Raças, mitos e antropologia

“Bernardo Lewgoy, ao resenhar A persistência da raça: Ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África Austral, de Peter Fry, nos interpela enquanto leitoras e leitores: “Poderia esse cordial inglês, radicado há mais de trinta anos no Brasil, representar algum tipo de ameaça?” (Lewgoy, 2006:519)

Disponibiliza-se assim, da referência tradicional à “cordialidade” para aproximar
o “inglês” de um modo de agir que seria brasileiro e inofensivo, excepcional precisamente porque defende a harmonia racial e não o conflito.

Há aspectos importantes latentes nessa brasilidade cordial, bem como na produção
discursiva de Peter Fry enquanto “inglês cordial”.

O próprio título do livro resenhado esconde dois aspectos importantes de sua eficácia. O primeiro deles, utiliza-se do lugar de destaque e legitimidade acadêmicos de que
a antropologia dispõe como campo de saber autorizado para falar sobre a questão política presente, mas afirmando-se ainda enquanto antropologia. Dessa forma, é possível, a partirde tal posição “antropológica”, dizer sobre o mundo, oferecer ao mundo político “constatações” do mundo das idéias, quer dizer, fazer política objetiva a partir da ciência tentando negar que a política é o campo do embate de interesses e ideologias. Fry esboça, então, um posicionamento que se pretende “esclarecido” e imparcial, embora engajado numa preocupação maior, qual seja a manutenção de um modo de vida sobre o qual é capaz, graças à sua posição, de diagnosticar adequadamente.

O papel de autoria é assim utilizado estrategicamente, em primeiro lugar porque apaga, ou faz desaparecer da textualidade aquele sujeito responsável pelo pronunciamento.
Esse sumiço subjetivo fica nítido no subtítulo “Ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África Austral”, bem como no conteúdo comparado entre o Brasil e a África Austral. Conseqüentemente, passa como se fosse um discurso enunciado a partir de um lugar “neutro” da ciência antropológica, que observou em realidades distintas conseqüências de “modos de vida” diferentes, como se a perspectiva não tivesse sido fruto de uma escolha, de uma ação subjetiva em busca da comparação a ser enunciada.

O sujeito que se esconde por trás dos pronunciamentos antropológicos torna-se uma questão menor, pelo menos em aparência, por meio da ocupação do espaço legitimado
de observador imparcial e distante sobre a realidade que “vislumbra” e descreve, como se a descrição não fosse ela mesma uma tomada de posição política no mundo.

Nessa indiferença, acredito que é preciso reconhecer um dos princípios éticos fundamentais da escrita contemporânea. Digo‘ético’, porque essa indiferença não é tanto um traço caracterizando a maneira como se fala ou como se escreve; ela é antes uma espécie de regra imanente, retomada incessantemente, jamais efetivamente
aplicada, um princípio que não marca a escrita como resultado, mas a domina como prática... Pode-se dizer, inicialmente, que a escrita de hoje se libertou do tema da expressão: ela se basta a si mesma, e, por conseqüência, não está obrigada à forma de interioridade; ela se identifica com sua própria exterioridade desdobrada. (Foucault, 2001[1969]: 268)

O sujeito que fala torna-se o enunciador da verdade que o ultrapassaria. Mas e se
essa “verdade” corresponder à insensibilidade subjetiva e completa incapacidade de “calçar outros chinelos”? De perceber a história por meio de outros olhos, valorizando outros aspectos subsumidos à narrativa hegemônica de nação brasileira?

O segundo aspecto importante da fala de Lewgoy, em sua resenha, é o silenciamento que este impõe sobre uma suposta (e, também, narrada hegemonicamente) “cordialidade”, que implica nela mesma a invisibilização das conflitualidades, tornando as dissonâncias (discordâncias e lutas históricas) ilegítimas e deselegantes.

Concomitantemente, descaracteriza o momento específico do qual o livro se originou e ao qual responde - a partir do engajamento em uma posição também dissimulada pela função autor - ou seja, do embate a respeito de dois eventos da política nacional: a legislação sobre o Estatuto da Igualdade Racial e a aprovação da política de cotas para negros.

Com essas considerações, devolvo a Lewgoy sua pergunta, desta vez questionando-o a respeito de sua interpretação crítica: Poderia uma narrativa que esconde seus pressupostos e intenções políticas sob um fazer legitimado isentar-se de responsabilidades políticas no embate de que participa sem representar algum tipo de
ameaça pública? Não estaria sendo conveniente à persuasão que se propõe dissimular seu engajamento ao tornar menos explícitas suas motivações? O fato dessa direção política não estar apontada não significaria mais uma tentativa de dissimular-se enquanto discurso “científico” adquirindo com isso todo o capital simbólico que a torna ainda mais potente em sua enunciação enquanto politicamente engajada?

Jamais alguém pôs em dúvida que verdade e política não se dão muito bem uma com a outra, e até hoje ninguém, que eu saiba, incluiu entre as virtudes políticas a sinceridade. Sempre se consideraram as mentiras como ferramentas necessárias e
justificáveis ao ofício não só do político ou do demagogo, como também do estadista. (Arendt, 2005:283)

Com essas questões, alinho-me momentaneamente à reflexão arendtiana na medida em que esta autora identifica a permanência do mundo acima das ações do presente porque, segundo ela, nenhuma perseverança da existência de um mundo público (que nos precede e ultrapassa sempre) seria possível sem sujeitos decididos a testemunhar o que é, porque lhes aparece porque é.

No caso antropológico, temos a chance quase que única de um parâmetro do que
se pode tolerar como verdade porque podemos contar ativamente com a perspectiva muitas vezes dissonante dos sujeitos a quem interpelamos e que nos interpelam. Para a perspectiva de Fry, esses sujeitos são toda a humanidade, pelo menos toda a que estiver sob o signo da nação e, dessa, todos os negros que vivem a herança de um passado que se pretende apagar sobre um ideal de nação que só corresponde a meia-estória. Passado que guarda consigo a verdade de uma história injusta de exploração e preconceitos que não pode ser facilmente apagada sem um custo humano altíssimo, com o qual quem arca não somos somente Fry e eu, mas os negros e, com eles, toda a humanidade que testemunhar silenciosamente o que foi apropriadamente chamado de uma “amnésia histórica seletiva”.

A invocação de outrem é uma dupla abertura ao diálogo. Ela ultrapassa a noção de
compreensão objetiva porque implica um sujeito de pesquisa também reflexivo, que devolve o olhar. A relação com outrem é uma relação com alguém que é, alguém que detém sensibilidades próprias à sua experiência e está sensibilizado sempre a partir dela. Importa-me, então, não o conteúdo objetivo no discurso de Peter Fry, mas o que ele guarda em si, sobre quais lacunas ele se constrói ao narrar uma representação de nação. Ele pode, sem dúvida alguma, enxergar (ou dizer enxergar, há coisas que a ação de denegar simplesmente não resolve) o convívio como descreve, ou seja, harmônico, isento de preconceitos raciais, pelo menos em termos estruturais. Mas interessa-me como essa narrativa opera no campo sócio-político em que se inscreve, quais são as estratégias articuladas para sua eficácia e sobre o quê seu êxito se constrói. Importa-me chamá-lo para a antropologia de onde diz sair, para questioná-lo a respeito dos pressupostos que diz cumprir.

Assim, uma ideologia não é necessariamente ‘falsa’: quanto a seu conteúdo positivo, ela pode ser ‘verdadeira’, muito precisa, pois o que realmente importa não é o conteúdo afirmado como tal, mas o modo como esse conteúdo se relaciona com a postura subjetiva envolvida em seu próprio processo de enunciação. Estamos dentro do espaço ideológico propriamente dito no momento em que esse conteúdo – ‘verdadeiro’ ou ‘falso’ (se verdadeiro, tanto melhor para o efeito ideológico) – é funcional com respeito a alguma relação de dominação social (‘poder’, ‘exploração’) de maneira intrinsecamente não transparente: para ser eficaz, a lógica de legitimação da relação de dominação tem que permanecer oculta. Em outras palavras, o ponto de partida da crítica da ideologia tem que ser o pleno reconhecimento de que é muito fácil mentir sob o disfarce da verdade. (Grifos meus e de Zizek, 1999:14)

Se raça é um corte na classificação das pessoas no Brasil, esse corte só aparece no
trabalho de Fry como menção secundária e desimportante frente a um ideal de mestiçagem que compartilharíamos em oposição, como o autor pretende, ao ideal de segregação racial, que ele aponta como aquele desejado pelo que chama genericamente de movimento negro. Como aponta Peter Winch (1958), um antropólogo, estudando um fenômeno entre populações que não são a sua, desejaria, antes de qualquer coisa, tornar seus fenômenos inteligíveis para sua forma de pensamento, para si e para seus leitores que precisariam ser sensibilizados também para os problemas e as linguagens em questão.

Esse dito “movimento negro” ao longo da escrita de Peter Fry não apresenta uma história própria, não é um movimento localizável. Ao contrário, sua única localização
na perspectiva de Fry é em consonância com o que chama de “prescrição” dos movimentos negros imperialistas (que seriam aqueles estadunidenses).

Suas etnografias da África Austral são utilizadas como anteparos comparativos e referenciais, cujo objetivo seria antecipar possíveis conseqüências negativas extraídas de realidades políticas, étnicas e relações raciais completamente distintas entre si e diferentes do caso brasileiro, em particular. Mas Fry apontará, a partir dessa “experiência adquirida etnograficamente” em outras realidades, outras ex-colônias, uma conseqüência que poderia (num esforço estranho às ciências sociais pós-marxistas, é preciso dizer) previsivelmente transformar o Brasil num universo semelhante àqueles onde o convívio racial tornou-se beligerante ou, em seus termos, “ressentido”.

A partir do desejo de erradicar a raça da experiência social, Peter Fry busca uma
leitura que distingue ‘mito social’ de ‘fato biológico’, apresentando raça como crença que “não sucumbiu aos argumentos científicos”, como se fosse possível alegar para o termo “raça” conteúdo universal, como se sua única história e significado estivesse determinada pelo desenvolvimento científico ocidental.

É necessário considerar com seriedade a argumentação do autor, especificamente
porque se ele defende que em antropologia “costuma-se ser mais benevolente” com relação aos mitos, por que não dá à “crença” a mesma “benevolência”? Seria possível, para desautorizar raça, ignorar a antropologia, mas quando for para defender sua posição com relação à “democracia racial” pode-se retornar à antropologia e validá-la? Vejamos o que nos diz Fry:

Uma outra maneira de interpretar o problema é olha-lo por um ângulo mais ‘antropológico’. Quando Hanchard e outros descrevem a democracia racial como mito, fazem-no porque entendem os mitos como falsos... Os antropólogos, porém, costumam ser mais benevolentes em relação aos mitos. Admitem que não são inverdades, produtos de equívocos que devem ser desmascarados e denunciados pela superioridade do saber ocidental, mas antes sistemas ordenados de pensamento social que consagram e exprimem percepções fundamentais sobre a vida social. (Fry, 2005:175)

Vejamos, a “superioridade do saber ocidental” está dada no momento em que Fry
distancia sua percepção “antropológica” daquela de Hanchard, que estaria “alienado” pelo “mito da raça”. Contudo, (e não podemos deixar o conteúdo de sua pregação passar batido) precisamente por dizer respeito não à sociedade brasileira como uma totalidade, mas ter se constituído como uma narrativa autorizada a partir do locus de onde provém - ou seja, de uma elite branca, intelectualizada interessada nesse discurso - a “democracia racial” pode ser mais apropriadamente chamada de um discurso, que prova suas limitações de compreensão a respeito dos fatos porque não é capaz de englobar as raças enquanto diferenças, o que daria alguma legitimidade à suposta “democracia”.

Um mito, em geral, diz algo sobre a cosmologia de onde é produto, por isso, a “democracia racial” não chegou a ser um mito e é preciso compreendê-la a partir do que se propõe. Ela foi elaborada como narrativa de uma elite no intuito de gerar unidade e identidade a uma população rasgada por sua história.

Para que fosse capaz de exercer as benesses “democráticas” que se propõe, esse discurso precisaria, em primeiro momento não solapar as alteridades históricas sob o signo genérico e falso de mestiçagem. Como aponta Kabengele Munanga sobre a leitura de Abdias do Nascimento:

Remontando às origens do mulato brasileiro, Abdias diz que o Brasil escravocrata herdou de Portugal a sua estrutura patriarcal de família, cujo preço foi pago pela mulher negra. O desequilíbrio demográfico entre os sexos durante a escravidão, na proporção de uma mulher para cinco homens, conjugado com a relação assimétrica entre escravos e senhores, levou os últimos a um monopólio sexual das poucas mulheres existentes. Nesse contexto, as escravas negras, vítimas fáceis, vulneráveis a qualquer agressão sexual do senhor branco, foram, em sua maioria, transformadas em prostitutas como meios de renda e impedidas de estabelecer qualquer estrutura familiar estável. Abdias considera absurdo apresentar o mulato que, na sua origem, é fruto desse covarde cruzamento de sangue, como prova de abertura e saúde das relações raciais no Brasil. (Munanga, 2004:98)

Como bem aponta Mônica Pechincha, “sabe-se que na antropologia o ‘mítico’ não é o sucedâneo do ‘ideológico’ como ‘falsa consciência’”. (Pechincha, 2006:22). Bem como,
não há fato qualquer que supere a relação fictícia com o real, ou seja, não há qualquer acesso ao real que não tenha sido mediado pelo simbólico, nem mesmo raça. Por isso, é absolutamente incongruente com a perspectiva antropológica negar a existência da categoria “raça” entre humanos por via biológica, ou natural. Quando muito, Fry poderia tentar sustentar que essa é uma categoria inoperante no meio social brasileiro, se o fosse, mas ainda assim, isso inviabilizaria completamente seu texto que por vezes utiliza exemplos de pessoas negras cujas experiências estão dadas pela raça em que são reconhecidas e essa existência como negros lhe confere autoridade etnográfica. (Ver Fry, capítulo 06: O que a Cinderela negra tem a dizer sobre a ‘política’ racial no Brasil)

Fry relega, assim, a último plano uma análise propriamente etnográfica do que raça detém enquanto conteúdo local. Que conceito seria esse que “não sucumbe aos argumentos científicos”? Mas não esboça reflexão a respeito da pergunta que faz, ou seja, não busca dar sentido ao problema que identifica. Opta por pregar a desconsideração de raça como fenômeno biológico que ele teria aprendido enquanto aluno da antropologia. Pretendo, porém, esboçar uma interpretação sobre a pergunta que Fry postula. Penso que “raça” não sucumbe porque no convívio brasileiro faz sentido, ora como índice por meio do qual a discriminação sobre os indivíduos é realizada, ora acionada por grupos identitários, movimentos sociais, ora como fator a partir do qual se pode agir afirmativamente sobre a história.

Raça é signo” – significante produzido no seio de uma estrutura onde o estado e os grupos que com ele se identificam produzem e reproduzem seus processos de instalação em detrimento de e a expensas dos outros que este mesmo processo de emergência justamente secreta e simultaneamente segrega. (Segato, 2005:13)

Fry não faz essas constatações porque seu principal objetivo é apresentar uma descrição autorizada – sobre etnografias distintas comparadas entre si e com o Brasil,
fenômenos urbanos retirados de matérias de jornais e alguns que o autor diz ter vivido como indivíduo nos três países em questão (Zimbábue, Moçambique e Brasil) – diagnosticando um “risco” para o qual os brasileiros “deveriam tornar-se atentos” a partir da leitura de sua experiência.

Uma das características que Fry apresenta como semelhanças entre Moçambique e
Brasil é que em nenhum desses países ele é visto como branco “e ponto”. Mas ao abrir sua fala na Audiência Pública no Senado16 - na qual se manifesta contra as ações afirmativas para negros - sua imediata localização é: “Sou inglês.” Também, em seu texto sobre a “Cinderela Negra”, ele verifica em momentos distintos sua branquitude e os efeitos da negritude na vida cotidiana brasileira, que opta por descrever ao final, quando aponta ter sido perseguido por policiais por estar acompanhado, em seu carro, de um amigo negro. Dirá: “Continuamos associando especificidades morais e intelectuais a pessoas consideradas de uma ‘raça’ ou de outra, como se a cultura se transmitisse geneticamente.” (Fry, 2005: 15)

As raças estão, para o autor, simplesmente localizadas a partir da ciência e de sua utilização política na história de fins do século XIX e início do XX, como se seu único e
genuíno sentido no Brasil fosse o genético. E por conseqüência, interpreta o racismo como se fosse decorrente do reconhecimento de diferenças entre as raças apenas. O problema do racismo não seria então a hierarquização de pessoas pelo crivo da cor, etnia ou raça, mas a verificação da diferença em si mesma.

Fry observa então que mesmo com declarações científicas e de entidades internacionais autorizadas, “raça” continua existindo como um “mito social poderoso” (Fry, 2005:15). Vemos, assim, que a “benevolência antropológica” com relação à mitologia está em suspensão, neste momento, para Fry, porque ao se referir à “raça”, a expressão “mito” é
usada para conotar falsidade. Neste momento já não interessa a Peter Fry a defesa da antropologia como plataforma que sustenta uma objetividade científica, nem lembrar sua argumentação que diz: “mitos” para a antropologia são “antes sistemas ordenados de pensamento social que consagram e exprimem percepções fundamentais sobre a vida social” (idem: 175). Esta é uma contradição que perpassa toda a obra analisada."

---
É isso!

Fonte:
Mariana Lima: "Pela persistência da diferença Desvendando o discurso daqueles que querem nos transformar em uma nação monocromática". Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília para obtenção do título de mestre.Orientadora: Rita Laura Segato Banca examinadora: José Jorge de Carvalho (PPGAS/UnB) Mônica Thereza Soares Pechincha). Universidade de Brasília - UnB. Brasília, 2007 .

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!