O Revisionismo Popperiano de Imre Lakatos

Imre Lakatos toma a sério a crítica de Kuhn. Antes de se referir apenas a um ponto técnico de epistemologia, diria essa respeito aos nossos valores intelectuais básicos: “Se nem na ciência há outro modo de julgar uma teoria senão calculando o número, a fé e a energia vocal de seus apoiadores, isso terá de ocorrer principalmente nas ciências sociais: a verdade está no poder.” Sua estratégia, pelo que podemos depreender de seus textos, consiste em admitir que, se de um lado a história da ciência se constitui num problema para a metodologia popperiana, ela não implica, como quer Kuhn, numa falência da racionalidade, mas apenas numa reformulação dos cânones básicos da filosofia de Popper. Newton-Smith concorda com essa nossa posição: “Como Lakatos observa, a história da ciência não é consoante ao modelo popperiano.”; demonstrar como história e racionalidade não são termos incompatíveis, será a meta da argumentação de Lakatos.

Distingue Lakatos vários tipos de falseacionismo em Popper, o primeiro dos quais
denomina de ‘dogmático’. O falseacionismo dogmático seria uma espécie de variante do justificacionismo. Enquanto o justificacionismo crê ser possível a justificação conclusiva de um enunciado, o falseacionismo dogmático poderia ser caracterizado da seguinte maneira:

A marca distintiva do falseacionismo dogmático é, pois, o reconhecimento de que todas as teorias são igualmente conjecturais. A ciência não pode provar teoria alguma. Mas se bem que não possa provar, pode refutar: ela pode executar com certeza lógica completa [o ato de] repúdio do que é falso, isto é, há uma base empírica de fatos absolutamente firme que se pode usar para refutar
teorias.

A.J.Ayer já havia atribuído essa posição a Popper, e talvez isso possa ser creditado a um viés positivista algo estreito de análise, mas porque Lakatos, a quem isso não pode ser argüido, rotula Popper dessa forma é, em princípio, curioso. Andersson faz uma observação irônica a respeito:

(...) Lakatos pensa que Popper começou como falseacionista dogmático nos anos vinte, mas não publicou nada antes de haver criado o falseacionismo metodológico. Lakatos não nos conta como sabe que Popper tenha alguma vez sido um falseacionista dogmático. Como o falseacionista dogmático nunca publicou nada, esse conhecimento (de Lakatos) é um mistério.

A posição dogmática estaria estribada, segundo Lakatos, em dois pressupostos
falsos: 1) Existiria uma distinção natural entre enunciados teóricos e enunciados observacionais (básicos), que viabiliza de forma concludente a refutação. 2) Se uma proposição é observacional (básica), então é verdadeira, isto é, demonstrada pelos fatos. A esses pressupostos se soma, de maneira relativamente coerente, o critério de demarcação: “(...) só são ‘científicas’ teorias que impedem certos estados de coisas observáveis e, portanto, são factualmente refutáveis. Ou, uma teoria será ‘científica’ se tiver uma base empírica.”

Lakatos se contrapõe a essa posição relembrando alguns dos argumentos empregados por Galileu para refutar os aristotélicos com base nos dados do telescópio. As manchas na Lua, por exemplo, provariam sua semelhança com a Terra mediante dados ‘observacionais’, que somente são observacionais quando pressupomos a validade de uma teoria ótica, isto é, qualquer dado de observação já está repleto de teoria. É mais ou menos a mesma argumentação que Popper dirigia contra os positivistas, e que Lakatos enuncia de forma precisa e correta – resta saber dirigida a quem, a um Popper dogmático? - : “(...) não há, nem pode haver, sensações não-impregnadas de expectativas e, portanto, não há demarcação natural (isto é, psicológica) entre proposições observacionais e teóricas.”. Da mesma maneira, Lakatos argumenta a partir do Trilema de Fries no que tange ao segundo pressuposto: “(...) nenhuma proposição fatual pode ser provada a partir de uma experiência. As proposições só se podem derivar de outras proposições, não se podem derivar de fatos (...).” Eliminados os dois pressupostos do dogmatismo, seu critério de demarcação sucumbe solenemente: se todos os enunciados são teóricos, são desde sempre falíveis, ou mesmo sujeitos a uma reinterpretação ad hoc, admitir a refutabilidade no sentido dogmático como critério de demarcação, inviabiliza que apliquemos a qualquer teoria o rótulo: “científica”: “E o fato é que são exatamente as teorias mais importantes, ‘maduras’, da história da ciência que são prima facie irrefutáveis dessa maneira.”, o que leva Lakatos a concluir, de forma correta e coerente com Popper que : “(...) o reconhecimento de que não só as proposições teóricas mas todas as proposições em ciência são falíveis, significa o colapso total de todas as formas de justificacionismo dogmático como teoria da racionalidade científica.”

O caráter mais típico de Popper se colocará na elaboração de uma alternativa ao
dogmatismo, mediante o desenvolvimento de um convencionalismo que, ao contrário do convencionalismo clássico, argumentará que os enunciados que se aceita por consenso não são universais mas singulares. Lakatos denomina essa posição de ‘falseacionismo metodológico ingênuo’:

O nosso convencionalista revolucionário popperiano (ou ‘falseacionista metodológico’) torna não falseáveis por decreto alguns enunciados (espaçotemporalmente) singulares que se podem distinguir pelo fato de existir na ocasião uma ‘técnica pertinente’ tal que, quem quer que a tenha aprendido será capaz de decidir que o enunciado é ‘aceitável’. Um enunciado dessa ordem pode ser cognominado ‘observacional’ ou ‘básico’, mas apenas entre aspas. Com efeito, a própria seleção de todos esses enunciados é uma questão de decisão, que não se baseia em considerações exclusivamente psicológicas. Essa decisão é então seguida de uma segunda espécie de decisão relativa à separação do conjunto de enunciados básicos aceitos do resto.

Admite Lakatos que o falseacionista metodológico sabe que as ‘técnicas pertinentes’ envolvem teorias que, por serem objetivas são falíveis, porém as remete a um conhecimento não problemático de fundo, isto é, um conhecimento que tenha sido corroborado de forma independente e que, por não estar em questão no momento, pode ser admitido: “A necessidade de decisões para demarcar a teoria que está sendo testada do conhecimento de fundo não-problemático é um traço característico dessa classe de falseacionismo metodológico.” Retomando o exemplo de Galileu, tudo aquilo que fosse pressuposto de suas observações faria parte desse ‘pano de fundo’ convencionalmente aceito pela comunidade científica. É dessa forma, conclui Lakatos, “(...) que o falseacionista metodológico estabelece sua ‘base empírica’. (Ele –Popper – usa aspas a fim de “dar uma conotação irônica à expressão”) Essa “base” dificilmente poderá ser chamada de base pelos padrões justificacionistas: não há nada de provado no que diz respeito a ela – ela denota estacas colocadas em um pântano.”

Como resultado dessa caracterização emergiria um critério de demarcação que Lakatos admite ser bem mais liberal do que o dogmático, até porque mediante uma definição prévia de consistência, permitiria admitir como científicas teorias probabilísticas:

(...) somente são “científicas” as teorias – isto é, proposições não-“observacionais” – que proíbem certos estados de coisas “observáveis” e, portanto, podem ser “falseadas e rejeitadas; ou, em poucas palavras, uma teoria é “científica” (ou “aceitável”) se tiver uma base empírica. Esse critério põe de manifesto, com nitidez, a diferença entre o falseacionismo dogmático e o metodológico.

A questão para Lakatos é que apenas essas três decisões não bastariam. Para tanto propõe que acompanhemos o seguinte raciocínio. Imaginemos um físico pré-einsteiniano que busque calcular a órbita de um planeta recém descoberto. Para tal tarefa ele dispõe: da lei da gravitação (N), e de condições iniciais (I). Supondo-se que o planeta se desvia da órbita prevista, isso significaria que o caso refuta N que proíbe esse desvio? “Não. Sugere que deve existir um planeta p’, até então desconhecido, que perturba a trajetória de p.” De posse dessa “intuição”, nosso físico calcula a órbita de p’ e busca sua comprovação empírica. O problema se repete: p’ é tão pequeno que nenhum telescópio nos permite a observação desse hipotético planeta. Teremos então a refutação? Não. Nosso cientista consegue maiores verbas para construir um telescópio mais potente, etc... De acordo com Lakatos esse problema vai se repetir ad infinitum “Pelo menos enquanto um novo programa de pesquisa não suplantar o programa de Newton, e explicar esse fenômeno anteriormente recalcitrante. Nesse caso, o fenômeno será exumado e entronizado como “experiência crucial”.” Como então viabilizar uma refutação? Somente pela introdução do que Lakatos denomina de ‘clausula ceteris
paribus’ (CP) isto é, uma hipótese que enuncie claramente a proibição “(...) que nenhuma outra causa pertinente se encontra em ação em algum lugar do universo.” Essa cláusula permitiria evitar a suposição p’ do exemplo acima. Dessa forma, a estrutura da explicação não se restringiria apenas a uma conjunção N Λ I → p, mas sim, N Λ I Λ CP → p. Teremos agora a refutação? Não necessariamente, um 4º tipo de decisão se fará necessária: se descobrirmos que a conjunção de N Λ I Λ CP foi refutada, caberá ao falseacionista metodológico “(...) decidir se deve tomar a refutação também como refutação da teoria específica.”, afinal de contas poderia supor apenas uma refutação de CP. Porém se supomos, nessa linha de raciocínio, que CP faz parte do pano de fundo não-problemático, isto é, que está bem corroborada por testes independentes então, o que podia ser visto na perspectiva de Kuhn como um quebra-cabeças ou mesmo uma anomalia, passa a ser agora um contra-exemplo, uma prova crucial que pode de fato falsear a teoria. Apenas quando esse 4º tipo de decisão for tomada é que será possível, nessa linha de argumentação, dizermos que a teoria de Newton é ‘científica’. Nessa perspectiva nos parece pertinente concluir que Kuhn e Lakatos têm em comum, entre outros pontos, a crença de que a falsificação tem que ser conclusiva; somente do fato desse caráter terminal é que seria viável a racionalidade do falibilismo popperiano e a irracionalidade de seus contrapontos. Mais do que uma ficção, o falseacionismo dogmático atribuído a Popper por Lakatos, é antes de tudo um elemento corroborador de que Popper, por mais que Lakatos afirme explicitamente ao contrário, e veremos isso em seguida, é antes de tudo um dogmático.

Ainda que não seja muito clara sua necessidade, Lakatos introduz um 5º tipo de decisão visando, mediante o confronto com uma teoria científica, falsear teorias metafísicas. Andersson nesse ponto concorda conosco: “Não é claro por que esse tipo de decisão é necessária. Se existe uma contradição entre a metafísica e uma teoria científica, e se nós assumimos que a teoria científica é verdadeira, então logicamente se segue, sem qualquer decisão convencional, que a teoria metafísica é falsa.” Feito esse último reparo, passemos agora as conclusões de Lakatos.

Lakatos admite que o falseacionismo metodológico representa um avanço, tanto sobre o justificacionismo quanto sobre o dogmatismo, o problema é que envolve muitos riscos, riscos que podem “(...) levar-nos desastrosamente para o mau caminho. O falseacionista metodológico é o primeiro a admiti-lo. Mas isso, argumenta ele, é o preço que temos de pagar pela possibilidade do progresso” , mas advoga o popperiano de Lakatos que não temos alternativa, ou sucumbimos ao ceticismo que resulta da falência do justificacionismo, ou entramos em “(...) um jogo que em que temos poucas esperanças de vencer, mas afirma que ainda é melhor jogar do que desistir.” A temeridade heróica do falseacionismo metodológico é tal que Lakatos não exita em rotulá-lo como “(...) filosofia “existencialista” da ciência.” Desaforos à parte, o argumento decisivo de Lakatos advém da história da ciência: nenhuma refutação histórica ocorreu segundo os moldes acima estabelecidos:

Segundo estes padrões, os cientistas parecem ser com freqüência irracionalmente lentos: por exemplo, oitenta e cinco anos decorreram entre a aceitação do periélio de Mercúrio como anomalia e sua aceitação como falseamento da teoria de Newton (...). Por outro lado, os cientistas parecem, não raro, irracionalmente impetuosos: Galileu e seus discípulos, por exemplo, aceitaram a mecânica celeste heliocêntrica de Copérnico apesar das abundantes evidências contra a rotação da Terra (...)."

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É isso!

Fonte:
Julio Cesar Rodrigues Pereira: “A fórmula do mundo segundo Karl Popper”. (Tese apresentada à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul como requisito para a obtenção do grau de Doutor em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Eduardo Luft). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2009.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.

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