O Estado laicista ou o “Estado leigo”

BASES DA SEPARAÇÃO IGREJA-ESTADO

Toda religião associada ao governo das coisas terrenas é uma religião morta” - (Ruy Barbosa. in: “O papa e o concílio”, p.7).

“O conceito de laicidade, derivado do conceito de “leigo” adquire importância com o surgimento do Estado Moderno e da sua autonomia a respeito da religião, especialmente da Igreja. Neste sentido, o Estado leigo passa de um governo confessional ou defensor de determinada religião para um Estado sem religião. Laicismo vem do grego “laicos” e do latim “laicu”. O termo tem o sentido semântico de “oposição às ordens sacras”.

O conceito moderno de laicismo abrange em si não apenas a distinção entre Estado e Igreja, mas também a concepção da Igreja como sendo associação voluntária. Estes dois elementos aparecem no pensamento dos puritanos ingleses do século XVII, nos escritos de John Milton sobre a liberdade religiosa e de John Locke sobre a tolerância. O princípio segundo o qual “o Estado nada pode em matéria puramente espiritual, e a igreja nada pode em matéria temporal” é afirmado por Locke na Epístola de tolerantia (1689): o poder político não deve emitir juízos sobre religião, não tendo competência para fornecer definições em matéria de fé; do seu lado a Igreja deve manter a própria autoridade no campo espiritual que lhe é próprio.
(BOBBIO, et al., p. 671).

Estado laico, ou seja, desvinculado de quaisquer confissões religiosas, é modelo imprescindível para a defesa dos direitos humanos fundamentais e de um Estado Democrático de Direito, plural e respeitador da diversidade.

A separação da esfera religiosa da secular foi a dinâmica do Estado livre, configurando a laicidade do Estado e os dogmas da Igreja com relação somente a seus membros.

[...] vem designar o sistema de separação entre as duas instituições, sistema que envolve, em sua extrema configuração e com interferências inevitáveis, não só a indiferença do Estado pelas várias dogmáticas religiosas, como também o seu desinteresse pelas manifestações sociais de qualquer das confissões: nada de regulamentações especiais, nem favoráveis nem limitativas, das organizações eclesiásticas. Historicamente, o separatismo assim entendido se tem desenrolado dentro das linhas gerais do liberalismo e da concepção liberal do Estado, cuja não-interferência em matéria religiosa se baseia no reconhecimento essencial da peculiaridade individual de atingir a esfera do divino. [...] Pressupôs sempre a inderrogável laicidade do Estado, distinguindo-se das posições jurisdicionalistas tradicionais, já que estas, conforme a distinção de F. Ruffini, considerava as instituições eclesiásticas como entidade de direito público e, por conseqüência, plenamente sujeita ao ordenamento estatal, ao passo que o separatismo se apresenta como um “sistema de relações entre o Estado e as Igrejas, segundo o qual estas são consideradas e tratadas como simples sociedades de direito privado”. (BOBBIO, et al., 2004, p.1146-1147).

Quando o Estado resolve adotar uma religião oficialmente, ainda que seja a de um grupo majoritariamente dominante ou hegemônico, é inevitável o seu comprometimento com crenças, princípios morais, ideologias de um determinado grupo em detrimento de outros, ainda que possam ser considerados minoritários. Nessa perspectiva, o Estado laico não pode permitir a dinâmica desta relação.

O fundamento do laicismo está evidentemente na distinção das duas esferas: a espiritual e a secular, conforme chamaram os medievais Dante Aliguiere e Ockam. Autores modernos chamaram-no de: teoria das duas espadas.

Encontramos já no cristianismo primitivo dos primeiros séculos a distinção entre autoridade espiritual e poder temporal, isto em contraposição à unificação pagã das duas funções sacerdotais na pessoa do magistrado civil. A inviolabilidade recíproca das duas jurisdições, decorrente da assertivas encontradas nos textos sagrados, é reconhecida, como válida, na Patrística e praticamente manifestada, no findar do século V. [...] A dinstinção que se fazia entre as duas autoridades era bem diferente da moderna concepção da Igreja e Estado. O pensamento medieval considerava ambas aspectos diversos de uma sociedade cristã universal, súdita, ao mesmo tempo, de duas autoridades que dependiam diretamente de Deus. Todavia, nos debates contra os papistas, transparece espontaneamente, mesmo neste período, juntamente com a tese de que a soberania secular depende diretamente de Deus, também a tese que iria se afirmar na Idade Moderna. De acordo com esta segunda tese, compete à sociedade secular cuidar de seu próprio Governo sem interferências por parte do clero, ao qual, na comunidade civil, cabem unicamente tarefas de instrução e exortação. [...] O enfoque de recíproca autonomia que Locke dá à relação entre religião e política encontra-se em sucessivos escritos políticos, que buscaram a conciliação entre liberalismo e doutrina cristã.
(BOBBIO, et al., 2004, p. 671).

O laicismo tem alicerces teóricos nas obras dos filósofos políticos medievais, modernos e contemporâneos e fora defendido com fundamentos racionalistas. No caso do Brasil, destaca-se a filosofia política liberal e positivista no limiar da república. Bobbio (2004) quando fala da concepção de laicismo no século XIX e XX, assevera:

O laicismo político do século XIX tem seu epicentro no conflito entre a Igreja Católica e os movimentos liberais. Na Storia d’Europa nel secolo XIX (1932), Benedetto Croce defendia o contraste entre a Igreja de Roma e a religião da liberdade como o choque entre duas crenças religiosas opostas, ressaltando que o movimento liberal não encontrou oposição, muito pelo contrário, encontrou apio por parte das confissões protestantes, que se haviam tornado racionalistas e iluministas num primeiro momento, para, em seguida, tornarem-se idealistas e historicistas... tanto é assim que a Igreaj romana acabou reunindo num único conjunto protestantismo, maçonaria e liberalismo. [...] Na Itália, o desenvolvimento do laicismo encontra-se intimamente ligado aos acontecimentos do risorgimento, visto ser o fim do Governo temporal do papado condição necessária para a complementação da unificação nacional: o laicismo do risorgimento foi, pois, ao mesmo tempo, uma questão de consciência e uma questão de Estado. Contra a presença concomitante, na nação católica, de duas autoridades com referência às quais os cidadãos teriam que ser duplamente subditi legum e subditi canonum, o laicismo do risorgimento sustentou a distinção entre os dois poderes no Parlamento que estes poderes não poderiam reunir-se debaixo de uma única autoridade sem gerar o mais nojento despotismo e, mediante a fórmula: livre Igreja em livre Estado, afirmou a liberdade da Igreja no Estado e a liberdade do Estado da Igreja
. (BOBBIO, et al., 2004, p.672).

As Constituições Francesa, Alemã e Italiana, bem como a maioria dos Estados modernos reivindicaram os princípios de laicidade, e inseriram nas mesmas estes princípios os quais consolidaram um Estado leigo. Tal concepção inclui a liberdade religiosa e reconhece a pluralidade das confissões, e todas com igual liberdade.

Ademais, ao contrário do laicismo, no regime teocrático como no regime césaro-papista, a autoridade vem de cima, ou seja, de Deus. Ela dita sua vontade, suas ordens e suas leis, para que o povo receba e obedeça. Por outro lado, arquétipos da organização social e religiosa necessariamente ficam profundamente inscritos na memória dos povos, ainda que novos beneficiários do poder reneguem as suas origens. Nesta visão, o poder secular só adquire legitimidade em virtude da delegação que ele recebe do poder religioso. A única autoridade suprema é a que vem do alto. Ela delega poder aos homens e dar forma ao Estado. Tal acepção fora amplamente discutida nos Estados modernos, sendo este tipo de governo reprovado nas grandes democracias contemporâneas, e, implementado o laicismo.

Atualmente o conceito de laicismo desenvolveu e está mais diretamente ligado ao conceito de secularização. Talvez agora com uma concepção mais abrangente a qual fora postulada por Hans Kelsen em (I fondamenti della democrazia, ed. It. 1955), quando diz que:

A tendência para a tolerância própria do laicismo se afirma mais fortemente quando a convicção religiosa não é suficiente forte para se sobrepor à inclinação política, uma vez, porém, que a comunidade política abrange também os crentes, o laicismo aceita a influência das igrejas na vida pública, contanto que esta influência seja decorrente de seu autônomo peso social e não de privilégios concedidos pelo Estado.
(KELSEN, 1955, p.673).

A progressiva dessacralização da sociedade moderna descrita por Max Weber em economia e sociedade (1961), propaga e abrange um conceito de laicismo e secularização na mesma dinâmica e igualdade. Para ele há uma conexão entre os dois termos sem sobreposição. Weber entende que o laicismo propõe uma sociedade propriamente leiga, política leiga e cultura leiga.

Para os laicistas, a democracia não consegue estabelecer-se ou instalar-se onde as premissas religiosas são profundamente promovidas pelo governante ou aceitas sem questionamentos pelo povo.”


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Fonte:
MAURO FERREIRA DE SOUZA: "A IGREJA E O ESTADO: UMA ANÁLISE DA SEPARAÇÃO DA IGREJA CATÓLICA DO ESTADO BRASILEIRO NA CONSTITUIÇÃO DE 1891". (Dissertação apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie no Programa de Pós- Graduação em Ciências da Religião, como requisito parcial para obtenção do título de mestre. Orientador: Prof. Dr. João Batista Borges Pereira). Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2007.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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