Os donos da mídia e a mídia dos donos

OS DONOS DA MÍDIA

"No começo do século XX, no texto intitulado “A Autocracia Vacila”, Lênin defendia a liberdade: “exigimos em primeiro lugar o reconhecimento imediato e incondicional da lei de liberdade de reunião e de imprensa e a anistia para todos os detidos por motivos políticos ou religiosos”.

O próprio Lênin mostrou, também, a importância de um jornal na luta revolucionária com o texto “Pode um Jornal Ser um Organizador Coletivo?”:

[...] Se não se educam fortes organizações políticas locais, não terá valor o melhor jornal destinado a toda a Rússia. Completamente justo. Mas trata-se precisamente de que não existe outro meio para educar fortes organizações políticas senão um jornal para toda a
Rússia. (LÊNIN, 1979, p. 193)

Para se entender melhor o papel da mídia atualmente é fundamental a contextualização histórica da imprensa em relação ao mundo capitalista — ela tem vocação para ser instrumento do capitalismo. O estabelecimento da imprensa comcaráter periódico no século XVII está ligado diretamente às necessidades da burguesia ascendente. Lage (1982, p. 18) também ressalta a questão da liberdade:

[...] a Imprensa periódica vinha atender a uma necessidade social difusa. [...] A burguesia ascendente utilizou seu novo produto para a difusão dos ideais de livre comércio e de livre produção que lhe convinham. Logo também viriam as respostas do poder político autocrático a essa pregação subversiva, sob a forma de regulamentos de censura ou da edição de jornais oficiais ou oficiosos, vinculados aos interesses da aristocracia. A liberdade de expressão do pensamento somou-se, na luta contra a censura, às outras liberdades pretendidas no ideário burguês, e o jornal tornou-
se instrumento de luta ideológica, como jamais deixaria de ser.

Vários debates aconteceram em torno da liberdade na fase inicial da imprensa periódica. Antes da Revolução Francesa, os ideais de liberdade eram defendidos ferrenhamente, contra as diferentes formas de censura que havia na Europa. Por outro lado, nos Estados Unidos a questão da liberdade de imprensa teve características muito específicas. A Primeira Emenda à Constituição (em 1791) consagrou o princípio da Liberdade Imprensa. O nome de Thomas Jefferson tornou-se um mito na história dos Estados Unidos como defensor da Liberdade de Imprensa.

Somente no século XIX é que a Europa consegue se desvencilhar de praticamente um século de censura e restrições à imprensa. A Revolução Industrial promoveu, ao mesmo tempo, a liberalização do controle sobre a imprensa; o surgimento de setores da população interessados em leitura e informação, e a mecanização na produção de jornais — possibilitando aumento da tiragem e da circulação. Também é dessa época a introdução da venda de espaço publicitário nos jornais, acarretando uma diminuição do preço do exemplar, tornando-o mais acessível a setores da população com menor poder aquisitivo.

Lage (1982, p. 24-25) mostra uma evolução da chamada técnica de fazer jornal (“que não deve ser confundida com a tecnologia de fabricação dos jornais”) respondendo às situações históricas. Os textos opinativos e interpretativos dominam os primórdios dos periódicos. Havia uma utilização, por parte da burguesia, de críticas sintonizadas com os conflitos com os governos aristocráticos. Com a chegada da burguesia ao poder, a imprensa passa a ter necessidade de uma nova postura. Um setor significativo adota os fundamentos da imparcialidade, da objetividade e da veracidade na informação (e, portanto, passa a ser mais prestigiado). É nesse cenário que surge a imprensa também em nosso país.

[...] A história do jornalismo brasileiro pode ser dividida em quatro períodos distintos: o de atividade sobretudo panfletária e polêmica, que corresponde ao Primeiro Reinado e Regências; o de atividade dominantemente literária e mundana, que corresponde ao Segundo Reinado; o de formação empresarial, na República Velha; e a fase mais recente, marcada por oposições aparentes do tipo nacionalismo/dependência, populismo/autoritarismo, tanto quanto pelo uso intensivo da comunicação no controle social. (LAGE, 1982,
p. 29)

Datam do século XIX alguns dos jornais mais duradouros do Brasil: o Jornal do Comércio (1827), a Gazeta de Notícias (1874) no Rio de Janeiro, O Estado de São Paulo (1875) e o Jornal do Brasil (1891). Na virada do século XX o jornalismo brasileiro descobre a publicidade e a perspectiva empresarial. Começa uma nova reviravolta na história da imprensa brasileira:

[...] Os oito anos da ditadura Vargas trouxeram, além da liquidação do jornalismo político e da perda da qualidade da caricatura, uma intensa corrupção de jornais e jornalistas, com a Imprensa submetida ao controle do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda)
10. Após 1945, iniciou-se uma transformação marcada pela crescente influência norte-americana sobre a sociedade em geral e a imprensa em particular. (LAGE, 1982, p. 31)

O período seguinte também é marcado por mudanças nas empresas, e o surgimento de novos jornais. Um dos exemplos mais interessantes é o de Última Hora, fundado por Samuel Wainer na década de 50, marcado por um idealismo nacionalista.

A partir de 1964, a imprensa sofre com a censura do regime autoritário. A repressão sofrida afetou o conteúdo e os grandes jornais apostam em mudanças gráficas para se tornarem mais atraentes. As mudanças, segundo Lage, tiveram um alcance maior:

[...] No Brasil, projetou-se então na ideologia a distinção de classes de uma sociedade industrial antes mais ou menos ocultada pela presença populista: os jornais já não eram feitos para todos, mas para camadas do público. [...] Apesar de as tiragens não serem muito significativas, a publicidade, sobretudo institucional, tornou-se farta
nos jornais sobreviventes à forte concentração empresarial [...] (LAGE, 1982, p. 32)

O livro História da Folha de S. Paulo (1921 – 1981)
mostra que a Folha tem uma trajetória semelhante. Sua primeira edição circulou em 19 de fevereiro de 1921, com o nome Folha da Noite, e era um jornal vespertino, resultado de um projeto do qual participaram vários jornalistas oriundos da redação de O Estado de São Paulo. A idéia inicial era atingir um público leitor diferente do Estadão, por isso o horário vespertino e a definição como um “jornal popular”.

O jornal se consolida rapidamente e, em 1º de julho de 1925, o grupo lança a Folha da Manhã. Seus dois jornais mantinham uma linha oposicionista até que, em 1929 (após mudanças na sociedade da empresa), passam a ser governistas. Em 1945 há nova alteração na sociedade que passa a se chamar “Empresa Folha da Manhã S/A”, mantendo os dois títulos.

Mais um jornal é criado em 1º de julho de 1949: a Folha da Tarde. No dia 1º de janeiro de 1960 acontece a unificação dos três jornais com o nome de
Folha de S. Paulo — que passa a ter três edições diárias. O grupo Frias-Caldeira assume o controle da empresa em 1962. Em 19 de outubro de 1967, a Folha da Tarde volta a circular separadamente.


A M
ÍDIA DOS DONOS


A imprensa tem um papel enquanto representação de classe. Defende seus interesses e ataca os que contestam a hegemonia burguesa. Os meios de comunicação são usados nesse embate, independentemente dos princípios de liberdade e isenção que são defendidos em público.

Outro fator a ser analisado é a questão do poder. Muito além do fator de classe, os proprietários dos meios de comunicação querem e exigem participação no poder. Assim, interferem não apenas no embate ideológico, mas também na disputa política e no processo eleitoral. No texto “Mídia: Objeto e Fonte de Poder”, Carvalho (1999, p. 13) analisa a imprensa e as relações com o poder político:

[...] A compreensão do papel político da mídia no mundo contemporâneo e no Brasil envolve não apenas apresentar e denunciar a parcialidade da sua cobertura, mas identificar, de um lado, as forças que utilizam a mídia como um instrumento de poder e, de outro entender como a mídia se constituiu em um campo autônomo que tem crescente poder sobre os comportamentos e as decisões, inclusive políticas, das pessoas. Isto é, não apenas o
poder sobre ou na mídia, mas também o poder da mídia.

Kucinski
demonstrou como se dá esse processo. Os meios de comunicação de massa conseguem ter uma forte influência e poder de manipulação graças ao alto grau de analfabetismo e ao baixo poder aquisitivo da maioria da população. Para essas pessoas, a percepção da sociedade é a recebida, principalmente, do rádio e da televisão, mais do que de jornais e revistas.

[...] A TV é hegemônica na formatação do espaço público e dominada por uma empresa com forte vocação monopolística. Enquanto na maioria das democracias liberais avançadas a audiência de TV érepartida entre diversas redes, e suas programações têm de se ater ao princípio da neutralidade político-partidária, no Brasil, uma rede apenas, sob o comando da TV Globo, domina a audiência e promove os candidatos de preferência das
elites [...] [...] O rádio é o mais democrático meio de comunicação de massa no Brasil, o mais diversificado e heterogêneo. Mas a distribuição de sua propriedade tem papel decisivo na manutenção do clientelismo político e dos currais eleitorais em cidades médias e pequenas. (KUCINSKI, 1998, p. 16-17)

Existe um senso comum, uma generalização informal, sobre o que é a grande imprensa no Brasil: os jornais e revistas de circulação nacional, as redes nacionais de rádio e televisão. Alguns exemplos são os mais evidentes: as redes de TV
Globo, Sbt, Bandeirantes, Record, etc.; os jornais O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, O Globo, Jornal do Brasil, etc.; as revistasVeja, Isto é, Época, e outras. De formas diferentes, acabam sendo incluídos os veículos de comunicação com características estaduais ou regionais. Alguns exemplos: Rede Paranaense de Comunicação (jornal Gazeta do Povo, afiliadas da TV Globo no Paraná), Grupo Paulo Pimentel (emissoras de TV ligadas ao SBT no Paraná, jornal O Estado do Paraná), RBS (afiliadas da TV Globo no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, além do jornal Zero Hora, etc.). Em muitos casos, também entram na lista os veículos com abrangência municipal ou de uma região do estado, como a Folha de Londrina.

Essa idéia é comum, principalmente, entre os profissionais do jornalismo, políticos dos mais variados partidos, dirigentes sindicais e de movimentos populares, além de setores importantes de pesquisadores de universidades brasileiras.

São excluídos desse grupo os jornais e revistas considerados alternativos e as empresas estatais (como a
TV Cultura, de São Paulo). No caso dos veículos alternativos, há várias diferenças: alguns são ligados a partidos políticos (como a revista Teoria e Debate, do Partido dos Trabalhadores), outros a movimentos sociais (o jornal Brasil de Fato, ligado ao MST), além dos casos mais conhecidos como a revista Caros Amigos.

No caso da grande imprensa, não se faz distinção de audiência (emissoras de rádio e TV) nem de vendagem (jornais e revistas), ou mesmo de capacidade financeira. O mais importante é que as empresas que controlam os veículos de comunicação da chamada grande imprensa têm em comum a mesma ideologia. Uma parte significativa dos veículos é filiada a uma das entidades nacionais representativas de cada setor (ou de suas dissidências): a Associação Nacional dos Jornais — ANJ —, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão — ABERT — e a Associação Nacional dos Editores de Revistas — ANER —, o que reforça a questão ideológica.

[...] a mídia desempenha papel mais ideológico que informativo, mais voltado à disseminação de um consenso previamente acordado entre as elites em espaços reservados, e, em menor escala, à difusão de proposições de grupos de pressão empresariais. Essa função de controle é facilitada pelo monopólio da propriedade pelas elites e por uma cultura jornalística autoritária e acrítica. (KUCINSKI, 1998, p. 17)

O processo de “satanização” do MST pela mídia ocorre em todo o país. A chamada “grande imprensa” — cuja principal característica é estar a serviço da ordem burguesa — tem um discurso afinado, alinhado com os interesses do governo federal (gestão de Fernando Henrique Cardoso), cuja tônica é combater o MST. As práticas são visíveis: ênfase para as disputas e problemas internos do movimento, utilização de fotos para mostrar armas e “destruição”, o velho chavão de usar a expressão “invasão” em vez de “ocupação”. A propósito disso Gohn mostra que as atitudes da mídia são geradoras de violência:

[...] Resulta que, a partir de maio de 97, a mídia das grandes
empresas, ávidas por manchetes acirradas, voltou à posição anterior, de combate às ações do MST. As representações e as imagens boas foram se alterando segundo a conjuntura das relações do MST com o governo, e de problemas internos do próprio MST, que passaram a ser noticiados sistematicamente (tais como o distanciamento de um discurso libertário emancipador dos oprimidos e as práticas internas de algumas lideranças, tidas como rígidas, fechadas e autoritárias, segundo depoimentos dos próprios assentados). [...] Com isto, a posição dos principais órgãos da mídia deixou a ‘simpatia’ dos dias da marcha para o combate sistemático das ações do MST, divulgando apenas os problemas. (GOHN, 2000, p.147)

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra — MST — virou objeto de crítica, alvo, e, muito mais, um verdadeiro “inimigo” a ser combatido pela mídia. Isso não se dá por acaso. Os mesmos motivos que levaram vários estudiosos a analisarem o MST como fenômeno popular, também serviram de alerta às elites brasileiras. As reações da imprensa refletem esses sinais de alerta.”

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Fonte:
AYOUB HANNA AYOUB: “MÍDIA E MOVIMENTOS SOCIAIS: A SATANIZAÇÃO DO MST NA FOLHA DE SÃO PAULO” (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação, em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Orientador: Prof. Dr. Paulo Bassani). Universidade Estadual de Londrina. Londrina, 2006.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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