Lombroso no século XXI

A persistência das idéias lombrosianas no século XXI

Em ‘Recordação a Casa dos Mortos’, Dostoievski, já dizia que há indivíduos irrecuperáveis. Influenciados por essa opinião, os criminalistas Lombroso e Ferri, criadores da Escola Penal Positivista, teorizavam que existe um sujeito que nasce predisposto ao crime. (...) ‘A ocasião não faz o Ladrão; O ladrão já nasce feito’. É curial que fatores exógenos (desequilíbrio social, concentração de renda, falta de educação e de assistência médica, analfabetismo, drogas, alcoolismo e miséria) são causas preponderantes da etiologia do crime. Mas não podemos descartar e minimizar os fatores endógenos, como genéticos, hereditários e personalizados.

Esse artigo publicado pelo Jornal do Commercio em março de 2007 e escrito pelo advogado Arthur Carvalho, dirigente de um escritório de advocacia no Estado de Pernambuco, demonstra argumentos lombrosianos ainda vivos na teoria criminológica.

A ligação dos criminologistas contemporâneos com o lombrosionismo pode estar atrelada à propagação dessa teoria em outras áreas de conhecimento como Sociologia, Antropologia, História, Medicina e Direito. A roupagem atual da discussão ainda debruça-se nas explicações sobre violência, identificação forense e métodos preventivos da delinqüência.

Essa união da Criminologia lombrosiana com a atualidade pode ser explicada pelos cursos de graduação em Direito que, desde o século XIX, oferecem em sua grade curricular a Criminologia como disciplina que discute a origem do Direito Penal positivista. Cesare Lombroso, fundador da Antropologia Criminal, relacionou às características da anatomia humana a propensão à delinqüência, o que contribuiu para elaborar uma metodologia de identificação científica estereotipada e rodeada de pré-julgamentos do perito com relação ao corpo analisado. Tudo que fosse disforme, assimétrico ou estivesse dentro dos estigmas atávicos, os quais discutimos ao longo do trabalho, eram rotulados de degenerados pelos estudiosos discípulos de Lombroso.

O artigo de Arthur Carvalho ilustra a persistência do pensamento lombrosiano não apenas entre os juristas, mas em meio ao olhar da imprensa que se dispõe à publicação sob a idéia de estar preocupada com os índices atuais da violência social.

Em outro trecho do mesmo artigo, Arthur Carvalho embasa seu discurso lombrosianista ao distinguir o cidadão de bem do indivíduo de índole má:

O problema social é uma coisa, índole má é outra. (...) A situação como está é que não pode continuar. O cidadão pacato e de bem, que paga imposto, produz para a nação e tem família para criar não deve ficar a mercê da bandidagem, de um pivete qualquer, que tire sua vida covarde e impunemente. A certeza da impunidade é um incentivo ao crime. A literatura brasileira e a estrangeira são ricas em personagens lombrosianas – pessoas intrinsecamente perversas que nasceram propensas à prática de crimes escabrosos. (CARVALHO, 2007, p. 11)

O discurso, que nos remonta à narrativa criminológica elaborada no século XIX, sobreviveu às críticas e modificações no século XX e continua a operar na metodologia de identificação forense do século XXI. O receio do comportamento anti-social nos reporta à necessidade da Humanidade de criar mecanismos para disciplinar os cidadãos, como escolas, penitenciárias, hospitais psiquiátricos, orfanatos, entre outros que foram e ainda são redutos de ordenamento e controle. Com esses institutos de modelagem da conduta populacional, o poder estatal procurou base para legitimar-se, estruturando o conceito de ordem pública e os parâmetros morais. (FOUCAUT, 2001, p.50).

Ao poucos, o conceito de justiça estatutária e os métodos de identificação foram revestindo-se de licitude, passando a ser aceitos pela população como mecanismo necessário para impetrar o poder do Estado.

Mas, devemos estar cientes de que a justiça é um produto de construção cultural, variando conforme o conceito de crime e os parâmetros culturais da sociedade que o emprega. Ao percebermos essa variante teórica, nos atemos ao que a metodologia penal estava delimitada conforme as necessidades de cada grupo social. A padronização das penas abriu espaço para as demais ciências voltadas ao estudo forense, que procurou enquadrar o corpo humano às normas penais.

O corpo humano domina-se pelo olhar da vigilância social, no entanto, agora, sem sofrer diretamente com a punição física, o corpo seria alvo dos estigmas excludentes proferidos pelas teorias que suscitaram os meios de identificação. (FOUCAULT, 1987, p.80). Representava a passagem dos antigos moldes punitivos dos suplícios para o modelo de penas limpas, sem sangue, sem torturas, mas recheados de estereótipos. (FOUCAULT, 1987, p.166).

No que diz respeito à Escola Clássica do Direito Penal destacam-se os postulados que deram roupagem às teorias biodeterministas do séc. XIX: a finalidade do poder judiciário é reabilitar o transgressor ao convívio social. Para isto, a ciência penal ansiava por estudos voltados às necessidades sociais. Ganhava terreno às teorias biodeterministas que viriam fermentar a discussão sobre criminalidade, suas causas e artifícios científicos para controlá-la. Esse seria o início da elaboração dos métodos científicos de identificação humana, difundidos pela Criminologia e, no século XX, adotados pelo sistema Judiciário como mecanismo de delimitação da criminalidade.

Os estereótipos raciais, doenças mentais e aparência física assimétrica, entre outros desacertos humanos, passam a integrar as fichas de identificação criminal. A delegacia de polícia adota as fichas de identificação como forma de facilitar o trabalho de catalogação, mas o Poder Judiciário sente a necessidade de ampliar o diagnóstico da identificação criminal. Em 1909, o GIEC é criado no Brasil abertamente declarado como propagador dos meios científicos lombrosianos de identificação, unindo-se ao IML para compor o inquérito policial.

Na década de 1920, o lombrosianismo retoma o fôlego na área acadêmica com a Biotipologia Criminal e a Endocrinologia Criminal, ampliando a análise das fichas de identificação forense, empregando outros métodos para diagnosticar o degenerado. As teses da Faculdade de Direito e Medicina de Pernambuco passam a discutir a inclusão das teorias neolombrosianas nos métodos de identificação criminal.

O GIEC incorpora parte do que estava sendo discutido pela Biotipologia Criminal em suas fichas de identificação, até porque não possuía equipamento necessário para uma análise biométrica completa, o que era um ponto de reivindicação constante de seus peritos. Como vimos no terceiro capítulo, o laudo do IML adotou os exames de sangue e a figura sinalética utilizada para estudos craniométricos por, também, não dispor de estrutura perícial necessária para empregar a Endocrinologia Criminal. Entretanto, tanto o GIEC quanto o IML até hoje empregam os mesmos métodos de identificação forense, o mesmo modelo da ficha de identificação, a mesma figura no laudo médico-legal. Lombroso e sua teoria do criminoso-nato ofereceram base aos métodos de identificação utilizados por todo o sistema penal.

Acreditamos que mesmo a teoria de Lombroso tendo ressurgido em trinta com novas técnicas de identificação criminal e contendo o mesmo sabor ácido de exclusão social, ela contribuiu para formular a metodologia de identificação utilizada até hoje em todos os níveis do Poder Judiciário: delegacia, instituições correcionais, entre outros mecanismos. As fichas sinaléticas, a datiloscopia e as técnicas de biometria ainda são empregadas em diferentes locais, tendo permeado as instituições educacionais, empresas, hospitais, entre outros locais que necessitem controle e ordem. Tanto as fichas de identificação do GIEC (atualmente IITB em Pernambuco), quanto os laudos traumatológicos do IML, ainda possuem o mesmo modelo formulado no século XX.

Atualmente, a discussão lombrosiana sobre criminalidade e sua idéia de ligação com biológico humano ainda seduz discípulos. No artigo escrito do Jornal do Commercio por Arthur Carvalho – anteriormente citado - nos deparamos com uma Antropologia Criminal vigente, num Lombroso que se encontra no século XXI. Entendemos que a conotação dada a essas discussões judiciárias atuais possuem um olhar diverso do olhar oferecido pela ciência do século XIX, mas que ainda insiste em conservar-se, retirando a responsabilidade do transgressor para colocá-la em questões externas (como a condição biológica). Arthur Carvalho traduz o incomodo sentido pelas classes mais favorecidas, habitantes dos bairros nobres da capital pernambucana, circundada pela pobreza, responsável pelo crescimento da criminalidade:

Nos arrabaldes miseráveis do Recife, as gangues de marginais agem com liberdade, diante da impotência da policia para combatê-las eficazmente e o índice de homicídios cresce todos os anos, praticados por grupos de extermínios, assaltantes mirins e juvenis habitantes de mangues, alagados, palafitas e barracos infectos circunvizinhos dos bairros nobres. (CARVALHO, 2007).

Outro exemplo da atualidade da discussão lombrosiana está na capa da revista Veja, de circulação nacional, a qual publicou uma edição especial no primeiro mês do ano de 2007 sobre criminalidade. Nessa edição, procurou apresentar o crime e suas causas distribuídas em quase 50 páginas, subdivididas em 10 artigos.

Nessa edição, Lombroso é reconhecido como precursor da ciência criminal, no entanto, há críticas feitas pelo colunista João Neto sobre a forma pela qual a ciência forense lombrosiana determina o conceito do criminoso nato. (JERÔNIMO NETO, 2007, p.82).

No artigo Crueldade nas Veias, o autor Jerônimo Neto procura traçar o perfil dos criminosos considerados psicopatas pela psiquiatria forense, realizando um apanhado dos estudos científicos sobre criminalidade desde o século XIX. Lombroso e a teoria do criminoso-nato são apresentadas por Jerônimo como uma falácia teórica, já que não há como identificar por feições anatômicas o atavismo degenerado. Diz:

A busca de um tipo físico característico do criminoso, que orientou grande parte da ciência forense no século XIX, foi um fracasso completo. Não há como identificar um assassino ou um ladrão apenas pela configuração de seu crânio ou de suas feições faciais, como acreditava Cesárea Lombroso (1835-1909). Muito influente em seu tempo – inclusive no Brasil- a teoria de Lombroso atribuía o crime a um atavismo, uma decorrência de tendências primitivas que os seres humanos ‘normais’ teriam superado no curso da evolução. Por esse raciocínio, o criminoso estaria mais próximo dos animais do que o restante dos homens. E teriam marcas físicas diferenciadas. Se o formato das orelhas ou da mandíbula fosse mesmo indicador de comportamento criminoso, o trabalho da policia seria bem mais fácil. (JERÔNIMO NETO, 2007, p. 83).

Mais adiante nesse mesmo artigo, Jerônimo defende o endurecimento da legislação penal e sua aplicabilidade, uma vez que para ele o indivíduo é responsável pela decisão de cometer o delito. Significa dizer que as condições sociais ou biológicas pouco interferem na escolha de realizar a transgressão. Essa posição de culpabilidade do infrator com relação à infração difere da idéia de criminoso nato, a qual apresentava como responsável às condições biotípicas e endógenas do organismo humano.

Segundo Jerônimo Neto, atualmente há estudos neurológicos que utilizam equipamentos sofisticados para o mapeamento cerebral desses indivíduos, ainda como ocorria com os estudos lombrosianos, procurando explicações científicas para o comportamento delinqüente. A semelhança entre estes a ciência atual e a tese lombrosiana está no estudo do cérebro e variações hormonais.

Mesmo discordando da doutrina lombrosiana em seu artigo, Jerônimo acaba por apresentar que esses estudos neurológicos realizados em psicopatas no Brasil e Estados Unidos procuram apresentar disfunções genéticas para o comportamento delinqüente. A ciência biodeterminista do século XIX e as pesquisas genéticas atuais parecem buscar a explicação para a conduta criminosa ainda nos fatores biotipológicos, comparando os resultados desses exames dos “normais” com os “psicopatas”. Entretanto, os fatores sociais que desencadeariam a psicopatologia estariam ligados a abusos físicos sofridos na infância.

Ao questionar as causas da psicopatia, Jerônimo caminha para as problemáticas: seria uma deficiência psiquiátrica, uma influência do meio ou um somatório dos dois fatores? Em meio a esse questionamento, o artigo nos revela metodologia dos estudos lombrosianos ainda empregados pela neurologia atual: formar um grupo de pessoas para exames detalhados de seu comportamento social e cerebral com o anseio de encontrar resquícios da conduta anti-social.

E o que dizer dos 80% de criminosos não psicopatas que estão nas cadeias? São bandidos por natureza ou por influência do ambiente? Esse ainda é um tópico para discussões inflamadas, frequentemente temperadas por algum argumento ideológico. (...) Um estudo realizado em 2002, na Nova Zelândia, com mais de 400 homens, aponta para relações bem mais complexas entre genética e ambiente na formação da violência. A atividade de gene específico chamado de MAOA foi examinada. Em algumas pessoas, o gene é mais ativo do que em outras- cerca de 37% dos homens possuem o gene de baixa atividade. (JERÔNIMO NETO, 2007, p. 85).

Analisando a opinião local de Arthur Carvalho com o artigo de Jerônimo Neto podemos perceber uma diferença entre sua forma de apresentar o lombrosionismo. Ambos são artigos escritos no ano de 2007, mas com posições ideológicas diferentes. Arthur ainda reproduz as idéias lombrosianas, onde indivíduos possuiriam fatores endógenos de perversão social, enquanto Jerônimo apresenta a Antropologia Criminal como um equívoco científico do séc. XIX, já que seria difícil encontrar um padrão fisionômico do criminoso.

Os estigmas que essas palavras exalam refletem a idéia que ainda permeia a alma de parte da nossa sociedade excludente e impregnada de estereótipos. De certa forma, ainda hoje encontramos pessoas que associam o caos urbano a algum tipo de desvio congênito, a tal “índole” criminosa."

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É isso!


Fonte:
ELAINE MARIA GERALDO DOS SANTOS: “A FACE CRIMINOSA O NEOLOMBROSIANISMO NO RECIFE DA DÉCADA DE 1930”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito para obtenção do título de Mestre em História. Orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto Cunha Miranda). Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2008.

Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

2 comentários:

  1. queria mais informações sobre esteriótipos raciais desde a civilização grega até os dias de hoje.
    MAs esse ficou legal.MAis tem muita informação deveria ser mais explicativo.!

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  2. Olá,

    Sugiro que leia a tese em sua integridade. Voce a encontrará no site Dominio Publico.
    Um abraço!

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