A figura da “mãe-preta” na história brasileira

“Aluísio Azevedo, em O Cortiço, relatou numa passagem o desejo da personagem Leocádia, lavadeira de se tornar ama-de-leite. Depois de tentar engravidar do marido sem sucesso, ela deixou-se seduzir por um estudante que ao observá-la lavando roupa a desejou. O rapaz queria dar-lhe de presente um coelhinho branco, no entanto, o que Leocádia queria era engravidar para conseguir um emprego como ama-de-leite:

Olha ! pediu ela, faz-me um filho, que eu preciso alugar-me de ama-de-leite...Agora estão pagando muito bem as amas! A Augusta Carne-Mole, nesta última barriga, tomou conta de um pequeno aí na casa de uma família de tratamento, que lhe dava setenta mil-réis por mês!...E muito bom passadio!...Sua garrafa de vinho todos os dias!...Se me arranjares um filho dou-te outra vez o coelho!

A mãe-preta é figura muito presente na história brasileira, desde o período da escravidão até os primeiros anos do século XX, quando as negras passam a serem preteridas pelas brancas imigrantes. Momento em que a sociedade não valorizava mais o trabalho das mulheres negras e nem a presença delas na cidade. Amas criadeiras passaram a ser vistas como perigosas moradoras de cortiços que transmitiam doenças para as famílias brancas. A partir da metade do século XIX, apareceram imagens divergentes de ama-de-leite:

a mãe negra não era mais a encarnação do alimento e dos cuidados afetuosos, tornou-se também um espectro de doença medonha. Com o leite de seu corpo poderia infectar o inocente com a tuberculose, ou até mesmo a sífilis. As moléstias que antes os patrões, consideravam seu dever cuidar vieram a ser consideradas importações transportadas pelas criadas.

A historiadora Maria Aparecida da Silva Lopes, afirma que nas primeiras décadas do século XX, muitos brancos passaram a deplorar o efeito corruptor que a criação dada por amas negras tinha sobre as crianças brancas, chegando a ponto de sugerir que os brancos absorviam os vícios das vidas dos negros, sem falar nas doenças passadas através do leite da mãe preta. Estes rejeitavam inteiramente a idéia das contribuições culturais da mãe preta, declarando que algumas escravas negras em nada contribuíram para a formação da raça e da nacionalidade.

Apesar dessa rejeição, a partir de 1920, o dia 28 de setembro, dia da aprovação da lei do ventre livre, passou a ser adotado como o dia da mãe preta. E em 1954 foi inaugurada na cidade São Paulo, no Largo do Paissandu, um monumento à mãe preta.

Lélia Gonzalez, antropóloga e feminista negra propôs na década de 1980, uma releitura da personagem estereotipada da “mãe-preta”. Para ela, essa figura, em vez de representar a aceitação da condição de escrava, afirmava a resistência negra construída no cotidiano das relações entre senhores e escravos. Já que por meio das cantigas de ninar repletas de palavras africanas e na linguagem cotidiana ensinada às crianças brancas a “mãe-preta” marcava traços africanos na sociedade brasileira. Para Lélia Gonzalez a língua brasileira deveria se chamar “pretuguês”, tamanha a influência da África e das mulheres negras em sua formação."

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Fonte:
Silvane Aparecida da Silva: “Racismo e Sexualidade nas Representações de Negras e Mestiças no Final do Século XIX e Início do XX”. (Dissertação de Mestrado apresentado à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em História Social sob a orientação da Prof.ª. Doutora Maria Odila Leite da Silva Dias). São Paulo, 2008.

Nota:
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada.

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