychological origin of society. They fail to understand the main task of the explanatory social sciences. It is not the prophecy of the future from psychological motive extracted from individuals’ behavior or action. … it is the discovery and explanation of the less obvious dependences within the social sphere. It is the discovery of the difficulties which stand in the way of social action – the study, as it were, of the unwieldiness, the resilience or the brittleness of the social stuff, of its resistance to our attempts to mould it and to work with it
(Popper, 1966, p. 94).

O estudo dos motivos psicológicos ou comportamentais pode ser usado na explicação, mas o ambiente social, bem como as instituições e seu funcionamento, complementam tal explicação.

Uma teoria subjetiva implica em adotar a nossa psicologia – nossa intuição privada –, enquanto uma teoria objetiva requer que as nossas hipóteses sejam publicadas – caráter público – e expostas ao debate crítico. Para Popper (1966, p. 325), é possível desenvolver uma teoria da subjetividade, sem que a mesma seja subjetiva no sentido de pertencer única e exclusivamente ao autor. Ou seja, Popper não exclui os fatores subjetivos, porém eles não podem ser tomados como os principais elementos na busca do conhecimento. Popper está preocupado com a consideração de idéias privadas (teorias subjetivas) sem que as mesmas sejam tornadas públicas (teorias objetivas) e passem por um debate público e crítico. Tudo isso porque “nosso” conhecimento é limitado e incerto, isto é, falível. Essa é a diferença entre a teoria de valores subjetivos (caráter subjetivo) e a teoria de atos de escolha (hipóteses públicas). Essa é a diferença entre um pensamento dogmático que privilegia a posição pessoal e um pensamento crítico que privilegia o debate público. Essa é a diferença entre alguém que tenta impor sua lei (psicológica) aos outros, sem possibilidade de crítica, e alguém que admite a falibilidade (o caráter falível) de suas hipóteses e teorias.

Essa seção apresenta a luta de Popper contra a possibilidade de se buscar o conhecimento dentro das mentes humanas – o psicologismo. Popper alega a necessidade das idéias privadas tornarem-se públicas no sentido de incentivar a discussão pública e crítica. Para ele, não seria possível o crescimento do conhecimento se este originasse de uma determinada disposição psicológica assumida de forma dogmática. Ele não exclui as motivações humanas nas várias explicações dos fenômenos sociais, mas apenas ressalta que além das motivações existem também as instituições e os ambientes sociais das pessoas. Diante da limitação do nosso conhecimento e da importância das instituições e dos ambientes sociais das pessoas, discuto a seguir a terceira epistemologia criticada por Popper: o dogmatismo.”

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É isso!

Fonte:
Solange Regina Marin: “Karl Popper e Amartya Sen: Temas para Pensar em Intervenção Social e Desenvolvimento Humano”. (Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Desenvolvimento Econômico como requisito para a obtenção do título de doutora em Desenvolvimento Econômico. Orientador: Ramón García Fernández; Co-orientador: John Bryan Davis). Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2005.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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