"Anomalia e crise" em Thomas Kuhn

ANOMALIA/CRISE

“O exercício da ciência normal admite a percepção de anomalias, fato ligado à característica de relaxamento das restrições impostas pelo paradigma, conforme explicitado na seção anterior. Portanto, o adjetivo “normal” para designar o período em que a pesquisa acontece de forma persistente e determinada, segundo as indicações do paradigma, não indica uma rotina em que os imprevistos estão afastados. A crise é provocada pela desorientação da ciência normal quando as anomalias resistem ao trabalho do cientista em enquadrá-las nos preceitos ditados pelo paradigma


[...] a ciência normal freqüentemente suprime novidades fundamentais [...] não obstante, na medida em que esses compromissos retêm um elemento de arbitrariedade, a própria natureza da ciência normal assegura que e a novidade não será suprimida por muito tempo. Algumas vezes um problema comum [...] resiste ao ataque violento e reiterado dos membros mais hábeis do grupo [...] em outras ocasiões, uma peça de equipamento, projetada para fins da pesquisa normal, não funciona segundo a maneira antecipada [...] Desta e de outras maneiras, a ciência normal desorienta-se seguidamente. (KUHN, 2001, p.24-25)

O exercício da ciência normal tem um papel regulador no desenvolvimento da pesquisa científica; ao mesmo tempo é inerente à sua natureza assegurar que a novidade apareça, provocando desequilíbrios. Regular e desequilibrar podem parecer ações paradoxais, entretanto essa combinação constitui-se na força motriz do desenvolvimento científico. Essa aparente contradição revela a presença do cientista como elemento imprescindível deste desenvolvimento. O elemento de arbitrariedade, citado por Kuhn, localiza-se naqueles que assumem o compromisso com a ciência normal, ou seja, os cientistas. O desenvolvimento científico não é determinado apenas pela observação e pela experiência. Elementos, como a história pessoal dos cientistas, ajudam a formular as crenças que a comunidade científica possui em determinada época e constituem os aspectos denominados por Kuhn como “[...] aparentemente arbitrários [...]” (KUHN, 2001, p.23)

Certamente há uma relação estreita e interdependente entre ciência normal e anomalia. Pode-se caracterizar a ciência normal como uma atividade de caráter rígido, estável, que, como já exposto, é regulada e direcionada, exigindo dos cientistas o compromisso em manter a pesquisa no âmbito dos limites impostos pelo paradigma. A anomalia, por sua vez, é elemento implícito na ciência normal. Entretanto, ela é, também, um fator de perturbação, de instabilidade que se instala no exercício da ciência normal.

Depois que elas [novidades fundamentais relativas a fatos e teorias] se incorporam à ciência, o empreendimento científico nunca mais é o mesmo – ao menos para os especialistas cujo campo de estudo é afetado por essas novidades. (KUHN, 2001, p.78)

Pressupõe-se que ciência normal e anomalia não sobrevivem uma sem a outra A ciência normal sem a presença da anomalia seria puro exercício de repetição. O próprio conceito de quebra-cabeças impõe a presença de desafios que se colocam aos cientistas. Esses quebra-cabeças podem ser resolvidos pelo paradigma, podem ser deixados de lado para servirem como objeto de pesquisa futura ou podem perturbar de tal forma o exercício da ciência normal, que sua presença torna necessária uma nova abordagem. Este processo pode levar a uma mudança de paradigma, denominada por Kuhn como Revolução Científica.

O objeto da pesquisa científica é a natureza e seus fenômenos. A complexidade da natureza com a qual a ciência se depara no processo de pesquisa, abre espaço para que cada vez mais novos fenômenos sejam descobertos.

Kuhn denomina como fatos os fenômenos que são descobertos durante o exercício da ciência normal e que não eram esperados ou previstos; denomina como teorias, as invenções que os cientistas propõem para a pesquisa científica, embora o autor afirme que a distinção entre descoberta e invenção seja artificial. O desenvolvimento histórico sugere que a ciência normal sempre é sobressaltada por fatos insuspeitados, pelos quais os cientistas são pegos de surpresa. Quando Kuhn enuncia por meio de um argumento circular, que “[...] é preciso que a pesquisa orientada por um paradigma seja um meio particularmente eficaz de induzir a mudanças nesses mesmos paradigmas que a orientam”(KUHN, 2001, p. 78), está confirmando a relação necessária entre a regularidade da pesquisa científica e a produção de fatos.

Muitos eventos aparecem e reaparecem periodicamente, fazendo com que as descobertas não sejam fatos isolados. O que faz com que um fato seja considerado uma descoberta a ser pesquisada e estudada pela pesquisa científica é a consciência da anomalia, ou seja, a percepção clara de que algo não está bem com a ciência normal. Ao ferir as expectativas que o paradigma originou, a anoma lia obriga os cientistas a explorarem a área em que ela surgiu. Entretanto, o novo fato só será considerado científico, quando o cientista aprender a ver o mundo de uma outra forma. Essa relação entre fato e teoria, apontada por Kuhn, demonstra como a tentativa de distinção entre descoberta e invenção é artificial, isto é, fatos e teorias estão entrelaçados. Não basta aparecerem novos fatos; os cientistas precisam propor quebra-cabeças, de acordo com os pressupostos teóricos, para eliminar a anomalia. Se a anomalia se mostra resistente, a desorientação, que inicialmente seria eliminada, instala-se no exercício da ciência normal.

Quando a anomalia se instala de forma irreversível, de modo que os cientistas não conseguem enquadrá- la na teoria vigente, ela contribui para a mudança de paradigma. A simples assimilação da anomalia pela ciência normal permite uma ampliação do número de fenômenos tratados pelos cientistas, além de uma maior precisão sobre os fenômenos antes tratados. Essa alteração construtiva só é possível pela modificação ou substituição de crenças ou procedimentos antes adotados. Entretanto, outros fatores contribuem para o questionamento do paradigma, como a interferência de eventos externos à comunidade científica. Na ERC, Kuhn trata da instalação irreversível de uma anomalia que culmina na crise e esta pode conduzir ao processo da Revolução Científica. A seguir apresenta-se a caracterização do período crítico no exercício da ciência normal.

Kuhn garante que a consciência da anomalia permite o aparecimento de novos fenômenos e a possibilidade de descobertas científicas aos olhos dos cientistas. Uma consciência mais profunda da anomalia é pré-requisito para as mudanças de teorias, desde que a nova teoria, ao aparecer, proponha promessas inquestioná veis de sucesso. Alguns exemplos citados pelo autor ilustram esse caminho:

A astronomia ptolomaica estava numa situação escandalosa, antes dos trabalhos de Copérnico. As contribuições de Galileu ao estudo do movimento estão estreitamente relacionadas com as dificuldades descobertas na teoria aristotélica pelos críticos escolásticos [...] A Termodinâmica nasceu da colisão de duas teorias físicas existentes no século XIX e a Mecânica Quântica de diversas dificuldades que rodeavam os calores específicos, o efeito fotoelétrico e a radiação de um corpo negro [...] Além disso, em todos esses casos, exceto no de Newton, a consciência da anomalia persistira por tanto tempo e penetrara tão profundamente na comunidade científica que é possível descrever os campos por ela afetados como em estado de crise crescente [...] (KUHN, 2001, p. 94-95)

Com relação ao sistema ptolomaico, fatores de ordem externa, além da consciência da anomalia e das tentativas infrutíferas no sentido de sua eliminação, levaram, mesmo que lentamente, à instalação de uma crise e à mudança de paradigma. A título de exemplo, pode-se citar a pressão social para a reforma do calendário. Este foi um dos fatores externos que influenciou a substituição do modelo cosmológico geocêntrico de Ptolomeu, pelo modelo heliocêntrico de Copérnico. No entanto, os fatores de ordem externa, mesmo importantes, não são determinantes; no centro da crise está o fracasso técnico. Kuhn não faz uma análise profunda sobre as influências de fatores externos na mudança de paradigma e alega que essa discussão não está nos propósitos do seu trabalho.

Muitas das soluções dos problemas enfrentados pela pesquisa normal apareceram bem antes de sua adoção. Entretanto, foram ignoradas porque, no momento em que surgiram, a pesquisa normal não se encontrava em crise. Reforça-se o papel fundamental que a crise tem no desenvolvimento científico.

Um exemplo claro é o de Aristarco, no século três antes de Cristo. Aristarco antecipara o modelo cosmológico heliocêntrico. Entretanto foi ignorado, porque o modelo ptolomaico resolvia muito bem os problemas da época, que dependiam de uma concepção cosmológica. Não havia sentido considerar uma mudança de orientação.

Além de demonstrar a importância da crise, o exemplo de Aristarco reforça a característica funcional da contextualização do paradigma. Kuhn reforça a importância de não prescindir da atenção ao papel do contexto histórico ao se falar em desenvolvimento científico, declarando:

“[...] Afirma -se freqüentemente que se a ciência grega tivesse sido menos dedutiva e menos dominada por dogmas, a astronomia heliocêntrica, poderia ter iniciado seu desenvolvimento dezoito séculos antes. Mas isso equivale a ignorar todo o contexto histórico. Quando a sugestão de Aristarco foi feita, o sistema geocêntrico, que era muito mais razoável do que o heliocêntrico, não apresentava qualquer problema que pudesse ser solucionado por este último”. (KUHN, 2001, pp. 103-104)

As crises “[...] indicam que é chegada a ocasião para renovar os instrumentos [...]” (KUHN, 2001, p. 105) e este é o seu exato significado. As crises provocam desequilíbrio, contudo não impedem que os cientistas resistam a elas.

Uma das formas dos cientistas reagirem à crise é não desistirem de sua pesquisa na forma como está sendo realizada. Para isso, os cientistas não renunciam ao paradigma sob o qual desenvolvem suas pesquisas, mesmo que estejam com suas convicções abaladas e permitam-se considerar alternativas. Além disso, “[...] não tratam as anomalias como contra-exemplos do paradigma” (KUHN, 2001, p.107).

Há uma forte razão para que os cientistas não abandonem o paradigma, quando as anomalias ou os contra-exemplos aparecem. Caso os cientistas assumissem a renúncia ao paradigma apenas por estes fatores, não seriam mais cientistas.

O estudo histórico permite perceber que a rejeição a um paradigma só acontece quando um outro se coloca em substituição. Certamente, o novo paradigma deverá apresentar promessas de solução aos problemas postos pelas novas descobertas. Isso implica que os paradigmas são comparados entre si, além de passarem por uma comparação com a natureza.”

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Fonte::
LILIAM FERREIRA MANOCCHI: "PARADIGMAS EM KUHN: CONTEXTO, IMAGEM E AÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA". (Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Filosofia, sob a orientação do Professor Doutor Edelcio Gonçalves de Souza). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2006.

Nota:
O título inicial e a imagem (fonte:
Biblioteca Nacional Digital do Brasil) inseridos no texto não se incluem na referida tese.

O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.

As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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