A Intolerância no discurso de Edir Macedo

"Mas em que se fundamenta o discurso de Edir Macedo e o que nos leva a considerá-lo “intolerante”? O que é intolerância? O conceito de intolerância religiosa, por nós utilizado, está relacionado aos atos de violência e preconceito contra tudo aquilo que se apresenta como, o diferente, o outro ou o concorrente. A intolerância é entendida também como uma atitude mental, verbalizada e praticada quando se desrespeita as diferenças culturais, sociais ou crenças religiosas. Ora, por que esta intolerância se configura de modo tão acentuada para com as religiões afro-brasileiras nesse discurso? Em seus estudos Ricardo Mariano tem defendido a idéia de que os ataques às religiões afro-brasileiras “ocorrem por estas serem as maiores concorrentes da IURD no mercado de soluções simbólicas e de prestações de serviços religiosos” das pessoas. (MARIANO, 1995:108).

A intolerância fundada em sentimentos e crenças religiosas, desde o princípio das civilizações está presente nas relações humanas de diversas formas. Inúmeras guerras e matanças de seres humanos sejam de forma limitada ou nas guerras mais amplas quase sempre há a destruição de símbolos religiosos, de templos, de bibliotecas ou provocam assimilação de novas visões de mundo nos povos dominados. A Idade Média foi um período desses em que a intolerância religiosa se tornou visível com requintes de violência, principalmente contra os judeus, árabes e os cristãos considerados “heréticos”. Já no início dos tempos modernos a perseguição dos protestantes, das bruxas ou feiticeiras e dos livres pensadores, pode ser apresentada como exemplos históricos de intolerância.

A intolerância em geral se manifesta em atitudes de ódio sistemático e agressividade irracional contra indivíduos, grupos de outras nacionalidades, raças, etnias, opção sexual ou aos partidários de outras religiões. Infelizmente, apesar dos grandes avanços ocorridos em nossa civilização há pelo menos trezentos anos, particularmente por meio do desenvolvimento intelectual e técnico-científico dos séculos XIX e XX, tudo isso, não foi capaz de produzir algo que eliminasse a intolerância da convivência entre povos e nações. Portanto, a intolerância é uma questão que continua muito presente em nossa história. Como afirma Umberto Eco, “é como se nos dois últimos séculos, e ainda antes, esse nosso mundo tivesse sido percorrido por sopros de intolerância, esperança e desespero, todos juntos” (ECO, 2003:193).

Podemos aqui reforçar o conceito de intolerância, usando-se para isso a noção de “violência simbólica”, corrente nas análises de Pierre Bourdieu. Podemos citar dois tipos diferentes de violência, a violência física como: agressões físicas, assassinatos, roubos, violência sexual, entre outras e, a violência simbólica presente nas relações de poder, podendo essas se caracterizarem como violência verbal, discriminação por raça, cor, gênero, por imposição cultural de dominadores sob seus dominados, e outros. Segundo Bourdieu (2007), a violência simbólica sucede através de um poder quase “invisível” que não se nomeia, que dissimula as relações de força existente entre dominadores e dominado. Quase sempre a vítima desse processo, o oprimido não se percebe como tal, considerando a ação do dominador como natural e por vezes inevitável. A sociedade, a escola, o Estado e os meios de comunicação são Instituições que podem exercer essa violência simbólica. Assim para Bourdieu (2007:146):

Todas as estratégias simbólicas por meio das quais os agentes procuram impor a sua visão das divisões do mundo social e da sua posição nesse mundo podem situar-se entre dois extremos: o insulto, idios logos pelo qual um simples particular tenta impor o seu ponto de vista correndo o risco da reciprocidade; a nomeação oficial, acto de imposição simbólica que tem a seu favor toda a força do coletivo, do consenso do senso comum, porque ela é operada por um mandatário, do Estado, detentor do monopólio da violência simbólica legítima".

Nesse sentido violência física e simbólica se constituem duas faces de uma mesma moeda. Logo, a própria “sessão de descarrego” pode ser encarada como um ato de violência contra a vítima. Nessa perspectiva, podemos analisar o livro Orixás, Caboclos e Guias...., como também sendo ele portador de um discurso e de representações das religiões afro-brasileiras que contribuem com tais formas de violência simbólica e intolerância. Violências físicas e simbólicas são ocorrências freqüentes na sociedade, um exemplo significativo ocorreu na primeira década deste nosso século, ora encerrado, presenciamos o ciclo de violência e intolerância decorrentes ao ataque terrorista aos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001. Nessas condições, basta ser muçulmano para correr o risco de se tornar uma pessoa suspeita de terrorismo. Aliás, Antônio Ozaí da Silva (2004) nos mostra que “em nome da segurança, o homem aceita racionalmente a intolerância do Estado contra outros povos e culturas”. O resultado disso é a generalização, a confusão entre a parte e o todo e o aparecimento de um processo em que as ameaças à ordem interna, precisam ser eliminadas. Todavia a história tem sido marcada pelo aparecimento de resistências ou de busca de tolerância como respostas a atitudes irracionais, xenófobas, preconceituosas e intolerantes.

Uma das formas de resistência tem sido feita por meio de manifestações artísticas. Há autores que se posicionam contra a intolerância nos seus mais diversos aspectos: religioso, político, nacionalista ou ideológico. Ozaí da Silva apresenta alguns autores que tem trazido para o campo da literatura a discussão a respeito da intolerância. Entre outros são lembrados autores como Umberto Eco, com seu livro Em nome da rosa; Dostoiévski em Os Irmãos Karamázov ou George Orwell, em 1984 ou Revolução dos Bichos.

Ao lado dessas formas de resistências praticadas pelos escritores surgem, ainda que timidamente, organizações civis como Organizações Não Governamentais (ONGs), que defendem a adoção de leis e normas jurídicas para extinguir as mais diversas formas de manifestações de intolerâncias, institucionalizadas ou não. Vagner G. da Silva (2007:24) tem abordado o tema da intolerância contra as religiões afro-brasileiras em seus escritos, enfatizando a necessidade de que esse debate esteja presente na agenda do Estado, da academia, de políticos de advogados, promotores públicos, instituições religiosas e na sociedade de um modo geral. SILVA inclui o seu livro Intolerância Religiosa. Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro, como uma forma de reagir à tal situação. Ele vê o seu livro como um:

esforço coletivo de analisar, sob vários pontos de vista, o impacto do crescimento das igrejas neopentecostais, com seus discurso e práticas de ataque e intolerância religiosa, no campo religioso afro-brasileiro e do Cone Sul e em outras áreas da vida social (direitos civis e discriminação por orientação sexual). A preocupação com este conflito surgiu, inicialmente,no âmbito da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), com a instauração da Comissão de Relações Étnicas e Raciais (Crer), em 2002”. (SILVA, 2007:24)

Essa temática aparece também em Ordep Serra em uma entrevista gravada em vídeo e disponível no site do Youtube, tratando da intolerância contra os cultos afro-brasileiros declara:

Eu considero tão perigoso para o Brasil a intolerância religiosa quanto o crime organizado. São coisas parecidas, pois há uma destruição da teia social dos laços democráticos. E ainda pior, no caso do Brasil, é quando a gente está vendo que a intolerância se tornou o cavalo de batalha do racismo. O racismo e a intolerância caminham na contramão da humanidade, da civilização e do progresso. No Brasil, de modo particular as religiões afro-brasileiras são os grupos que mais tem sido atingidos pela intolerância religiosa”.

Ora, Serra (2009) entende que a intolerância religiosa é uma das formas mais violentas da intolerância, “pois fere ao homem no seu aspecto moral mais profundo ao rejeitar sua concepção ontológica, gerando reações muitas vezes imprevisíveis”. Wagner G. da Silva, por sua vez, considera que há “uma fraca reação das vítimas dos ataques da Universal” (SILVA: 2007,53). Quanto a essa reação considerada por SILVA como “fraca” não podemos deixar de considerar os direitos tardiamente conquistados pelas religiões afro-brasileiras de professarem publica e livremente suas crenças e práticas.

No Brasil, aos afro-descendentes o direito de manifestar livremente sua fé, foi garantido a partir da Constituição de 1988. No texto Constitucional há um capítulo que assegura aos brasileiros o direito e a forma de manifestar livremente a sua religião. Porém, o fato da Constituição lhes assegurar esse direito não impediu que práticas de intolerância religiosa continuassem a fazer parte do cotidiano dessas religiões. Tais práticas desconhecem o conteúdo do Art. 20 da Lei nº 9.459, de 1997, que considera crime seja a discriminação e o preconceito o ato de: “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Baseado nessa lei alguns processo contra a IURD foram iniciados e acabaram sendo julgados favoravelmente. A respeito de um deles lemos no jornal A Tarde on line (21/8/09) uma notícia intitulada: Decisão contra Igreja Universal é mantida no STJ:

A ialorixá Jaciara dos Santos teve um dia agitado, nesta quinta-feira, 20, por conta do preparo de oferendas para os orixás com o objetivo de agradecer e comemorar. O motivo da festa foi o fim de mais um round no processo que, em conjunto com os outros herdeiros de Gildásia dos Santos e Santos, sua mãe biológica e de quem é sucessora no terreiro Abassá de Ogum, move contra a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd). Embora a 4ª Turma do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) tenha rejeitado o recurso dos advogados da família para aumentar o valor da indenização, a ialorixá e sua assessoria jurídica entendem que a festa tem de ser mantida, pois, ao julgar o recurso, a instituição ratificou sua decisão do ano passado, que condenou a igreja a pagar a indenização no valor de R$ 145,2 mil aos herdeiros, além de publicar no jornal Folha Universal o teor da sentença. O mérito da ação foi então mantido. A decisão saiu na última terça-feira”.

A iniciativa da família da Ialorixá Gildásia dos Santos e Santos e a decisão da justiça quanto ao pagamento de indenização paga pela Igreja Universal foi muito positiva para que
outras iniciativas fossem tomadas. Essa atitude possibilitou que outras pessoas que se sentiram ou venham a se sentir prejudicadas pelo uso de palavras, discursos ou práticas de intolerância religiosa façam o uso da denúncia.”

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É isso!

Fonte:
Valdelice Conceição dos Santos: “O discurso de Edir Macedo no livro “Orixás, caboclos e guias. deuses ou demônios?”: impactos e impasses no cenário religioso brasileiro”. (Dissertação apresentada em cumprimento parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião para obtenção do Grau de Mestre Orientador: Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos). Universidade Metodista de São Paulo. São Bernardo do Campo, 2010.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.

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