Velhice, morte e religião

A associação histórico-cultural da velhice com a morte e a religião

"A associação histórico-cultural da velhice com a morte e com a religião se evidencia em muitas culturas antigas nas quais eram atribuídos aos idosos poderes transcendentais. Filósofos como Platão e Confúcio também destacaram essa relação. Na Índia, segundo princípios do Código de Manu – escrito centenário que revela aspectos religiosos na organização política e social hindu, é nas etapas finais do desenvolvimento humano que o profundo aprendizado espiritual se torna possível. Já na tradição judaico-cristã, os mistérios sagrados têm sua guarda atribuída aos mais velhos, que conquistam maior sabedoria através do estudo prolongado das escrituras sagradas (Socci, 2006).

Na idade antiga, a chegada à idade avançada, como concebemos nos dias atuais, era raramente alcançada. Isto devido ao fato da expectativa de vida da população se revelar muito menor que nos dias atuais. Dessa forma, a maioria das pessoas morria desfrutando de pleno vigor físico. A juventude era representada com esplendor e virilidade, enquanto que a velhice se associava à debilidade do organismo humano. Não obstante essa representação do indivíduo idoso, alguns autores clássicos ressaltam que a velhice é marcada pela sabedoria e o amadurecimento da pessoa (Muchinik, 2005).

Na Antiguidade, havia uma forte relação entre o sagrado e a velhice. Sendo a velhice um raro fenômeno, só poderia ser lograda com o consentimento e ajuda dos deuses. Assim, o velho era representado na sociedade como uma pessoa digna de uma graça divina, ou seja, a velhice aparece nesse momento histórico atrelada à idéia de mérito. Ademais, nessa época, eram comuns pedidos às divindades para que se vivesse por maior período, o que reforça o argumento acima exposto da associação da velhice ao sagrado. Os mais velhos também tinham destaque no cenário político de diferentes sociedades antigas. Tal fato pode ser explicado pela relação entre velhice, sabedoria e sagrado (Minois, 1999). Trata-se, ainda, de uma ligação que ainda encontramos na sociedade contemporânea e cujas raízes são bastante antigas.

É na Idade Média que surge a concepção cristã de que a velhice é a última fase da vida e, conseqüentemente, uma preparação para o inevitável fim humano. Assim, a velhice é representada socialmente por sua proximidade aos momentos finais da vida e, também, da providência divina. No entanto, alguns autores da época explicitam ainda mais a relação entre velhice e religião. Argumentam que a tristeza e a falta de energia vistas como características da velhice seriam decorrências de pouca fé e proximidade do pecado (Muchinik, 2005).

É pertinente ressaltar que, nesse período, a associação da idade cronológica com a sabedoria não é pensada como algo intrínseco ou inseparável. Segundo relata Minois (1999), a velhice não era, para Santo Agostinho, obrigatoriamente sinônimo de sabedoria. Minois destaca, ainda, que o temor do envelhecimento estava associado ao paganismo, enquanto os cristãos que viveram uma vida virtuosa não deviam compartilhar desse sentimento:

Encontramos aqui sem surpresa uma idéia da sapiência bíblica, a velhice física não é a verdadeira velhice. O verdadeiro velho é o mais sábio qualquer que seja sua idade. Todos os autores estão de acordo nesse ponto: Gregório o Grande, falando acerca de São Bento, declara que “desde a infância o coração era o de um velho”. No século V, Santo Hilário de Arles, na Vida de Santo Honorato, conta como considerava este e o seu irmão Venâncio, ainda muito jovens, como dois velhos em face da sabedoria e virtude ... Na verdade eles tinham da velhice não o brilho dos cabelos brancos, mas o de suas virtudes, não a degradação das forças físicas, mas a conduta própria de uma pessoa de idade
(Minois, 1999, p.148).

A associação da velhice com o pecado, no entanto, explicita certa ambigüidade na forma como os velhos eram vistos pela sociedade desse tempo. Nesse contexto, apesar da velhice encontrar-se atrelada à sabedoria, ela conduziria à morte, assim como o pecado. Velhice e pecado são, portanto, vistos como momentos ou situações repugnantes. O velho, com suas debilidades, corporifica o pecado na Idade Média, conforme ilustra Minois:

Santo Agostinho não dirá outra coisa no seu primeiro tratado sobre a Epístola de São João, onde estabelece a equivalência entre o pecador e o homem de idade e entre a criança e o homem regenerado. Aliás, ao comentar uma passagem de Isaías, “enquanto vós envelheceis, eu continuo o mesmo”, faz a seguinte distinção: aqueles que louvarem a Deus terão os cabelos brancos da sabedoria, enquanto os outros hão de ver seu corpo enfraquecer
(Minois, 1990, p.150).

Nessa época, excetuando-se os senhores, os bispos, os reis e os papas, que são pessoas que dispunham das melhores condições de vida, os outros mais velhos não dispunham de expressivo espaço na sociedade. O povo e os guerreiros dependiam de sua força física para o trabalho e sobrevivência. O clero também era majoritariamente jovem. No entanto, era nos mosteiros que se podia encontrar uma maior proporção de indivíduos idosos (Muchinik, 2005). Apesar dessa maior incidência de pessoas idosas nos mosteiros, em contraste com outros espaços sociais, as regras monásticas não se ocupavam em especial dos monges mais velhos. Assim, esses não dispunham de privilégios em relação aos demais (Minois, 1999).

Por fim, Muchinik (2005) ainda acrescenta que os estereótipos negativos acerca da velhice parecem ganhar força no final deste período medieval, quando são enfatizadas limitações físicas da velhice. Entretanto, nesse período, é destacada também a relação do corpo com a alma, de forma que desponta nessa época algum interesse pelas virtudes associadas à velhice. Neste sentido, no tocante aos preconceitos vivenciados e à associação da velhice com o sagrado, cabe destacar que as bruxas, figuras marcantes no imaginário social desse período, eram sempre mulheres velhas. Esse aspecto reforça o fato de que a velhice era vista com denotação negativa nessa sociedade.

A partir dos argumentos teóricos e históricos acima expostos podemos pensar a religiosidade como uma das fontes de sentido para as perdas na velhice, sejam as perdas relacionadas ao físico ou características aos universos profissional, social e familiar. Segundo Socci (2006), em Religiosidade e o adulto idoso, a busca de um significado para a vida é viabilizada pela religiosidade e encontra-se além de instituições, rituais ou ideologias específicas. Dessa forma, argumenta, com base em estudos da antropologia, arqueologia e biologia, que se trata de uma busca própria do humano e, portanto, uma busca de caráter existencial. Revela-se, assim, que a construção de sentidos para a experiência é imprescindível em todas as fases do desenvolvimento do homem e a religiosidade é uma fonte fundamental e riquíssima de sentido para a vida.

Conforme ressalta Goldstein (2006, p.132), “prolongar a vida sem propiciar um significado para a existência não é a melhor resposta para o desafio do envelhecimento”. Estamos, portanto, vislumbrando um novo cenário, uma sociedade cada vez mais envelhecida na qual o número de idosos em pouco tempo deve superar o número de jovens. Diante do acima exposto, é importante assinalar que há uma profunda e sólida relação entre envelhecimento e morte no imaginário social de diferentes culturas e sociedades, em especial nos considerados países ocidentais. Trata-se de uma vinculação evidente em diversos períodos históricos e que se re-configura na sociedade contemporânea.”


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Fonte:
Jamille Mamed Bomfim Cocentino: "ENVELHECIMENTO E CULTURA: As perdas na velhice à luz de obra de Gabriel García Márquez". (Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Psicologia Clínica e Cultura, do Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília (PCL/IP/UnB), sob orientação da Profa. Dra. Terezinha de Camargo Viana). Universidade de Brasília - UnB. Brasília-DF, 2008.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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