O ariano e o caboclo

“O nazismo e o integralismo compartilhavam o princípio da intolerância para com a diversidade étnica e cultural. Partiam da concepção de que o desenvolvimento de uma nação não deve prescindir da discussão sobre o “problema” racial. Ambas as doutrinas aceitavam o pressuposto da superioridade da raça e da cultura brancas em detrimento das demais etnias e grupos raciais. Acreditavam que o futuro de suas nações dependia da predominância da raça “superior” e do combate às etnias “inferiores”, consideradas um entrave ao livre desenvolvimento nacional.

No entanto, o fato de dividirem a mesma visão racial do mundo não impediu que o racismo se tornasse um dos fatores de conflito entre as duas ideologias. A forma distinta de operacionalizar o racismo era um importante marco divisório entre nazistas e integralistas, sendo, portanto, um aspecto que merece ser melhor analisado.

Em uma perspectiva comparativa, pode-se dizer que o racismo nazista baseia-se na segregação ou separação das etnias e culturas distintas, fazendo com que a homogeneização da população de uma nação seja alcançada por meio do princípio da pureza racial, nos moldes dos teóricos racistas europeus do século XIX, citados anteriormente. Estava em jogo a concepção de que a mistura racial levaria à degeneração, advindo dela uma população “inferior” racial e etnicamente, com tendências a comportamentos criminosos e pervertidos. As virtudes da “raça superior” não poderiam ser manchadas pelo sangue das “sub-raças”, o que só poderia ser evitado pela segregação das raças.

A base da identidade nacional alemã era a raça ariana, visto que o regime nazista somente considerava como alemães os arianos puros. Esta concepção de nação estava presente em todas as organizações e instituições pertencentes ao Reich alemão. O pressuposto de que a raça ariana era superior às demais raças levou à formulação de políticas segregacionistas e a intenções de exploração daqueles considerados “sub-humanos”, por pertencerem a outras etnias e culturas.

Entretanto, a política nazista em relação ao problema da raça não se limitou à condenação da miscigenação racial e à segregação dos povos inferiores. Para o nazismo, o futuro de uma Grande Alemanha dependia da eliminação de todos os entraves ao desenvolvimento nacional. Era preciso retirar do caminho dos alemães tudo aquilo que pudesse vir a “prejudicar” a livre manifestação das potencialidades da raça superior. Nesse sentido, os povos considerados inferiores precisavam ser eliminados fisicamente, pois se acreditava que possuíam uma “marca” irremovível, uma espécie de “defeito de fabricação” que os impedia de crescerem e evoluírem, impondo prejuízos à raça superior.

O nazismo calcava sua política racial na suposição de que as “leis da natureza” devem ser respeitadas; tais leis diziam respeito à luta das espécies, no sentido darwinista do termo: as espécies superiores devem suplantar as inferiores, para a evolução da humanidade. Arendt desenvolve esta questão, embora a utilize como base para sua tese de que o nazismo foi um regime totalitário. Segundo ela, os regimes totalitários recorrem a uma fonte de autoridade sobre-humana e exercem o poder, não em nome do interesse de um homem, mas em nome dos interesses de todos à execução do que supõe ser a lei da história ou da natureza: “A política totalitária afirma transformar a espécie humana em portadora ativa e inquebrantável de uma lei à qual os seres humanos somente passiva e relutantemente se submeteriam.”(Arendt, 1978:227)

Não irei discutir aqui a tese do totalitarismo de Arendt, pois está fora dos objetivos de meu trabalho. A importância da discussão da autora é a referência ao fato de o nazismo recorrer a algo que está fora do poder humano, algo que condiciona e até mesmo determina a política do Estado, legitimando as ações perpetradas contra as supostas “raças inferiores”. Se o extermínio é uma “lei natural”, então o racismo torna-se plenamente justificável ideologicamente, já que não seria mais do que uma obediência ao que a natureza determina.

O caso dos judeus foi o maior exemplo da aplicação da máxima das “leis naturais” pelo nazismo. Segundo Arendt, o judaísmo era considerado um “crime”, do qual os judeus poderiam se afastar pela conversão e assimilação à sociedade gentia. Porém, para o nazismo, a condição de judeu era um “vício”, do qual a pessoa não poderia se livrar por vontade própria.

“Para os judeus, a transformação do ‘crime’ do judaísmo no ‘vício’ elegante da condição de judeu era extremamente perigosa. Os judeus haviam podido escapar do judaísmo para a conversão; mas era impossível fugir da condição de judeu. Além disso, se um crime é punido com um castigo, um vício só pode ser exterminado.”
(Idem:127)

O caso do nazismo revela uma identidade nacional forjada com base no trinômio “um povo, um Estado, uma nação”, sendo a noção de “povo” relacionada a uma identidade racial homogênea, pura e superior. O povo “ariano” era a base para o Estado nacional e para a própria nação, ou seja, eram considerados parte da nação alemã somente os arianos puros e seus descendentes, os únicos portadores dos direitos outorgados pelo Estado nacional, embora seja importante enfatizar que alemães arianos também foram perseguidos pelo nazismo, desde que se encaixassem em outras categorias sociais consideradas prejudiciais ao projeto homogeneizador dos nazistas ou à saúde da nação alemã, como os homossexuais, os ciganos, as testemunhas de Jeová, os comunistas e os deficientes mentais.

As linhas mestras da política racial nazista já eram delineadas na obra escrita por Adolf Hitler, Mein Kampf. Alguns trechos desta obra demonstram claramente a presença do ideal darwinista, deslocado para o campo das raças. Um dos exemplos é o texto abaixo, em que Hitler critica a mistura racial que estaria ocorrendo na França: “Se a evolução da França se prolongar por mais uns trezentos anos no estilo atual, os últimos restos de sangue franco desaparecerão no Estado mulato africano-europeu que se vem constituindo; um imenso território de população autônoma, estendendo-se do Reno até o Congo, repleto da raça inferior que se forma lentamente sob a influência de uma miscigenação prolongada.” (Apud Ambelain, 1995:174/175)

Para Hitler, a França era um exemplo de decadência em virtude da influência das “raças inferiores” no sangue dos franceses, principalmente os judeus, representando uma ameaça para a raça branca: “(...) a França é e continuará sendo o maior inimigo que devemos temer. Esse povo, que vem caindo cada vez mais no nível dos negros, põe em perigo, secretamente, a existência da raça branca na Europa, graças ao apoio que dá aos judeus para alcançarem seu objetivo de dominação universal. O papel que a França, atiçada por sua sede de vingança e sistematicamente guiada pelos judeus, desempenha hoje na Europa representa um pecado contra a existência da humanidade branca, e acabará desencadeando contra esse povo todos os espíritos vingativos de uma geração que tiver reconhecido na poluição das raças o pecado hereditário da humanidade
.” (Idem:174)

A luta de raças era, para Hitler, uma forma de assegurar à civilização “superior” o domínio mundial, subjugando as raças “inferiores” e impedindo a propagação da decadência racial proveniente da miscigenação: “A miscigenação com uma raça inferior faria desaparecer principalmente as energias civilizadoras, mesmo se o povo proveniente dessa mistura falasse mil vezes a língua da antiga raça superior. A paz, não uma paz assegurada por ramos de oliveira sacudidos por mulheres chorosas e pacifistas, e sim uma paz garantida pela espada vitoriosa de um povo de senhores, que ponham o mundo inteiro a serviço de uma civilização superior.” (Ibidem:176)

A vitória da raça “superior” era justificada como uma “necessidade”, um “benefício” para a humanidade, que precisaria das qualidades de tal raça para resolver problemas futuros que se abateriam sobre os homens: “Todos nós concebemos que, num futuro longínquo, os homens enfrentarão problemas que só poderão ser resolvidos por um povo de senhores da raça mais elevada, que disponham de todos os meios e de todos os recursos do mundo inteiro.” (Idem:176)

O uso da força era visto como um “direito” da raça “superior” de lutar por sua supremacia. A nação alemã, portanto, deveria utilizar a violência necessária em nome da salvaguarda de seu lugar no mundo: “O homem cresceu numa luta constante, e a paz eterna o levaria para o túmulo. O que a suavidade não consegue, cabe ao punhal conquistar. Os golpes mais cruéis eram os mais humanos, pois representavam a condição de uma vitória mais rápida, e ajudavam a assegurar à nação alemã dignidade e liberdade.” (Idem:176)

Caberia ao Estado alemão a preservação da raça ariana, assegurando aos alemães a pureza de seu sangue, evitando qualquer contaminação que prejudicasse as qualidades “superiores” da raça: “O Reich, enquanto Estado deve abranger todos os alemães e assumir a tarefa não apenas de reunir e conservar as preciosas reservas que esse povo possui nos elementos primitivos de sua raça, mas também de fazer com que ele alcance, lenta e seguramente, uma situação predominante. O homem só tem um direito sagrado, e esse direito é ao mesmo tempo o mais sagrado dos deveres. Trata-se de cuidar para que seu sangue permaneça puro, e para que a preservação do que existe de melhor na humanidade possibilite um desenvolvimento mais perfeito daqueles seres privilegiados (...) Ao nos unirmos constantemente com outras raças, conseguimos elevá-las a um grau superior de civilização, mas acabamos caindo para sempre do topo que havíamos atingido.” (Idem:176)

Hitler tornou-se mais convicto ainda de suas idéias, quando residia em Viena, na Áustria, onde a convivência de várias nacionalidades o levava a enxergar um sinal de decadência da cultura alemã: “Minha profunda aversão para com o Estado dos Habsburgo (Áustria) aumentava sem parar. (...) Quanto mais eu vivia naquela cidade (Viena), mais aumentava o meu ódio contra essa mistura de povos estrangeiros que começava a destruir o antigo centro de cultura alemã.” (Idem:178)

A teoria darwinista da luta das espécies parecia, para Hitler, perfeitamente adaptável para as sociedades humanas, que também estariam sujeitas às leis da natureza, segundo a qual os fortes vencem os fracos em nome da preservação de sua própria natureza: “O mais forte deve reinar e não se amalgamar ao mais fraco, o que seria o mesmo que sacrificar sua própria grandeza. (...) Uma geração mais forte eliminará os fracos, o ímpeto vital cortará os laços ridículos de uma suposta humanidade imaginada pelo indivíduo, para dar lugar à humanidade da natureza, que exterminará os fracos em proveito dos fortes. (...) O Todo-Poderoso permite a destruição dos fracos, e deseja assim nossa vitória.” (Idem:179)

A evolução e o progresso social e cultural estariam estritamente ligados à manutenção da pureza racial. A cultura alemã seria superior porque soube evitar os intercursos sanguíneos com culturas e sangues “inferiores”: “Todo objetivo atingido pelo homem deve-se à sua originalidade e à sua brutalidade. Tudo o que o homem possui hoje no campo da cultura é a cultura da raça ariana. É preciso voltar ao conceito da luta e da pureza do sangue. O que não pertence à raça pura nesse mundo não vale nada. (...) As misturas de sangue e o conseqüente rebaixamento racial constituem a única causa do desaparecimento de todas as culturas, pois os homens não perecem por causa das guerras perdidas, e sim por causa da perda da resistência que só pertence ao sangue puro (...) raça ariana é obviamente a detentora de toda cultura, a verdadeira representante da humanidade. Nossa ciência industrial é inteiramente obra dos nórdicos. Todos os grandes compositores são arianos, de Beethoven a Richard Wagner, mesmo quando nasceram na França ou na Itália; se tirarmos os germânicos nórdicos, restará apenas a dança dos macacos”. (Idem:179)

Hitler chegou a visualizar uma nova ordem social, sob a supremacia da raça ariana, em que haveria uma rígida hierarquização dos indivíduos em diversos grupos sociais, sendo o nível mais baixo formado pelos chamados “estrangeiros”, ou seja, os povos e etnias não pertencentes à raça ariana, que seriam submetidos à escravização:

Qual será o aspecto da futura ordem social, camaradas, vou lhes dizer. Haverá uma classe de senhores, proveniente dos elementos mais diversos, e que será recrutada na luta e encontrará assim sua justificativa histórica. Haverá a multidão dos membros do partido, classificados hierarquicamente. São eles que formarão as novas classes médias. Haverá também a grande multidão anônima, a coletividade dos servidos, dos “menores” ad aeternum. Pouco importa, para a nova sociedade burguesa, que eles tenham sido proprietários de imóveis, trabalhadores ou simples serventes. (...) Mais abaixo, a classe dos estrangeiros conquistados, daqueles que chamaremos de ‘escravos modernos’”. (Idem:179/180)

Em janeiro de 1937, Himmler fez uma declaração estabelecendo as linhas da política do III Reich para os anos vindouros, quando o extermínio dos povos “inferiores” faria parte das ações de preservação da raça germânica: “Os anos que irão decorrer não têm como objeto discussões de política externa suscetíveis de serem conduzidas pela Alemanha. Significam a luta pelo extermínio dos sub-homens do mundo inteiro reunidos contra a Alemanha, núcleo da raça germânica, contra a Alemanha detentora da cultura do gênero humano. Significam o ser ou o não-ser do homem branco, de que somos o povo dirigente. Temos uma certeza: a felicidade de viver justamente nesse momento, que acontece uma vez a cada dois mil anos, momento esse que viu nascer Adolf Hitler.”
(Idem:45)

A preocupação com a pureza racial e a aversão à miscigenação fazia com que o Reich nazista mantivesse constante vigilância para que os filiados ao partido nazista fossem exclusivamente de sangue ariano. Esta exigência estendia-se a todas as instituições e organizações alemãs, inclusive aquelas localizadas em outros países. No Brasil, uma delas era a “Aliança dos Combatentes Alemães da Grande Guerra”, também conhecida pela denominação corrente de “Stahlhelm” – Capacetes de Aço, sediada no Rio de Janeiro e formada por cidadãos de nacionalidade germânica, que haviam emigrado para o Brasil após terem participado da primeira guerra mundial.

Hans Albrecht, diretor da referida organização, ordenou que cada sócio fizesse uma pequena árvore genealógica a fim de estar certo de sua descendência ariana pura. Nos Estatutos da entidade, a sua finalidade é, dentre outras, “o fortalecimento do amor e da fidelidade à Pátria, ao Povo Alemão, ao seu Führer; o cultivo do espírito nacionalista dos camaradas (...)”. Os Estatutos estabelecem ainda que deveriam pertencer à “União dos Guerreiros Alemães” todos os indivíduos de origem alemã ariana, que tenham pertencido a qualquer unidade militar. Ainda segundo os Estatutos, na cláusula de admissão e proveito do sócio, são passíveis de exclusão da organização, dentre outros, “
quem não for de descendência ariana pura ou casado com judia".

A intolerância nazista refletiu-se na disposição de liquidar com todos os que estariam “racialmente” predestinados a cometer certos crimes; os povos “inferiores” estariam submetidos à fatalidade da genética; não poderiam ser “melhorados” ou “aperfeiçoados”, pois nunca deixariam de ser o que eram.

No caso dos judeus, os nazistas acreditavam que, em virtude de suas características raciais inatas, estavam fadados a detestar o “superior povo ariano-germânico” e a destruí-lo. (Elias, 1997:277) A perseguição aos judeus teve três fases: a fase da discriminação, a da segregação e a do extermínio. A primeira foi legalizada pela Leis de Nuremberg, denominada de “Lei para a Proteção do Sangue e da Honra Alemães”, de 15 de setembro de 1935. Dentre outras coisas, as Leis de Nuremberg proibiam os casamentos entre judeus e alemães, assim como proibiam os judeus de terem cidadãos alemães como criados em suas casas. (Abraham, 1976:26) Os judeus também eram forçados a usar a estrela de Davi como forma de serem reconhecidos publicamente, bem como eram obrigados a mudar de calçada, caso encontrassem com um alemão em seu caminho. A segunda fase foi representada pela construção dos guetos – que eram ruas ou bairros destinados, por discriminação racial, à segregação dos judeus. Dentre os guetos construídos pelos nazistas, estavam o de Lodz – o primeiro gueto oficial, criado em novembro de 1939, após a invasão nazista na cidade de Lodz – e o de Varsóvia – criado em 16 de outubro de 1939 por um decreto do governador do Distrito de Varsóvia, Dr. Ludwig Fischer. (Idem:61 e 67)

A terceira fase foi o extermínio, com a criação de vários campos de concentração, verdadeiras fábricas da morte. Os principais campos de extermínio nazista eram Chelmno, Treblinka, Sobibor e o mais famoso, Auschwitz-Birkenau, todos construídos em território polonês. (Ibidem:91)

A racionalização e a burocratização do processo de extermínio levado a cabo pelos nazistas levaram historiadores a contestarem a idéia de que a ascensão do nazismo representou um parêntesis na civilização européia. O genocídio em nome de uma nação era visto como incompatível com os padrões das sociedades altamente desenvolvidas, acreditando-se que as sociedades do século XX possuíam um padrão de civilização e racionalidade que impedem formas de barbarismo, presentes em sociedades menos desenvolvidas. (Elias op. cit:270)

Uma das correntes de interpretação do fenômeno nazista, denominada de tese da “doença moral”, aponta para essa direção. Nesta corrente, enquadram-se diversos autores que tentam explicar o nazi-fascismo como um fenômeno que desafiou os valores morais tradicionais da Europa, entre eles, a razão como guia das ações individuais e políticas e o desejo pela liberdade. Entre seus principais defensores se encontram Benedeto Croce (na Itália) e Friedrich Meinecke (na Alemanha).

Segundo Croce, o fascismo teria sido simplesmente uma “perda de consciência”, uma “depressão cívica” e uma “embriaguez” provocadas pela guerra. Este estado de embriaguez não teria ocorrido somente na Itália, mas em todos os países que participaram da primeira guerra mundial. O fascismo, segundo ele, não foi apoiado por nenhuma classe social, tendo sido apenas um “parêntesis” na história, um período onde a “consciência da liberdade” estava em baixa. (Apud Felice, 1976: , 35)

A simplicidade da análise de Croce consiste em que ele não considera os condicionamentos políticos e econômicos do período de surgimento do fascismo e ao colocar o fenômeno como sendo um “parêntesis” na história, não o considera como parte dela, e sim como algo inexplicável do ponto de vista histórico.

A visão de Meinecke já é um pouco mais elaborada. Segundo ele, o nazi-fascismo teria significado um desvio na linha evolutiva pela qual a Europa vinha se desenvolvendo até então. Nesse sentido, Meinecke faz referência a Jacob Burckardt, segundo o qual, o germe do nazi-fascismo tem que ser buscado no otimismo do século das luzes e na revolução francesa, pois estes acontecimentos foram acompanhados pela aspiração e busca pela felicidade das massas, algo impossível de ser alcançado. As expectativas que tais acontecimentos trouxeram teriam gerado a vontade de poder e a necessidade geral de prazer. A revolução francesa, ao mobilizar as massas, teria contribuído para a frustração posterior consubstanciada nas dificuldades econômicas geradas pela crise do pós-guerra, trazendo, portanto, a crise moral, que teria também sido conseqüência da revolução industrial. (Apud idem:37)

A crise moral teria atingido a juventude que havia lutado na guerra e a que nascera sob a influência da paz de Versalhes. Do ponto de vista material, esta juventude aspirava por melhores condições de vida e no lado espiritual, esperava por ideais pelos quais valesse a pena lutar. No entanto, nada disso teria sido oferecido pela república de Weimar. Além disso, Meinecke se refere ao fortalecimento de princípios e homens que teriam levado as massas à obediência e à disciplina, com a conseqüente renúncia da liberdade em nome da felicidade. Dessa forma, teria havido uma perturbação do equilíbrio psíquico entre as forças racionais e as irracionais, com o predomínio destas últimas no processo de busca de ideais, poder e melhores condições de vida. O maquiavelismo das massas resumiria esta situação, sacrificando os valores morais pelo poder a todo custo. (Idem:37)

O ideal maquiavélico das massas é citado mais plenamente por Ritter, segundo o qual, o nazi-fascismo teria rompido com o quadro ético que dominava a relação entre a moral e o poder, tendo revelado uma profunda crise moral concretizada na busca desesperada de bem-estar material: “Na esfera da política, já não reina ética alguma de amor, mas apenas a moral própria de uma luta que já não respeita nada...Consciência moral e consciência política confundem-se indistinguivelmente numa só. Daí nasce a terrível confusão de espírito pelo qual o sucesso de uma política estrangeira de força se confunde com o direito moral, o fanatismo cego de vontade de poder se confunde com a razão de Estado e energia criativa e se perde todo e qualquer critério moral para julgar a ação política...”
(Apud ibidem:40)

Hans Kohn, por sua vez, percebe a existência da crise moral no crescente descrédito por que passavam os valores da civilização ocidental secular. Esta se pautava pela razão e colocava o homem como o centro, de forma que este não se esforçava mais em definir o que é Deus e seus atributos, e nem tampouco em interpretar a Bíblia. A razão e a ciência passaram a ser os guias reais do homem na terra e se fortalecia cada vez mais a idéia de que o homem é o centro de tudo e que possui o direito e o poder de organizar o mundo de acordo com seus desejos, na busca da vida, da liberdade e da felicidade. Nessa sociedade racional e secular, as disputas podiam ser resolvidas sem a necessidade do recurso à força, pois o que guiava o homem era a razão e a tolerância individual. (Kohn, 1960:57)

Esta sociedade racional, fundada nos princípios liberais, parecia trazer o progresso, de forma que a geração do início deste século não conseguiu visualizar as conseqüências futuras de algumas tendências que já podiam ser percebidas no fim do século XIX e que se tornaram dominantes em regiões da Europa central e oriental, a saber: o culto da força e o apelo aos mitos, em lugar da discussão racional. De acordo com Kohn, foi a partir da primeira guerra que tais tendências se tornaram mais fortes, ocorrendo então uma mudança significativa nos valores morais até então aceitos: a liquidação dos inimigos e o uso da força passaram a ser legítimos e a guerra teria contribuído fortemente para esse fim. (Idem:58 e 59)

Kohn percebe claramente o centro da crise moral na rejeição do liberalismo individualista ocidental; este teria fornecido ao homem a liberdade e a dignidade, que foram perdidas a partir do momento em que se começou a pregar a vitória e a superioridade de um Estado organizado que desrespeitava os princípios liberais. A luta pelo poder parecia se tornar inerente à política dos Estados, e em tal situação, o indivíduo deixava de ser o centro da sociedade, para ser nada mais que um instrumento do processo histórico ou da máquina da natureza. O fato é que , para Kohn, após a catástrofe da primeira guerra, a situação em que encontravam as massas fez com que se tornassem impacientes, levando-as a um descrédito em relação à razão, ao compromisso e ao progresso lento. (Idem:85)

Análises mais recentes criticam a tese da “doença moral” e percebem o fenômeno nazi-fascista como inserido na civilização, sendo seu produto direto. Ao analisarem o holocausto nazista, por exemplo, atestam para o caráter moderno de sua execução. Elias (op. cit:271), um dos primeiros autores a enfatizarem o caráter racional do holocausto, afirma que tal acontecimento deve ser visto como resultante de tendências inerentes à estrutura das modernas sociedades industriais. É preciso, segundo ele, investigar as condições sociais das civilizações do século XX, que propiciaram o genocídio e poderiam favorecê-lo novamente no futuro.

Posteriormente, Bauman retoma a discussão, pois para ele a visão de que os perpetradores do holocausto foram uma ferida ou uma doença de nossa civilização – e não seu produto – resulta não apenas no conforto moral da auto-absolvição, mas também na terrível ameaça do desarmamento político e moral: “Tudo aconteceu lá, em outra época, outro país. Quanto mais culpáveis forem eles, mais seguros estaremos nós e menos teremos que fazer para defender essa segurança. Uma vez que a atribuição de culpa for considerada equivalente à identificação das causas, a inocência e sanidade do modo de vida de que tanto nos orgulhamos não precisam ser colocadas em dúvida”. (Bauman, 1998:14)

No entanto, o extermínio nazista estava totalmente imbuído de características modernas, que são parte integrante da civilização ocidental. De acordo com Bauman:

“Para os planejadores nazistas da sociedade perfeita, o projeto que perseguiam e estavam decididos a realizar através da engenharia social divida a vida humana em útil e inútil, com ou sem valor, aquela amorosamente cultivada e receber espaço vital, a outra a ser afastada ou exterminada (...) Os judeus constituíam caso essencialmente similar. Não eram uma raça como as outras; eram uma anti-raça, uma raça que minava e envenenava todas as outras, que solapava não apenas a identidade de qualquer raça em particular, mas a própria ordem racial. Assim, o isolamento dos judeus só podia ser um paliativo, um estágio no caminho para a meta final. A questão possivelmente não seria resolvida com a simples extirpação dos judeus da Alemanha. Mesmo vivendo bem longe das fronteiras alemãs, os judeus continuariam a produzir erosão e desintegração da lógica natural do universo. Ao ordenar a suas tropas que lutassem pela supremacia da raça alemã, Hitler acreditava que a guerra que ele desencadeava travava-se em nome de todas as raças, era em suma um serviço que prestava à humanidade racialmente organizada. Nessa concepção de engenharia social como obra cientificamente fundada com vistas à instituição de uma nova e melhor ordem, o racismo refletia de fato a visão de mundo e a prática da modernidade”
. (Idem:90-91)

A modernidade do holocausto também estava presente na forma como foi executado. O assassinato em série de milhares de judeus e outras minorias nos campos de extermínio foi realizado por meio de instrumentos racionais usados em qualquer produção industrial: constituição de uma vasta burocracia para tratar do planejamento e execução de todo o processo, divisão extensa do trabalho e uso de tecnologias que propiciaram a morte do maior número possível de pessoas em menos tempo. (Ibidem:112)

De uma forma geral, considera-se como marco inicial da decisão da chamada “solução final”, uma conferência realizada em Wansee, subúrbio a sudoeste de Berlim, que reuniu, no dia 20 de janeiro de 1942, cerca de 15 altos funcionários do Reich. Apesar do uso do eufemístico termo “evacuação”, a ata do “Protocolo de Wansee” continha um plano de genocídio, formulado em linguagem burocrática. No entanto, segundo Roseman, o Protocolo é um documento profundamente misterioso; aparentemente representa o momento em que os nazistas decidiram eliminar os judeus. Mas, os historiadores vêm afirmando suas suspeitas em relação a essa afirmação, pois, em primeiro lugar, Hitler não estava na conferência e os presentes não teriam importância suficiente para decidir sobre o genocídio; e em segundo lugar, o assassinato em massa de judeus já vinha ocorrendo antes, desde o início de dezembro de 1941, quando judeus foram mortos com gás em Chelmno, assim como o campo de extermínio de Belzec já estava em construção. (Roseman, 2003:7 e 8)

A diferença e ntre o racismo nazista e o racismo integralista é que o primeiro defendia o princípio da raça pura, ou seja, a raça branca, considerada superior, não poderia se misturar com as “raças inferiores”, sob pena de se degenerar. A idéia de pureza do sangue ariano abriu caminho para políticas de segregação e extermínio físico dos grupos raciais considerados “inferiores”. O segundo defende a miscigenação, como forma de “eliminar” os “defeitos” das raças inferiores, associando-se à teoria racista do branqueamento.

Outro ponto diferencial era a forma de legitimação do discurso racista. O nazismo buscava dar legitimidade à sua postura racista com base na idéia de “leis naturais”, ou seja, de uma certa forma, havia um conteúdo racional no discurso nazista; não se tratava de ética ou moral, mas de “leis” que independem da vontade humana. É claro que a campanha contra os judeus e outros inimigos da nação alemã também tinha um caráter moral, pois os nazistas se colocavam como representantes do “bem” contra o “mal” que meaçava a Alemanha. Porém, o que de fato dava legitimidade ao discurso era a pressuposição de que o “mal” poderia ser cientificamente reconhecido – de acordo com as teorias racistas do século XIX – e combatido, com base nas “leis de evolução da espécie”.

Já a idéia integralista de branqueamento aparece como uma proposta de comunhão cristã, adquirindo um caráter moral e ético. Como exemplo, Salgado diz que no período da colonização portuguesa no Brasil teria surgido um substrato espiritualista, o “caboclo”, que seria a raça peculiar brasileira, originada da fusão racial entre índios, negros e brancos. Esta “democracia racial”, marcada pelo intercâmbio entre raças distintas, seria uma prova de que a sociedade colonial possuía características espiritualistas e democráticas, apesar da escravidão. O “caboclo” seria a expressão do nosso caráter nacional espiritualista, definido pela ausência de preconceitos e pela presença do sentido “igualitário”.(Cruz, op. cit:98-99)

Para Salgado, a figura do caboclo garante a unidade nacional brasileira, pois as diferenças que dividem o país (regionais, climáticas e econômicas) seriam superadas pela afirmação de nossa absoluta identidade racial. O pertencimento a um mesmo sangue implicaria a adesão a um mesmo quadro de sentimentos e valores. (Maio, 1992:83)

O caboclo afirmava-se então como um representante da união cristã das raças, sendo uma síntese de todas as etnias que se cruzaram, formando um único sangue, garantindo a identidade da nação. Assim, ao contrário do nazismo, o sangue único seria alcançado por meio da mistura racial, branqueando-se a população.

A “moralização” do discurso racista permitiu que o integralismo se opusesse ao exclusivismo e à segregação racial, como era o caso do nazismo. Os integralistas defendiam a integração e a união entre as raças, implicando em uma certa rejeição das teorias racistas que pregam o exclusivismo de uma raça em detrimento de outras. Dessa forma, Salgado (1936:3-5) afirmava que o movimento integralista era brasileiro e se contrapunha ao racismo nazista: “Não sustentamos preconceitos de raça (...) Em relação ao judeu, não nutrimos contra essa raça nenhuma prevenção.” Já Reale (1936:5) enfatizava que um dos aspectos que a AIB deveria rejeitar no nazi-fascismo europeu era o racismo, que ele considerava uma dimensão local do nacionalismo alemão. O integralista Galvão Castro, por sua vez, dizia que:

“O integralismo sempre foi antinazista, porque combate o racismo exclusivista
e o imperialismo conquistador, tanto do pangermanismo, como do pan-eslavismo, ou ainda de qualquer outro povo imbuído do nefasto preconceito de superioridade racial (...) A pátria que o integralismo admira, ama e venera (...) é o complexo étnico-cultural que constitui a alma multissecular da Nação Brasileira.” (Castro, 1960:14 e 21)

No entanto, “Arianizar” ou “caboclizar” tinham ambos o propósito de garantir a predominância da raça branca, com seus valores e cultura. O meio de se alcançar este propósito comum é o que distinguia o racismo nazista do racismo integralista. Enquanto o primeiro via a mistura racial como um fator de degeneração, o segundo enxergava no método “depurativo” da miscigenação uma forma de “limpar” o sangue negro e indígena da nação brasileira, sob a égide da comunhão cristã.

É importante enfatizar, contudo, que as divergências acerca da questão racial não impediam o integralismo de publicar na imprensa integralista textos nazistas, tendo o racismo como um dos temas abordados. A revista Anauê!, por exemplo, divulgou um texto escrito por Alfred Rosemberg, Chefe da Repartição de Política Exterior do Partido Nacional-Socialista, intitulado “Cultura e Civilização”, no qual é possível encontrar o seguinte discurso:
“O pensamento legítimo do nacional-socialismo sobre a raça está baseado na ligação do povo com a pátria, ou como diz a sua senha: sangue e solo. Ele não se dirige envaidecido ou hostilmente contra um povo estranho, mas quer apenas eliminar do seu povo as influências não alemãs que possam ativar sobre a vida social e cultural da sua pátria.”

Em contraste com o trecho supracitado, uma das importantes manifestações da intolerância racial e cultural do integralismo era o antigermanismo que, junto com o anti-semitismo, era um exemplo da ideologia homogeneizadora da nação brasileira, advogada pelos integralistas.”

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Fonte:
NATALIA DOS REIS CRUZ: “O INTEGRALISMO E A QUESTÃO RACIAL. A INTOLERÂNCIA COMO PRINCÍPIO”. (Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor. Área de Concentração: História Política. Orientador: Profa Dr.a Márcia Motta). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2004.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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