As relações entre a educação e a escravidão

“Na leitura de um artigo sobre a Revolta de Búzios ou Conjuração Baiana de 1798, encontramos referências ao conjunto de idéias que influenciou o movimento de libertação da capitania da Bahia da exploração colonial no século XVIII, quais sejam: a revolução industrial, a crise do sistema colonial, as aspirações pela liberdade, denominadas de Iluminismo ou Ilustração, a Revolução Francesa, entre outros (TEIXEIRA, [2005?], p.4-5). As lacunas nas informações que descreveriam a forma como foi organizada a revolta, caracterizando as estratégias utilizadas por parte de seus idealizadores na conspiração, tais como as leituras dos livros e textos franceses, a produ ão dos boletins, chamados “sediciosos”, que incitavam o povo baiano a se rebelar, nos remete à observação da dificuldade no cruzamento dessas descrições com as histórias de vida desses sujeitos e o modo como estes teriam aprendido a ler, escrever e até traduzir textos do francês para o português.

Diante dessa constatação, é relevante destacarmos os estudos sobre História da Educação Brasileira que ressaltam o tratamento dispensado aos africanos escravizados, libertos e livres pela sociedade brasileira e o processo de escolarização desses últimos. Luiz Gonçalves e Petronilha Silva (2000, p. 135) argumentam que, ainda no período colonial:

[...] os africanos escravizados estavam impedidos de aprender a ler e escrever, de cursar escolas quando estas existiam, embora a alguns fosse concedido a alto preço, o privilégio, se fossem escravos em fazendas de jesuítas.

De acordo com os autores citados, os jesuítas providenciavam escolas para que os filhos dos africanos escravizados recebessem lições de catecismo e aprendessem as primeiras letras, sem que pudessem almejar estudos de instrução média e superior. A educação recebida por essas crianças tinha o intuito de modelar a moral e o seu comportamento social, além de submetê-los ao controle rígido dos seus senhores. Geraldo Silva e Márcia Araújo (2005, p. 68) também argumentam que na educação do sistema escravocrata a população escravizada era impedida de freqüentar a escola formal que, por sua vez, era restrita por lei aos cidadãos brasileiros. Como exemplo dessa restrição, citamos a Constituição de 1824 que coibia o ingresso às escolas pela população escrava (que era em larga escala africana de nascimento) e representou um mecanismo de interdição do acesso dos africanos escravizados à educação.

No entanto, com o crescimento da população, foram criados novos mecanismos, dentre os quais podemos citar a Reforma Couto Ferraz de 1854. Essa Reforma instituiu a obrigatoriedade da escola primária para crianças maiores de sete anos e a gratuidade das escolas primárias e secundárias da Corte. Silva e Araújo (2005, p. 68) destacam dois pontos relevantes nessa Lei que comprovam o que eles chamam de “ideologia da interdição”: o fato de não serem admitidas crianças com moléstias contagiosas, crianças escravas e a ausência de previsão de instrução para adultos. De acordo com o texto da Reforma, os negros escravizados deveriam ser excluídos da instrução escolar e, de maneira implícita, eram associados a doenças contagiosas da época.

Apesar desses mecanismos, Silva e Araújo (2005, p. 69) identificaram algumas hipóteses que poderiam explicar a conquista, por parte de alguns africanos e afro-brasileiros, da leitura e da escrita e a primeira delas diz respeito à própria Reforma Couto Ferraz. Como as escolas estavam abertas para negros libertos, uma porcentagem desses sujeitos “protegidos” social e economicamente por ex-senhores poderia ter se beneficiado com a instrução formal. Outros escravizados poderiam ter aprendido a ler e a escrever em situações improvisadas, como através de observação silenciosa das aulas das sinhás-moças e da instrução religiosa dos padres. É importante destacar ainda que os africanos islamizados que liam e escreviam em árabe poderiam ter ensinado os outros africanos escravizados que com eles conviviam.

Apesar das estratégias utilizadas pelos africanos escravizados para ter acesso à escrita e da existência de senhores que lucravam com o trabalho dos que sabiam ler, escrever e contar convém destacarmos algumas características do modelo de educação a que esses sujeitos tinham acesso. De acordo com Marcus Fonseca (2002), a educação oferecida às crianças escravizadas tinha o objetivo de socializá-las a partir de sua condição de elemento servil, através de processos que as preparavam para participar de um conjunto de relações sociais visando manter a estabilidade do escravismo.

[...] a criança escrava, para o pleno cumprimento das obrigações inerentes à sua condição, deveria ser preparada para tomar parte das injustas relações sociais que caracterizavam o mundo escravista. (FONSECA, 2002, p. 127).

Tal preparação consistiria num conjunto de procedimentos e elementos manipulados pelos senhores, cujos ritos e finalidades contribuíam para a construção social do trabalho escravo, além de incutir nas crianças a naturalização da relação escravista e manter a viabilidade dos acordos e negociações entre senhores e escravizados.

No que se refere às formas de relacionamento vivenciadas na experiência colonial, a partir de suas análises sobre a presença africana no Brasil, Reis e Silva (1989) argumentam que há uma dicotomia nos estudos e abordagens cuja permanência seria muito forte na memória coletiva que se refere aos extremos da “submissão conformada” “ira sagrada” dos escravos, utilizando uma analogia entre as Figuras de Pai João e Zumbi dos Palmares. Isso porque os autores demonstram que houve nesse período:

[...]certos padrões de relacionamento, de negociação que aparecem desde os primeiros tempos e que não podem ser explicados apenas pela via do paternalismo, mas que são, em boa medida, forçados pelos próprios escravos [...]. (REIS; SILVA, 1989, p.13).

Reis e Silva (1989) ainda destacam que tais padrões de negociação teriam servido, tanto para a manutenção de costumes e da própria religiosidade dos escravos, como para a exploração por parte destes últimos das brechas encontradas no próprio sistema escravocrata. Aliada a essa questão, esses autores descreveram as diversas formas de negociação e os conflitos evidenciadas nesse período que,por sua vez, iam das resistências do dia a dia à ruptura das insurreições, buscando ainda demonstrar as diversas estratégias utilizadas pelos senhores para o controle e manutenção da ordem escravista.

A educação oferecida às crianças escravizadas assume um papel preparatório para o aprendizado de habilidades necessárias à atuação como trabalhador e a naturalização da relação entre dominador e dominado. Segundo Fonseca (2002, p.140), a convivência entre escravos e senhores era um aspecto central nesse processo de forma ão. Entendida não somente como “viver junto”, era preciso revesti-la de um “sentido pedagógico” que pudesse “[...] transmitir à criança os conteúdos necessários à sua condição de escrava [...]”. Essas considerações evidenciam que nem sempre a força e a violência eram utilizadas para que os escravizados incorporassem seus papéis de submissão na sociedade. Isso porque, mecanismos mais sutis eram apropriados pelos senhores para, ao tempo em que ensinavam a diferença entre ser livre e ser escravo, ensinarem a submissão, naturalizando a sua condição de dominador e inculcando nos africanos escravizados, desde muito cedo, a obediência, a fidelidade.

Marcus Fonseca (2002) juntamente com outros teóricos, ressignifica a resistência mantida pelos africanos escravizados mostrando que, mesmo sendo submetidos ao conjunto de processos voltados para a manutenção da escravidão, os mesmos reagiram e negociaram a sua liberdade, através de acordos e concessões diversas. Desse modo, é relevante salientar o sentido que a educação assume para esses sujeitos ao longo da história: num primeiro momento é utilizada pelos senhores para naturalizar e manter a escravidão, num segundo momento é dirigida aos povos escravizados sob o signo da civilização, do progresso e da preparação para o pós-abolição e, num terceiro momento, se constitui como estratégia de inclusão social e resistência ao racismo.

Nesse contexto, é interessante notar a discussão feita por Surya Barros (2005) sobre a relação entre a escolarização dos africanos e afro-brasileiros e o ideal de civilização da nação brasileira preconizado no discurso das elites, entre fins do século XIX e início do século XX. Nessa relação, a autora analisa a tensão dos senhores com a iminência do fim do sistema escravista aliada à adoção do trabalho livre, a partir da imigração sistemática de europeus. Para Barros (2005, p. 81) havia o argumento nesses discursos de que a camada negra da sociedade precisava ser escolarizada, isto é, educada para o trabalho, para que os negros se transformassem em “bons cidadãos”, “aptos para o trabalho livre”. Assim, deveria ser assegurado que o fim do sistema escravista ocorresse paulatinamente, sem causar transtornos ou atrapalhar o andamento da economia brasileira.

Ao analisarmos o modo como as elites defendiam a necessidade de educar os ex-escravos podemos perceber que estava implícita nos discursos a idéia de que a educação seria uma forma de “regenerar” esse segmento da população e diminuir o seu “atraso” e inferioridade característicos. É importante lembrar ainda que, no final do século XIX e início do século XX, o racismo científico e as idéias raciais estavam em pleno vigor no país e, transmutadas em forma de ideologia, davam respaldo ao escravismo e às teses que postulavam a inferioridade dos africanos e seus descendentes.

Segundo Barros (2005, p. 81) “dentro do movimento de construção de um país unido, coeso, inserido no ideal de modernização a ser seguido, a inserção da população negra era um ponto fundamental [...]”. Tal preocupação com a inserção desse segmento da população na sociedade poderia ser traduzida como a preocupação com o atraso conseqüente da “herança escrava” e que poderia comprometer a construção de uma na ão “civilizada”. Essa questão é relevante na medida em que as elites estavam preocupadas com os destinos da nação brasileira após a abolição da escravidão. Desse modo, seria preciso, através da educação, inculcar nos sujeitos livres e libertos a idéia de amor ao trabalho e a escola era tida como local privilegiado para a construção desse “cidadãos ideais”.

É importante salientar que, mesmo por trás dos argumentos das elites no século XIX de que a educação transformaria o país numa nação civilizada rumo ao progresso, havia a idéia de que essa educa ão seria uma forma de “regenerar” os negros do seu passado escravo. No entanto, a força da ideologia racista da época ofuscava essa possibilidade de inserção e permanência dos africanos e afro-brasileiros nas escolas, o que Barros (2005, p. 82) nomeia como os “sutis mecanismos de discriminação” materializados atrav s dos decretos, leis, relatórios analisados pela autora.

De acordo com Silva e Araújo (2005, p.72) as primeiras oportunidades concretas de educação escolar e ascensão da população negra surgem ainda no início do Estado Republicano, em finais do século XIX, quando o desenvolvimento industrial estimula o ensino popular e profissionalizante. A partir daí são criados grupos escolares urbanos que ofereciam ensino primário com qualidade e as escolas isoladas que ofereciam cursos diurnos em bairros operários e fazendas.

Segundo Gonçalves e Silva (2000, p. 136), a partir do decreto de Leôncio de Carvalho de 1878, houve a criação dos cursos noturnos para livres e libertos nos municípios da Corte e o estabelecimento de normas de validade nacional, o que inspirou a criação de diversos cursos noturnos. Esses autores observaram que, desde o início, esses cursos eram vetados aos escravos já que seu público era os livres e libertos. Entretanto, no ano seguinte, em 1879, o veto à presença de escravos caiu e alguns estudos evidenciam a sua freqüência em escolas noturnas. Os grupos escolares representaram uma estratégia de desenvolvimento da instrução pública, entretanto, ao existirem numa sociedade escravocrata e mesmo sendo legalmente abertas a todos, mantinham mecanismos de exclusão baseados em critérios de raça e classe.

Mesmo diante da discriminação explícita em relação aos escravizados e da interdição aos espaços escolares houve, na história da educação, situações nas quais os negros escravizados, livres e libertos puderam freqüentar estabelecimentos de ensino e ter acesso à alfabetização. Eliane Peres (2002, p.76), ao investigar os cursos noturnos ministrados na Biblioteca Pública Pelotense entre os anos de 1875 a 1915 constatou a dificuldade de identificar a presença de negros livres ou libertos nesses cursos por conta do “silêncio das fontes”. Os cursos, segundo a autora, foram projetados por um grupo da elite pelotense e eram destinados aos “filhos do trabalho”. Tais cursos foram criados visando à instrução dos homens de classes populares e surgem dentro do contexto de civilização e progresso numa sociedade escravocrata e racista do Rio Grande do Sul.

Partindo do questionamento sobre a freqüência de alunos negros ao curso da Biblioteca antes do final do sistema escravista e sobre como identificar a presença desses alunos matriculados nos cursos iniciados em 1877 e extintos em 1940, Peres (2002) realizou o cruzamento dos dados obtidos nos documentos encontrados com os de associações populares, especialmente as carnavalescas, dramáticas, abolicionistas, entidades de classe e a imprensa produzida pelos negros. Ao realizar essa investigação, a autora observou que:

[...] essas instituições eram bastante comuns e importantes na cidade de Pelotas no final do século XIX e início do XX, congregavam grande número de trabalhadores, e algumas eram compostas especificamente de negros[...]. (PERES, 2002, p. 79).

A autora citada identificou que o domínio do código escrito se constituiu como uma das condições básicas para a atuação, o engajamento e a luta dos alunos em entidades e movimentos populares. Peres (2002, p. 85-86) revelou que, mesmo existindo as aulas noturnas ministradas na Biblioteca Pública Pelotense, o acesso era somente permitido aos homens brancos e negros nascidos livres ou libertos. A presença dos últimos foi considerada como um avanço para a época e se justifica na medida em que o objetivo era “[...] manter a ordem, disciplinar, incutir preceitos de moralidade e civilidade [...]” (grifos da autora).

Como os cursos eram dirigidos às classes populares, trabalhadores, futuros trabalhadores ou desempregados, havia a presença de homens adultos e meninos com idade entre sete e oito anos. A instrução oferecida nesse espaço era associada à educação moral e visava preparar os negros para as novas relações de trabalho e a sua inserção na sociedade como indivíduos livres.

As considerações apresentadas até aqui nos fornecem argumentos para inferir que representam fragmentos da trajetória educacional de um segmento da população que enfrentou diversos mecanismos de interdição no acesso à instrução e às primeiras letras. Esse segmento, de acordo com a literatura apresentada, somente foi incluído no processo de escolarização oficial para atender às necessidades, num primeiro momento, de senhores que esperavam lucrar com a leitura e a escrita dos africanos escravizados e, num segundo momento, de uma elite preocupada com a construção de uma nação sob o signo da civilização, elevada moralmente e livre dos ranços e das heranças do seu passado escravocrata.

Apesar das características da proposta educacional construída, consideramos que o acesso à instrução representou uma possibilidade de reação e denúncia contra o racismo por parte do segmento negro da população. Essa questão foi evidenciada por Eliane Peres (2002) quando a mesma comenta as informações encontradas sobre os alunos negros que freqüentaram as aulas noturnas da Biblioteca Pública Pelotense, salienta que o acesso à instrução teria sido uma condição básica para a atuação e engajamento de alguns desses alunos em entidades populares e afirma que esse fator contribuiu para a sua organização política em torno de uma “Imprensa Negra” no início do século XX.

De acordo com Gonçalves e Silva (2000, p. 138) quando deslocamos as análises do século XIX para o século XX nos deparamos com o abandono a que foi relegada a população negra. As mudanças bruscas nos valores sociais, associadas às transformações profundas no mercado de trabalho nesse período de transição exigiram a criação de novas formas organizacionais por parte dos diferentes segmentos sociais com vistas à sua inserção na sociedade moderna. As mudanças no mercado de trabalho se referem às alterações nas relações de produção implantadas no país, especialmente, com a chegada de imigrantes europeus para ocupar os postos de trabalho que surgiam no contexto no qual se desenrolava o processo de secularização das cidades brasileiras.

O início do século XX marca o surgimento de organizações de protesto dos negros em todo o país, desempenhando variados papéis diante da população negra:

[...]
São pólos de agregação que podem funcionar como clubes recreativos e associações culturais [...], ou como entidades de cunho político, ou, mais recentemente, como formas de mobilização de jovens em torno de movimentos artísticos com forte conteúdo étnico [...]. Em muitos casos, elas se configuram como instâncias educativas, na medida em que os sujeitos que participaram delas as transformaram em espaços de educação política. Já no início do século XX, o movimento criou suas próprias organizações, conhecidas como entidades ou sociedades negras, cujo objetivo era aumentar sua capacidade de ação na sociedade para combater a discriminação racial e criar mecanismos de valorização da raça negra.(GONÇALVES; SILVA, 2000, p.139).

As lacunas sobre o acesso à escolarização por parte dos negros na história da educação nos remetem a questionamentos sobre: de que modo esses sujeitos conseguiram durante o processo de modernização do país se organizar em instituições com tais características? Por que a historiografia oficial não registra de modo adequado a existência dessas instituições no período pós-abolição? Quais são as relações entre a criação dessas instituições e a inserção dos negros na sociedade brasileira? E, por fim, existe alguma relação entre a história do Movimento Negro no Brasil e a promulgação da Lei Federal n° 10.639/03?

Nesse sentido, ainda relacionando a criação dessas instituições com os questionamentos acima colocados, é relevante considerarmos o conceito de Movimento Negro apresentado por Ana Célia Silva (2002, p. 140):

Podemos considerar como Movimento Negro todas as entidades ou indivíduos que lutaram e lutam pela sua liberdade, desenvolvem estratégias de ocupação de espaços e territórios, denunciam, reivindicam e desenvolvem ações concretas para a sua conquista dos direitos fundamentais da sociedade. [...] Identifico como uma das maiores contribuições desse movimento, para o desenvolvimento social do povo negro, a sua luta constante pela conquista da educação, inicialmente como meio de integração à sociedade existente e, depois, denunciando a instituição educacional, como reprodutora de uma educação eurocêntrica, excludente e desarticuladora da identidade étnico-racial e da auto-estima desse povo, apresentando, através de suas entidades, uma educação paralela, pluricultural, colocada nas escolas através da ação de seus militantes.

A definição de Movimento Negro acima destaca que o eixo educação atua como norteador da ação das instituições aliado à luta contra a discriminação étnico-racial existente na sociedade brasileira. Partindo dessa observação, podemos justificar o caráter, em certo sentido, educativo das principais ações realizadas por essas instituições nas primeiras décadas do século XX. Partindo daí, concordamos com Jacques d
Adesky (2001, p. 151) quando argumenta que o Movimento Negro exerce uma ação pautada na reivindicação pelo pleno reconhecimento da cidadania do negro, partindo do entendimento de que a educação Figuraria para este movimento como o principal instrumento de ascensão e inclusão social dos negros brasileiros.

Ao considerarmos a expressão “Movimento Negro”, salientamos que esta não dá conta da pluralidade de instituições criadas ao longo da história. Nesse ponto, concordamos com Lélia Gonzáles (1982) quando a autora argumenta que esse é um tema complexo, já que a multiplicidade de variantes não permitiria uma visão unitária, e justifica a sua argumentação partindo do princípio de que os negros não constituiriam um “bloco monolítico”, caracterizado de maneira rígida e imutável.

[...] Os diferentes valores culturais trazidos pelos povos africanos que para cá vieram (iorubás ou nagôs, daomeanos, malês ou muçulmanos, angolanos, congoleses, ganenses, moçambicanos, etc.), apesar da redução à „igualdade
, imposta pela escravidão, já nos levam a pensar em diversidade. Além disso, os quilombos, enquanto formações sociaisalternativas, o movimento revolucionário dos malês, das irmandades (tipo N.S. do Rosário e S. Benedito dos Homens Pretos), as sociedades de ajuda (como a Sociedade dos Desvalidos de Salvador), o candomblé, a participação em movimentos populares etc., constituíram-se em diferentes tipos de respostas dados ao regime escravista. Por outro lado, que se pense nos „ciclos da economia e seus deslocamentos (não só da população escrava, mas dos centros de decisão política), assim como nas diferenças regionais que daí resultaram. Que se pense no advento da sociedade burguesa e das relações capitalistas, com seus abolicionismos e republicanismos. E que não se deixe de pensar, sobretudo, no caráter autoritário e racista da sociedade brasileira em geral, assim como nos diferentes meios que ela tem se utilizado para concretizá-lo. Agora, se a gente junta tudo isso (e muito mais), uma pergunta se coloca: será que dá pra falar do Movimento Negro?
(GONZÁLES, 1982, p. 18, grifos da autora).

A reflexão de Lélia Gonzáles (1982) sintetiza um conjunto de fatores que concorrem para a multiplicidade de facetas do Movimento Negro Brasileiro ao longo de sua história, ponderando, sobretudo, o caráter diverso dos descendentes de africanos que se inicia na África, enquanto continente extenso em território, com uma complexidade e riqueza cultural considerável. Outro ponto destacado pela autora que merece atenção é quando a mesma destaca que existiram e ainda existem diversas formas de reação ao escravismo e ao racismo, o que implica na impossibilidade de considerarmos o Movimento Negro numa perspectiva isolada e estanque.

As diferenças regionais existentes no Brasil também constituem fatores que irão configurar diferentes facetas no Movimento Negro Brasileiro que, inclusive, implicará nas posturas político-ideológicas também diversas. Considerando as reflexões apresentadas, destacamos que escapa desse texto a possibilidade de abordarmos a amplitude e multiplicidade desse movimento, constituído de “movimentos diversos” ao longo da história do país. A partir daí, concordamos com Michael Hanchard (2001, p. 121) quando afirma que “[...] o Movimento Negro é, na verdade, uma série de movimentos com compromissos ideológicos e estratégias políticas diferentes [...]”. Essa ponderação é relevante na medida em que existiram e existem várias entidades e instituições sendo que cada uma teve e tem a feição do seu tempo, isto é, cada liderança teve um conjunto de estratégias de ação e posturas político-ideológicas coerentes com o tempo histórico, social e econômico no qual viveu.

Isso significa dizer que as contradições diversas na atuação dessas instituições não justificariam a redução da importância de cada uma em particular na história do Movimento Negro no Brasil. Nesse contexto, apresentaremos no próximo capítulo as ações de algumas dessas instituições, consideradas por nós como as mais relevantes no contexto da história da educação dos negros no país e que construíram os antecedentes históricos da Lei Federal n° 10.639/03, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9.394/96) e tornou obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira nos currículos oficial da rede de ensino”.

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Fonte:
CRISTIANE COPQUE DA CRUZ: “INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS AFRICANOS NA ESCOLA: trajetórias de uma luta histórica”. (Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação. Orientadora: Profª Dra. Joseania Miranda Freitas). Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2008.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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