Um pouco da história da LOUCURA

Narrativas sobre a loucura: um breve panorama soba história e sensibilidades

A “loucura”, num sentido amplo, não é uma invenção do século XIX, nem do século XX. Tem-se notícias de "tratamentos psíquicos”, embora o nome não fosse este, desde tempos muito remotos, mas quando a narrativa já se fazia presente.

Por exemplo, na antiga Grécia, entre os séculos VI a.C. e III d.C., há relatos de procedimentos de terapia muito complexos, ligados a curas pelos deuses. Seus relatos encontram-se, principalmente, em Pausânias
, que narra como eram realizadas curas nos templos de Asclépio (Esculápio) na região de Epidauro, na Argólida, a partir do ritual de "incubação".

O livro de C.A Meier
, com suas brilhantes amplificações sobre Epidauro e o culto a Esculápio, lança luzes sobre esta narrativa antiga e demonstra as relações entre o antigo culto da psique e suas relações com a doença e cura psíquicas.

A incubação, sendo uma espécie de "cura cerimonial", parece ter alcançado sua máxima perfeição, na antiga Grécia, nos Asklepeia, ou templos de Asklepios (Esculápio), um dos deuses da Medicina. A palavra incubação significa "jazer na terra", e ao paciente cabia passar uma noite numa caverna, estendido sobre a terra. Ele então sonharia com uma visão que o curaria e que seria interpretada pelo sacerdote do templo.

O templo de Esculápio era uma instituição importante, como podemos deduzir dos relatos dos autores antigos e da moderna investigação arqueológica. Os enfermos vinham de muito longe buscar cura nestes locais sagrados:

Antes de ser admitido no santuário, submetiam-se a uma preparação determinada, purificação que incluía jejum, beber água das fontes sagradas e outros vários ritos. O momento culminante do tratamento era a incubação, isto é, o sonho no santuário. Vestia-se o paciente com uma túnica especial adornada com franjas púrpuras e em algumas ocasiões colocavam uma coroa sobre sua cabeça. A estância sagrada onde tinha que passar a noite era um lugar subterrâneo denominado abaton. (...) Durante a noite que o paciente passava no abaton, podia ver aparições, receber um oráculo ou ter visões ou sonhos. Uma "aparição" significava que o paciente, estando todavia desperto, via a figura de um deus, em geral Esculápio, que permanecia em silêncio ou trazia uma mensagem; ou bem podia ouvir vozes, sentir um sopro de ar ou ver uma luz cegante. O oráculo significava que o paciente tinha um sonho no qual o deus ou o sacerdote lhe
davam instruções. Uma visão era um sonho em que se dava ao paciente a precognição de um sucesso próximo a ocorrer. O "sonho próprio" era um tipo especial de sonho que levava em si a cura. (...)

Não é necessário aprofundar estas questões sobre tratamento da "loucura" na antigüidade clássica, mas salienta-se que estes autores revelam, através de sua pesquisa histórica, não somente a existência de relatos sobre doença "psíquica" já em tempos remotos, como também a base terapêutica do que veio a ser a psicoterapia moderna. Muitas das noções que se encontram na Medicina antiga, deram, sem dúvidas, raízes para posteriores tratamentos, passando pelo magnetismo animal no século XVII, pelo hipnotismo no século XIX, chegando até o século XX, nas terapêuticas psicológicas, como as de Freud e Jung.

Estas reflexões serão importantes para algumas constatações que serão feitas no decorrer da tese sobre os tratamentos dos pacientes no período examinado.

Por ora, é importante vislumbrar que a literatura está plena de narrativas sobre/da loucura, desde estes tempos mais longínquos, e que há muito elas fazem parte do imaginário das sociedades. Seria muito difícil, senão impossível, re-traçar, historicamente, esta trajetória, de sensibilidades que nos chegam, a partir de textos literários e que digam como o "louco" era percebido. Tem-se, por exemplo, a loucura que acomete Héracles (Hércules), enviada por Hera, sua madrasta ciumenta, descrita em narrativas greco-romanas.

Há muitos escritores e artistas, de todas as épocas, que também se preocuparam em relatar estados alterados de seu psiquismo, bem como relatar experiências pelas quais passaram em manicômios. Resgatar-se-ia, em todos estes textos, se fosse possível elencá-los, curiosas e contundentes sensibilidades de outras épocas, sobre questões que sempre foram assuntos de relatos... A literatura, assim como outras artes, é expressão de sensibilidades, por excelência.

Mas é pertinente, aqui, começar a elucidar o que se entende por sensibilidade, um termo tão amplo e que pode levar a equívocos. Por exemplo, um dos dicionários da língua portuguesa, possui quatorze acepções para este termo, indo da filosofia à medicina, passando pelas artes e pela física .

Na nomenclatura médica, por exemplo, refere-se à expressão do sistema sensorial humano, ligado aos sentidos, como nós os conhecemos (visão, audição, tato, olfato e gustação), tendo ligação com o sistema nervoso central e medular, através das terminações nervosas, cuja disfunção pode levar à dor.

A sensibilidade de cada época muda, como se vê expresso nos efeitos literários, na escolha de metáforas, etc. Nas artes plásticas e visuais, também, observa-se muito a transformação das sensibilidades, por exemplo, a partir dos períodos já convencionados pela História – classicismo, barroco, expressionismo, dadaísmo, e todos outros.

Uma característica é certa: a sensibilidade muda de natureza, mudando de direção conforme as épocas e as sociedades.

Sensibilidade é uma velha palavra que teve várias acepções no correr dos séculos. Ela aparece na linguagem ocidental pelo menos desde o século XIV e seu adjetivo, sensível
, precedeu-a um pouco. E, como é natural, seu sentido foi-se modificando conforme as representações coletivas e imaginário de épocas e lugares. Por exemplo, no século XVII, na França, a palavra parecia designar sobretudo “uma certa sensibilidade do ser humano às impressões de ordem moral (sensibilidade ao verdadeiro, ao bem, ao prazer)”.

Já no século XVIII, a palavra designava uma certa maneira particular de ter sentimentos humanos: sentimentos de piedade, de tristeza de alegria, etc. Ainda para alguns, a sensibilidade era um estado passivo, relativo às sensações, em oposição à ternura, que estava ligada ao sentimento e era uma atitude ativa.

Poder-se-ia caracterizar este termo, no presente estudo, como tudo o que se refere à “vida afetiva e suas manifestações”, como o fez Lucien Febvre. Ou como Florence Lotterie, em seu livro Littérature et sensibilité, que diz que o termo sensibilidade aparece em seu estudo como especificamente ligado à pesquisa das práticas culturais do sentimento como recurso documentar dos arquivos, mas também das artes e da literatura.

Nas palavras desta autora, a sensibilidade – palavra ambígua - aparece, ainda, como uma “aventura da individualidade”, que se aplica tanto aos estados afetivos, como aos “sentidos”, enquanto meio de percepção. “Mas sobretudo, a etimologia mantém a flutuação entre o domínio do sensível e o domínio do razoável (razoável enquanto razão humana)".

Porém, embora estas acepções sejam também pertinentes no momento, chegar-se-á num ponto de uma especificidade outra, ligado também ao “sensível”, qual seja, o material simbólico (fantasia) inconsciente e criativo que se manifesta no imaginário do próprio louco.

Mais abrangente para o historiador é a concepção de “sensibilidade”, como a define Pesavento:

Sensibilidades se exprimem em atos, em ritos, em palavras e imagens, em
objetos da vida material, em materialidades do espaço construído. Falam, por sua vez, do real e do não real, do sabido e do desconhecido, do intuído ou pressentido ou do inventado. Sensibilidades remetem ao mundo do imaginário, da cultura e seu conjunto de significações construído sobre o mundo. Mesmo que tais representações sensíveis se refiram a algo que não tenha existência real ou comprovada, o que se coloca na pauta de análise é a realidade do sentimento, a experiência sensível de viver e enfrentar aquela representação. Sonhos e medos, por exemplo, são realidades enquanto sentimento, mesmo que suas razões ou motivações, no caso, não tenham consistência real.

É importante esta conceituação, pois é exatamente a realidade sensível de sua alma que se vê no “delírio” do louco. Para C. G. Jung, todas as manifestações da psique são reais, o psíquico é real, pois “real é tudo o que ATUA no ser humano”.

Para Pesavento, ainda, é este mundo do sensível que incide justo sobre as formas de valorizar, classificar o mundo ou de reagir diante de determinadas situações e personagens sociais. Em suma,

as sensibilidades estão presentes na formulação imaginária do mundo que os homens produzem em todos os tempos. Pensar nas sensibilidades, no caso, é não apenas mergulhar no estudo do indivíduo e da subjetividade, das trajetórias de vida, enfim. É também lidar com a vida privada e com todas as suas nuances e formas de exteriorizar –
ou esconder – os sentimentos.

Embora a vida seja difícil de ser fixada num papel, é na relação da literatura com a história que se pode chegar mais perto destas sensibilidades passadas. E cabe ao historiador, através de seu olhar e de seu questionamento, recriar este passado no presente, dando-lhe um (novo!) significado.

Pesavento, utilizando o referencial teórico de Jauss, sustenta a afirmação de que história é sempre a construção de uma experiência, o que se torna bastante válido quando se trata de repensar, ou de reconstruir, sensibilidades de um outro tempo, a partir da literatura.

O historiador é obrigado a realizar sempre uma ficção perspectivista da história, dado que é impossível a existência de uma história que recolha simplesmente o passado nos arquivos... Não se chega, pura e simplesmente, a fatos aprioristicamente estabelecidos por fontes. A história é, neste sentido, sempre construção de uma experiência, que tanto reconstrói uma temporalidade quanto a transpõe em narrativa. Neste sentido, argumenta Jauss, a estetização, ou a colocação em ficção da experiência
histórica, é uma obra, uma construção.

A literatura é um tipo especial de fonte, pois entre tantas outras funções, possui o papel de dialogar com o seu tempo, de uma forma ou de outra. Conforme Leenhardt, ela é usada, seguidamente pelos historiadores, para dar existência ao que não é claramente visível, legível, nos documentos habituais:

A literatura apresenta, neste aspecto, a vantagem de ser explícita, legítima, e, ao mesmo tempo, de pouca conseqüência, pois é claro, para cada um, que não se poderia
conceder fé às ficções! A literatura é assim, a boa filha do historiador, sempre a servir, se for preciso, ou silenciosa, se necessário. Ela é, então, um objeto particularmente útil no momento de pensar ou de não pensar os movimentos que agitam, ainda que implicitamente, as calmas águas da História.

Os diferentes gêneros literários que serão examinados fazem com que se aprofunde a questão de como a literatura ficcional pode remeter a formas distintas de sentir e pensar a loucura, nos tempos distintos em que foram escritos.

Conforme Pesavento, ainda, o processo de representação do real que a história se propõe, envolve criação, invenção, opções, estratégias de conhecimento e pode se situar "na esfera que chamamos de produção fictícia de uma temporalidade". "Reconstruir o vivido pela narrativa é, praticamente, dar a ver uma temporalidade que só pode existir pela força da imaginação: primeiro do historiador, depois do leitor do seu texto.

Nada mais justo, portanto, que, nesta reconstrução de um passado "sensível", se utilize fontes que balizem este caminho, como as narrativas de ficção literária que, ao mesmo tempo, relatam sensibilidades da imaginação. É o que foi dito, na introdução deste trabalho: é a imaginação (loucura) exposta pela imaginação (escrita e recepção), num movimento dialético que leva ao conhecimento social no tempo e, portanto, histórico, através da narrativa do historiador.

No dizer de Leenhardt,

Olhando-se mais de perto, a literatura de ficção, considerada como documento histórico, desempenha em efeito sobre dois planos: primeiro, aquele da expressão de teses ou idéias por um narrador mais ou menos onisciente. Neste caso, ele dá uma formulação clara aos discursos que provém desta cultura, do explícito ao qual o historiador gostaria de permanecer. Por outro lado, ela é o teatro daquilo que faz, realmente, o corpo da ficção: a ação. A ação não é um discurso. É mesmo difícil de reduzi-la ao discurso pois, precisamente, o modo de agir dos personagens do romance permanece infralingüístico, infradiscursivo, submetido a imponderáveis, a contradições, a contingências, a tudo aquilo do qual o discurso tem horror. Eles agem e, entretanto,
esta ação tem um sentido!

As narrativas que fazem parte do corpus de análise desta tese são distintas quanto ao seu gênero literário, mas todas possuem em comum o fato de serem narrativas de personagens que tiveram o diagnóstico de loucura e possuem seu locus de ação o hospício. Qualquer um deles - seja Fileto, do romance de Rocha Pombo, ou Lima Barreto e seu "alter-ego" Mascarenhas, de Cemitério dos Vivos, ou ainda o "escritor engavetado" TR, em suas Cartas de Hospício - vive e age neste espaço, no tempo do romance. Sendo pessoas, reais ou fictícias, carregam traços, marcas, de uma temporalidade e de uma sensibilidade única, particular, que remete o historiador a nuanças até então desconhecidas.

Note-se, ainda, que não se pretende, nesta tese, utilizar a literatura para fazer diagnóstico de distúrbios mentais e perpetuar a noção médica de que os escritos dos loucos revelam sua doença. Supõe-se, ao contrário, que os olhos do historiador hão de achar novas questões e respostas – mesmo que parciais e relativas – para o sofrimento psíquico (e suas manifestações) destes considerados doentes. Permite-se, aqui, recolocar perguntas, inverter padrões, re- apresentar as narrativas. Afinal, não importa o sentido que se dê, parece que a “sensibilidade” sempre se portou como um caminho de conhecimento, uma contribuição específica da atividade do espírito humano.”

---
É isso!


Fonte
:
Nádia Maria Weber Santos: “H I S T Ó R I A S D E S E N S I B I L I D A D E S : E s p a ç o s e n a r r a t i v a s d a l o u c u r a e m t r ê s t e m p o s - B r a s i l , 1 9 0 5 / 1 9 2 0 / 1 9 3 7." (Tese apresentada como requisito parcial e final para conclusão do curso de Doutorado em História do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob orientação da Profª. Drª Sandra Jatahy Pesavento). História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2005.

Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!