O corpo consumido como valor social

“Na sociedade atual, os corpos são controlados por meio de um processo de personalização (Lipovetsky 2005), que consiste em reduzir as atitudes autoritárias e, ao mesmo tempo, incentivar a livre escolha, a diversidade e a satisfação dos desejos. O controle social não ocorre mais via repressão, mas pelo estímulo e pela sedução de uma “liberdade” irrestrita do indivíduo para satisfazer seus desejos e comunicar suas idéias, livre, cada vez mais, do controle da tradição, da hierarquia e da padronização.

A sociedade, ao privilegiar a satisfação dos desejos individuais e o hedonismo, se apóia, principalmente, na lógica do consumismo que prevaleceu num primeiro momento, nos Estados Unidos, na década de 1920, e, posteriormente, em toda a sociedade ocidental (Lipovetsky, 2005). A partir desta lógica, a grande maioria das pessoas não apenas teve acesso a inúmeros objetos de luxo por meio da publicidade, mas também às inúmeras facilidades de crédito para consumi-los, usufruindo, o máximo possível, das produções do capitalismo.

O culto ao prazer e aos desejos pessoais é, hoje, legitimado pelo consumismo como ordem social. Percebemos que nasce, então, uma nova forma de organização, na qual se integram ao processo de personalização conteúdos culturais que, antes, eram opostos, formando um indivíduo livre do peso da tradição e dos valores religiosos, mas fortemente atado à lógica capitalista. Em seu estudo sobre o consumo, Costa (2004) defende a hipótese ecológica sobre o consumismo, segundo a qual a relação entre o organismo humano e o meio ambiente, pela aquisição de objetos, é fundamento da expressão da vida. O ato de adquirir objetos tem um sentido psicossocial e remete à relação do sujeito com o mundo, na qual ele pode materializar as suas expectativas e os seus ideais de felicidade. Consumir representa, então, nesta perspectiva, uma maneira de o homem se apropriar emocionalmente dos objetos no mundo. “Na relação do sujeito com o mundo, todo objeto cede parte de sua concretude física à imaginação emocional e toda intencionalidade emocional recorre a materialidade física dos objetos para ganhar consistência e durabilidade cultural”. (Costa, 2004, p. 162). O mundo é a moldura simbólica e material na qual nos movemos e da qual extraímos os elementos usados para formar os nossos hábitos físicos e mentais.

Nos tempos atuais, a função moral dos objetos parece se alterar. Na moral dos sentimentos, expressa nos costumes da antiga burguesia, os objetos eram representantes das crenças e da história dos indivíduos, enquanto que, hoje, na moral do consumo, eles assumem uma conotação transitória e já não representam o passado ou uma personalidade, mas a sensação e o “status” que, com eles, se pode conquistar (Costa, 2004).

Em nossa sociedade, os objetos perdem rapidamente o seu valor, caem facilmente em desuso e são ultrapassados por outros mais modernos. Permanece, neste contexto, a reprodução da insatisfação nos indivíduos, o que garante a compra desenfreada dos objetos e, por sua vez, a manutenção do sistema econômico capitalista. Baudrillard (1970) corrobora esta perspectiva, ao assinalar que a função da sociedade de consumo é regular a escassez de bens materiais ou simbólicos a fim de originar, nos indivíduos, a carência e o privilégio, elementos básicos para a diferenciação social.

A apropriação dos objetos de consumo como doadores de “status” e de prazer acentua-se e modifica a relação sujeito-objeto a partir de pelo menos três fenômenos socioculturais: a mudança da natureza do trabalho, as novas percepções das imagens do corpo e o enfraquecimento moral da autoridade (Costa, 2004, p.163). Elegemos, como foco de nossos estudos, o corpo como valor principal do sujeito, sendo este julgado socialmente a partir de sua “corporalidade”.

Consideramos que a imagem do corpo é fortemente inflacionada, por ser ela o principal espaço de juízo social. Esta parece ser o único item do mundo dos privilegiados à disposição do homem comum. Assim como explicou Costa (2004), apresentar-se com um corpo como o dos bem-sucedidos é a forma como muitas pessoas têm de, imaginariamente, ganhar “status” e aprovação social. O sujeito, então, passa a lidar com o seu corpo como se ele fosse um passaporte para o reconhecimento social e a realização pessoal.

A preocupação com a forma física e com a estética, pouco a pouco, toma o espaço da preocupação com os sentimentos e as tradições. O tipo de prazer a que se aspira mudou. Costa (2004) nos indica que a felicidade sentimental implica ter boa experiência afetiva, sendo importante para o sujeito expressar suas idéias e costumes. Entrementes, no cultivo das sensações, estar feliz significa, essencialmente, se perceber corporalmente semelhante aos astros da mídia, bem como usufruir as sensações e “status” que os objetos e o seu “novo” corpo lhe podem oferecer. A tradição e a história já não têm tanta importância, pois as sensações almejadas, na atualidade, precisam somente do momento presente e dos objetos à mão para serem vividas.

Com o recuo das antigas raízes sociais, da tradição, da religião, enfim, dos valores de outrora, a mídia assume um lugar de grande importância na sustentação do consumismo e das formas atuais de se relacionar consigo mesmo e com o outro (Lipovetsky, 2005), pois é a partir da divulgação das mais diversas invenções da moda e da eficiência científico-tecnológica, bem como do sucesso das pessoas que delas fazem uso, que o desejo de comprar e de buscar o ideal da felicidade é instigado.

Como nos ensina Costa (2004), a referência dos sujeitos deixa de ser a família, o trabalho ou a religião, para ser a celebridade, que é forjada no mundo mutável da moda. O autor ressalta que, atualmente, não se espera mais da autoridade o cultivo dos referenciais e das tradições, mas da beleza física, do sucesso e da visibilidade. O sujeito contemporâneo, sem o peso dos valores éticos e também morais de outrora, luta pela via do consumo, do individualismo e/ou da violência, para adquirir os objetos que o aproximem do mundo das celebridades.

Acompanhamos Costa (2004) na no ção de que comprar ou adquirir objetos não é em si mesmo, ruim, mas é importante para o sujeito, pois é justamente este movimento que o constitui socialmente. Isto parece só assumir uma lógica desagregadora e violenta na medida em que o sujeito se afasta das representações simbólicas e éticas para priorizar as sensações, o “status” e o entretenimento.

Depreendemos, portanto, que é a partir do momento em que a diferenciação como sujeito se fragiliza que a relação com os objetos, e por que não dizer com o corpo, passa a ser fortemente afetada pela lógica homogeneizante do consumismo.

Não percebemos, portanto, que o sujeito poste diante dessa realidade consumista como um vácuo, totalmente sem valores. O que pensamos junto com Costa (2004), Le Breton (2003, 2004) e Lipovetsky (2005) é que os referenciais da atualidade são outros, são aqueles que valorizam a experiência corporal. O sujeito atual opta por cuidar ou modificar o corpo não porque é um objeto estéril nas mãos dos ideais do capitalismo, mas, principalmente, por percebê-lo como um espaço de grande investimento social e subjetivo. Para contar a história de vida ou para apresentar-se aos outros, o sujeito não privilegia mais os contos ou a tradição, mas a ação no corpo. Se considerarmos que tal visão para o corpo é em si mesmo ruim, estaremos sendo maniqueístas e lançando-o em uma posição negativa. Reconhecemos, porém, que os discursos sociais afetam fortemente, não apenas, a relação do sujeito com os objetos de consumo, mas, sobretudo, a relação do sujeito com sua forma física.

Consideramos que, a partir do crescente desenvolvimento das vivências do consumismo, outra característica se manifesta em nossa sociedade, o narcisismo1. Este tem seu fortalecimento na esfera social a partir do que Lipovetsky (2005) fala sobre o privilégio dado na sociedade à satisfação dos interesses individuais em detrimento da coletividade. Aludimos, portanto ao fato de que, a partir das vivências sociais do consumismo e narcisismo, nasce outro tipo de indivíduo, aquele fundado nos princípios de um hiperindividualismo.”

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É isso!

Fonte:
KARINE MAGALHÃES FERNANDES VIEIRA: “O CORPO DA MULHER EM CORREÇÃO: SUBJETIVIDADE E CIRURGIA ESTÉTICA”. (Dissertação apresentada à Coordenação do Curso de Mestrado em Psicologia da Universidade de Fortaleza - UNIFOR, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Leônia Cavalcante Teixeira). Universidade de Fortaleza – UNIFOR.Fortaleza, 2006.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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