A crítica de Popper ao determinismo científico

“Conforme observamos nas seções anteriores, Popper argumenta em defesa do indeterminismo metafísico. Em O Universo Aberto aparecem diversos argumentos favoráveis a esta doutrina, mas grande parte da estratégia do autor é a defesa do indeterminismo de um modo negativo: a refutação do determinismo científico, que por sua vez levaria ao enfraquecimento do determinismo metafísico. Para que recordemos, a versão metafísica do determinismo sustenta que todos os eventos, em seus mínimos detalhes, estão precisamente pré-ordenados pelas condições que os antecedem (todo evento tem uma causa ou combinações de causas que são condições suficientes de sua ocorrência). Assim sendo, há uma simetria entre o passado e o futuro; ambos estão rigidamente fixados. Por outro lado, o determinismo científico preserva as idéias acima mencionadas, mas acrescenta que os eventos podem ser, em princípio, preditos com precisão ilimitada (não por um ser sobrenatural, mas pelos métodos científicos humanos). Pois para a ciência determinista, a imprecisão dos dados empíricos pode ser constantemente reduzida, seja pelo avanço de novas teorias, seja pelo aprimoramento de novas técnicas matemáticas e experimentais. Contra este posicionamento, a perspectiva indeterminista metafísica de Popper defende que há exceções quanto à predeterminação precisa dos eventos. Alguns eventos podem ser predeterminados fisicamente (por exemplo: o rompimento de um fio ao sustentar um peso maior do que possa sustentar), enquanto outros certamente não são predeterminados (por exemplo: os ruídos provenientes da comunicação de uma palestra).

No entanto, a proposta popperiana de abalar a doutrina metafísica do determinismo através de um ataque ao determinismo científico é demasiadamente ousada. Este último não é uma conseqüência necessária do primeiro, de modo que é sempre possível objetar que a falsidade do determinismo científico (seja por razões lógicas ou seja pela falibilidade do empreendimento científico) não se transmite para o determinismo metafísico. Mas Popper utiliza a situação lógica (conforme vimos na seção 3.1) de modo diferente: o determinismo científico é uma asserção sobre o mundo e sobre o conhecimento humano (é uma asserção cosmológica e epistemológica); seu conteúdo informativo é mais vasto do que o conteúdo da versão metafísica (que é apenas uma asserção cosmológica). Assim, por ser mais informativa, a versão científica está sujeita a uma melhor apreciação crítica. Apesar de que uma refutação conclusiva do determinismo certamente não possa ser alcançada, pois os argumentos sempre podem ser revistos, ainda assim Popper leva sua estratégia adiante por acreditar que pouco resta em defesa do determinismo se algum argumento puder mostrar que predições científicas com grau ilimitado de precisão a respeito dos eventos são, de modo geral, inatingíveis.

Em O Universo Aberto Popper não evita – tal como procurou evitar na Lógica da Investigação Científica – a discussão crítica de certas teorias metafísicas. Tal como observa David Miller, o polêmico debate do problema do determinismo e do indeterminismo “pode ser visto como um proeminente caso de teste para a concepção contrapositivista de que as teorias metafísicas, se claramente formuladas, podem ser racionalmente discutidas e criticadas; de que os modos de discussão racional não se limitam à pesquisa empírica e à análise lógica e matemática” (Miller, 1997, p.153). Para Popper, nem toda discussão de asserções metafísicas leva a pseudoproblemas, isto é, a questões indecidíveis ou sem sentido – ou dito de um modo carnapiano: sentenças sem conteúdo empírico definido devem ser excluídas da linguagem da ciência (cf. Carnap, 1969). Do ponto de vista popperiano, a partir da análise dos problemas para os quais as teorias metafísicas foram originalmente empregadas é possível uma discussão crítica, pois tais teorias podem falhar em resolvê-los.

Porém, conforme Miller (1997, p.153), as teorias metafísicas mais procuram fugir dos problemas do que solucioná-los. O determinismo concede que os casos particulares de eventos vivenciados de maneira regular sejam generalizados, assim, aceita-se a existência de regularidades como uma asserção universal e verdadeira. Mas o problema das irregularidades que possam vir a surgir e perturbar a uniformidade da natureza é ignorado sem maior avaliação crítica. Com relação ao indeterminismo a situação é diferente. Esta doutrina afirma que não há somente eventos regulares e precisos na natureza (tais como os relógios de altíssima precisão), mas também eventos imprevisíveis (tais como as nuvens gasosas). Tais eventos irregulares não encontram explicação através da perspectiva determinista, ao passo que numa perspectiva indeterminista poder-se-ia explicá-los como sendo regularidades estatísticas. Mas o fato da ciência indeterminista poder resolver certos problemas através de explicações e predições estatísticas ainda não é suficiente. O problema que permanece insolúvel é: os fenômenos são, afinal de contas, determinados, parcialmente determinados ou completamente indeterminados? Não se pode provar nada a respeito, pois não importa quão significativo seja o número de argumentos a favor de uma ou de outra teoria metafísica.

Popper não pretende responder de forma conclusiva à questão apresentada acima, mas pretende ao menos apresentar argumentos racionais contra o principal argumento que tem sido colocado a favor do determinismo: o determinismo científico. Para Popper, os poderes de previsão do conhecimento humano são limitados, mas com relação à crítica do conhecimento são ilimitados. As teorias metafísicas são criticáveis, principalmente se incorporadas em uma forma supostamente científica. Este é o caso do determinismo científico, que depende principalmente do sucesso de uma teoria empírica, “(...) como no caso da teoria newtoniana: o determinismo ‘científico’ deve aparecer como resultado do sucesso da ciência empírica, ou, pelo menos, como sendo apoiado por ela. Parece basear-se na experiência humana” (Popper, 1992c, p.50). Certamente, nenhum outro programa científico apoiou tanto a idéia do determinismo como a física clássica. Segundo Popper (1992c, p.47), o matemático Pierre Laplace ofereceu a melhor descrição do que seria uma teoria determinista, ou melhor, uma teoria determinista prima facie (Popper utiliza esta expressão para colocar em dúvida se tal teoria de fato implica o determinismo). A famosa descrição de Laplace é a seguinte:

Devemos considerar o estado presente do universo como o efeito de seu estado anterior e como a causa do estado que o sucede. Uma inteligência que conhecesse todas as forças que atuam na natureza em um instante dado e as posições momentâneas de todas as coisas do universo, seria capaz de abarcar em uma só fórmula os movimentos dos corpos maiores e dos átomos mais leves do mundo, sempre que seu intelecto fosse suficientemente poderoso para submeter à análise todos os dados; para ela nada seria incerto, e tanto o futuro quanto o passado estariam presentes diante de seus olhos. A perfeição que a mente humana tem conseguido dar à astronomia proporciona um débil indício do que seria tal inteligência. Os descobrimentos da mecânica e da geometria, junto com os da gravitação universal, têm colocado a mente em condições de abarcar na mesma fórmula analítica o estado passado e futuro do sistema do mundo. Todos os esforços da mente na busca da verdade tendem a aproximar-se da inteligência que acabamos de imaginar, embora permanecerá sempre infinitamente distante dela. (Laplace, in Nagel, 1978, p.262)

A Inteligência (ou como prefere Popper: “demônio laplaciano”) imaginada por Laplace é a ficção de um cientista sobre-humano que teria capacidades ilimitadas para a solução de problemas científicos e para a predição de quaisquer eventos que fossem regidos pelas leis newtonianas (certamente por leis mais avançadas do que imaginou Laplace, pois os eventos também possuem propriedades químicas, térmicas, eletromagnéticas etc.). Bastaria que o demônio conhecesse com precisão suficiente as posições e as forças que atuam sobre os corpos materiais e a partir das equações da mecânica clássica poderia então calcular com a precisão que desejasse o estado mecânico passado ou futuro de tais corpos. Laplace faz com que o determinismo se torne realizável nos domínios da ciência, independentemente da crença metafísica no determinismo. Embora os cientistas humanos sempre se deparem com imperfeições na identificação das condições iniciais relevantes para levar adiante uma tarefa específica de predição, com o demônio laplaciano o grau de precisão das condições iniciais pode ser constantemente aumentado, não havendo impossibilidades de princípio com respeito ao melhoramento das medições e dos cálculos. Mesmo que se depare com um problema que possa parecer insolúvel, ainda assim o demônio imaginado por Laplace pode chegar a soluções cada vez mais próximas de um resultado satisfatório. Para Popper (1992c,p.48-9), o interessante na perspectiva de Laplace é a suposição de que o demônio deva operar com condições iniciais e com teorias, tal como um cientista humano. O demônio laplaciano não é uma ficção extremamente vaga, mas um cientista idealizado que trabalha de acordo com os métodos humanos de se fazer ciência. Por conseguinte, para ser bem-sucedido em uma particular tarefa de predição, o habilidoso cientista laplaciano deve ter à disposição certas teorias deterministas fundamentais. Isto nos conduz à questão de esclarecer o sentido no qual uma teoria é considerada determinista.

Uma teoria é considerada determinista, de acordo com Nagel, quando “a análise de sua estrutura interna revela que o estado teórico de um sistema em um instante determina logicamente um estado único deste sistema em qualquer outro instante” (Nagel, 1978, p. 265). Em outras palavras, uma teoria é determinista se nos permite realizar predições precisas a respeito do estado teórico (a descrição das coordenadas espaço-temporais exigida pela teoria) de um certo objeto ou sistema de objetos para qualquer instante estipulado. A descrição do estado teórico é considerada completa se contém toda a informação relevante (magnitudes e propriedades físicas, tais como a posição, a velocidade, a massa, etc.) acerca do objeto ou do sistema de objetos. Assim, a partir de um estado teórico e de um instante preciso, uma teoria é considerada determinista se, para qualquer outro instante, ela nos permite deduzir um estado teórico específico.

O exemplo ordinariamente reconhecido de teoria determinista é a mecânica newtoniana. Segundo Nagel (1978, p.259 e ss), a mecânica clássica é formalizada em um sistema de equações que nos permite deduzir a variação no tempo de certos estados físicos a partir de outros estados específicos. Na dinâmica newtoniana, o estado mecânico, por exemplo, de certas partículas, é constituído pelas coordenadas de posição e quantidade de movimento em um determinado instante. As diversas variações que o estado mecânico das partículas podem apresentar são denominadas variáveis de estado. Além das variáveis de estado, as equações do movimento de Newton contêm uma função denominada função força. Quando é fornecida a função força em um instante inicial, assim como as posições e velocidades iniciais, as equações determinam um estado específico do sistema físico em questão para qualquer outro instante. Esta peculiaridade faz da dinâmica newtoniana uma teoria determinista.

Porém, adverte Nagel (1978, p.262) a teoria newtoniana é determinista apenas com relação às propriedades mecânicas dos sistemas físicos; ela não nos permite predizer variações de estado de natureza diferente (químicas e elétricas, entre outras). Além disso, o determinismo da mecânica clássica tem relação somente com os estados teóricos de um sistema físico, pois utiliza conceitos ideais, tais como a posição e a velocidade instantâneas. Isso não significa que as variáveis de estado são obtidas por medição real. Afinal, as medições experimentais não são quantidades instantâneas, mas médias estatísticas efetuadas em um período de tempo; são, no máximo, aproximações do estado teórico. Assim sendo, para Nagel (1978, p.264-5), deve ser separada a questão da estrutura lógica da teoria da questão empírica a respeito da adequação das predições com a experiência. É correto afirmar que a mecânica clássica é determinista devido à dependência lógica interna de seus elementos, mas é incorreto afirmar que a mesma é indeterminista em função da discrepância daquilo que é medido com relação ao que é predito.

A definição formal apresentada por Popper do que vem a ser uma teoria determinista apresenta poucas variações em relação à definição de Nagel. No entanto, Popper não está preocupado apenas com o sentido lógico e matemático no qual poderse-ia considerar uma teoria determinista, mas também com a questão epistemológica vinculada ao problema. Pois a questão central que ocupa Popper é a possibilidade de tal teoria, no caso de ser bem-sucedida, servir de apoio empírico ao determinismo científico. Para ele, uma teoria é prima facie determinista “(...) se e só se nos permitir deduzir, a partir de uma descrição matematicamente exata do estado inicial de um sistema físico fechado que é descrito em termos da teoria, a descrição, com qualquer grau de precisão finito estipulado, do estado do sistema em qualquer dado instante futuro do tempo.” (Popper, 1992c, p.49). A definição acima conserva as características lógicas delineadas por Nagel. No entanto, Popper acrescenta que o sistema físico levado em conta por uma teoria determinista é um sistema fechado (cf. seção 3.2), isto é, um sistema onde nenhum objeto pode interagir a partir do seu exterior, pois de outra forma, esse sistema sofreria interferências não desprezíveis, o que acarretaria a possibilidade de predições cada vez mais precárias. Além disso, Popper fala de uma versão finita do determinismo: o grau de precisão das condições iniciais necessárias para efetuar predições não é infinitamente computável. Os próprios métodos de cálculo podem apresentar limitações, mas além disso, também há o problema experimental concernente ao fato de que o aparato de medição utilizado para realizar a leitura do estado do sistema pode provocar a mencionada interferência externa. O determinista procura passar por alto destas dificuldades. Contudo, Popper (1992c, p.49) está disposto a conceder que sua definição de teoria determinista não exija predições com absoluta precisão matemática (embora supõe condições iniciais exatas), como também sugere enfraquecêla, limitando os sistemas a serem investigados aos sistemas físicos que não sejam demasiadamente complexos. Se Popper exigisse uma definição mais rigorosa da mencionada teoria, uma teoria física, tal como a física newtoniana, trivialmente seria considerada indeterminista....”

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É isso!


Fonte:
WILLIAN RODRIGO STUBERT: EXPLICAÇÃO CAUSAL E INDETERMINISMO NA FILOSOFIA DE KARL POPPER”. (Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre do Curso de Mestrado em Filosofia do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Eduardo Salles de Oliveira Barra). Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2007.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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