O processo de demonização do “outro"

“Deus e o Diabo estão em batalha, em que Deus já é o vencedor a priori, no entanto, o que temos, de fato, é uma batalha pelas almas. Porque haverão aqueles eleitos que, santificados, serão salvos e os imprudentes que se perderão e se condenarão à danação eterna. Tal dualismo e embate sempre estiveram marcados no cristianismo, todavia neopentecostais e deuteropentecostais como a Casa da Bênção e a Deus é Amor potencializaram tal disputa criando ensejos litúrgicos, que associavam a verdadeira libertação a destronamentos do Diabo, como em casos de “macumba”. Temos os cultos afro-brasileiros e kardecista estigmatizados, pelo (neo) pentecostalismo, uma vez que estes outros são agenciadores do mal e lutam por levar a humanidade para o Mal.

Em recortes citados por Mariano (1999:114) Edir Macedo e R. R. Soares apresentam os embustes do Diabo de forma a responsabilizá-lo por todo o mal existente no mundo. Um processo que acredito ser de desresponsabilização pelos produtos oriundos da própria decadência humana, biológica e moralmente situada.

(...) não existe nada que esteja fora da ação demoníaca. No futebol, na política, nas artes e na religião, nada escapa ao cerco do Diabo (...) Satanás tem milhares de agências no mundo (...) Por trás da religião, do intelectualismo, da poesia, da arte, da música, da psicologia, do entendimento humano e de tudo com o que temos contato, Satanás se esconde”. Cita ainda, “centros de perdição” como “as adegas, os prostíbulos, as casas de jogo de azar, os bares onde as pessoas se
embriagam e tantas outras coisas que transtornam a vida dos homens são também agências do Diabo. O espiritismo não ensina seus adeptos a se afastarem delas; pelo contrário, bebidas alcoólicas, fumo, prostituição e coisas desse tipo são comuns principalmente no baixo espiritismo (...). O Diabo controla tudo. Há pessoas tão envolvidas com o espiritismo que têm sob controle dos espíritos desde a alimentação até sua vida sexual. Os espíritos se envolvem com tudo. Cores de roupas, lugares onde passear, tipos de carnes e comidas, dias de lazer, pessoas com quem devem fazer amizade, filmes a que se pode assistir, horário para andar pelas ruas, modo de banhar-se” (Soares, 1984: 24, 83, 85, 103, 114).

Para Edir Macedo, até mesmo os vírus e bactérias, ou seja, tudo que causa doenças é de origem demoníaca. Segundo o grande líder da Universal o Brasil não é desenvolvido porque o demônio utiliza-se do catolicismo (Macedo, 1988:27, 104). É necessário, desta forma, que os fiéis estejam preparados para lutar por suas almas, e este empreendimento acaba por demonizar o diferente que precisa ser derrotado, pertença necessária que elabora um sentido a estas vidas precarizadas pela exclusão socioeconômica. A alteridade religiosa é impossível, o que torna toda e qualquer possibilidade de ecumenismo um disparate para os membros destas religiões que precisam do Diabo para fazer o Bem vencedor. As religiões que pregam uma teologia que não observa os embustes do “Inimigo”, pela apostasia acabam por também se fazerem inimigos, uma vez que não preparam seus fiéis para a “ordem de batalha”. A “armadura dos cristãos” presente na Epístola de Paulo à Comunidade dos Efésios nunca esteve tão contemporaneamente colocada. “Revesti-vos da armadura de Deus para estardes em condição de enfrentar as manobras do diabo” (Efésios 6,11).

Qualquer contato com a obra maligna leva, irremediavelmente, a sintomas. Sintomas tão banais da ordem física, que qualquer um poderia estar virtualmente possuído. Com tamanha abrangência, o proselitismo torna-se uma potente “arma” para a conversão dos aflitos.

A matriz religiosa brasileira passou por mudanças profundas no que diz respeito a pluralidade. O pluralismo existente passou a ser mais tolerado no século XX, cada vez mais desenraizado do itinerário simbólico do catolicismo. Até o Catolicismo de veemente perseguidor tornou-se difusor de práticas ecumênicas, todavia, frobrasileiros e espíritas retomaram os discursos “vitimizadores” diante os novos enfrentamentos encabeçados pelos (neo) pentecostalismo.

O que acontece no espiritismo, na verdade, justificaria chama-lo fábrica de loucos. Engano, desequilíbrio mental e nervoso, crime, loucura, possessão e opressão demoníaca, prostituição, pederastia, lesbianismo, idolatria, etc. (...) Há muito charlatanismo os terreiros”. Prossegue o líder da Internacional da Graça ao dizer que no Quimbanda existe “exus protetores de pederastas, de viciados, de valentões, de ladrões etc. Muita bebida, principalmente cachaça (marafo) é consumida por seus adeptos”. O Candomblé é acusado de ser “uma das religiões mais diabólicas que a humanidade já conheceu”. O Umbanda é o “lugar” em que até “os demônios são adorados como deuses, a quem prestam cultos e sacrifícios (...) O Espiritismo (kardecista) é a maior agência que Satanás estabeleceu neste mundo para extraviar e perder os homens” (Soares, 1984: 21, 29, 31, 34, 70, 84)."

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É isso!

Fonte:
Diemerson Saquetto: “A Invenção do pastor político: imaginários de poder político construídos a partir da história das bancadas evangélicas”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social das Relações Políticas do Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em História. Orientador: Profº Drº Estilaque Ferreira dos Santos. Co-orientador: Profº Drº João Gualberto M. Vasconcellos). Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, 2007.

Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.

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