IMAGEM: MUSEO DI STORIA DELLA MEDICINA E DELLA SALUTE IN PADOVA
"O corpo humano contém sangue (...), isto é humor viscoso, bílis amarela e bílis negra. São estes elementos que o constituem e são causa dos males ou da saúde. A saúde é, em primeiro lugar, o estado em que estassubstância constituintes estão numaproporção correta de uma em relação à outra tanto em força com em quantidade, estando bem misturadas. A doença aparece quando uma destas substâncias é ou deficitária, ou excedentária ou se encontra separada no corpo e não misturada com as outras.” - (Hipócrates)
"A compreensão dos fenômenos patológicos na Idade Média provém da teoria dos humores, instituída na Grécia por Hipócrates e seus discípulos da escola de Cós. O corpus hipocrático, sistematizado por Galeno, deu forma definitiva à concepção de que o organismo seria composto de um certo número de líquidos ou humores que, em proporção equilibrada, garantiria a saúde. A teoria hipocrática levou à fisiologia o princípio de que a natureza (physis) se constituiria a partir dos quatro elementos básicos: ar, água, terra e fogo. Os humores, também em número de quatro, resultavam da mistura em proporções diversas destes elementos primários, tendo cada um o centro regulador da sua dinâmica e para ele seria atraído: o sangue, para o coração; a pituíta, para a cabeça; a bile, para o fígado; a atrabile, para o baço. Aos humores associavam-se ainda quatro qualidades, “de tal forma que o sangue era quente e úmido; a pituíta, fria e úmida; a bile amarela, quente e seca; e a bile negra, fria e seca.”
A medicina grega reputava ao meio ambiente um papel fundamental no equilíbrio do corpo humano, destacando a importância de considerar as estações, os climas, os ventos, as propriedades das águas e outras influências naturais na ocorrência de doenças. Na racionalidade hipocrática, a doença seria um desequilíbrio dos quatro humores que comporiam o corpo, uma reação com intenção terapêutica para obter novo equilíbrio. Logo, encarada como uma perturbação do equilíbrio e harmonia da physis, a doença representaria uma totalidade e faria parte da própria natureza do homem, não apenas não se localizaria em alguma parte, como não se constituiria a partir de uma ameaça externa.
Hipócrates não teve ocasião de fundar uma patogênese humoral da lepra, doença então desconhecida na Grécia. Foi somente no século IV que Oribase de Pergame afirmou que a elefantíase derivava de um excesso de ‘atrabile’ para anular o humor oposto, o sangue. Dois séculos antes, Galeano já explicara que a lepra era uma doença freqüente em Alexandria em razão do clima e dos hábitos alimentares, o que produzia igualmente uma onda de atrabile. Da mesma forma, esta concepção da lepra como decorrente da atrabile ou da melancolia foi reafirmada em tratados médicos em língua árabe, que eram rapidamente traduzidos na Europa.
A tradução para o latim destes tratados árabes, ou a versão árabe das obras gregas, ocorreu entre os séculos X e XIII, período em que renasceram os estudos médicos no Ocidente e os europeus entraram em contato com o pensamento médico estruturado. Se a medicina ocidental extraiu o essencial da etiologia, clínica e terapêutica da lepra das obras árabes, também incorporou ajustes e novas proposições para a origem da doença. Ao mesmo tempo, nesta época surgiram novos centros de estudos médicos na Europa e a hipótese das causas humorais da doença gradualmente ganha complexidade, os trabalhos que antes se limitavam a considerar os prejuízos da atrabile natural no organismo incorporam novas teorias para a causa da lepra, como por exemplo, a combustão da bile ou a disfunção do fígado na produção do sangue.
É importante ressaltar que o conceito de lepra foi formatado pela medicina medieval através de uma tradição cultural complexa, em que se combinava a tradução de antigos textos médicos à Bíblia, acrescidos ainda de adaptações que acumulavam inúmeras distorções. Os deslizamentos semânticos e os diferentes significados da lepra, seus derivados e correlatos, não parecem ter sido uma preocupação dos médicos ou teólogos medievais, eles não colocavam em questão a identidade da lepra. Françoise Bériac chama atenção que, a partir do século XII, lepra e a morféia foram objeto de capítulos distintos e nem sempre vizinhos nos tratados médicos europeus. A lepra é herdeira da elefantíase greco-latina e da judham dos árabes, a morféia é legatária da lepra greco-latina, e isto via a al’baras dos árabes. Assim, ao mesmo tempo em que a medicina européia recebia do mundo mulçumano uma consciência aguda do polimorfismo da lepra, idéia relativamente estrangeira nas obras antigas, herdava também reflexões sobre as diferenças e analogias entre lepra e outras afecções dermatológicas.
Como vemos, a medicina medieval associaria a etiologia da lepra a uma diversidade de fatores, num complexo quadro de causas que incluía alimentação, clima, topografia e predisposição. A constituição do indivíduo, mais melancólica ou fleumática, tornava-o mais receptivo à doença, favorecendo ainda o contágio. A dietética também exercia um importante papel na etiologia das doenças, muitos textos médicos imputavam ao uso de determinados alimentos certas características capazes de provocar o desequilíbrio dos humores. Os alimentos tornavam-se perigosos para o consumo ao serem rotulados como melancólicos, coléricos ou os fleumáticos, de acordo com a qualidade dos elementos básicos. Seguindo ainda a tradição hipocrática-galênica, o clima desempenhava uma ação determinante na saúde e, associado à topografia, seria capaz de explicar o acometimento do indivíduo ou de uma coletividade. Além do clima havia também certos tipos de trabalhos que expunham o organismo a situações de risco, como aqueles que exigiam uma proximidade com o fogo, o que favoreceria o desenvolvimento da lepra.
Mas a corrupção do organismo também poderia se dar pelo ar que cerca o doente que, quando inalado pelas pessoas sãs, as contaminaria. De Constantino Africano (1020-1087), que evocava a fumaça maligna que sai do corpo do leproso, a Guillaume de Salicet (1210-1277) e Arnaud de Villeneuve (1245-1313), que acreditavam que a respiração do leproso causaria o contágio, os textos médicos medievais evocavam a forma aérea de contágio como uma das causas da lepra. Se a respiração do leproso contaminava o ambiente, o temor das emanações deletérias provenientes das leprosarias ou da aglomeração de leprosos pedintes, foi capaz de alimentar incessantemente o imaginário do período produzindo, verdadeiramente, uma sociedade de excluídos.
Se o desequilíbrio dos humores poderia ser provocado por fatores externos ou secundários, geralmente identificados nos tratados médicos medievais pela corrupção do ar ou a ingestão de alimentos contaminados, a causa da lepra também esteve associada à infecção congênita ou à transmissão sexual. Doença ao mesmo tempo contagiosa e hereditária, a idéia da infecção in útero se manifestou cedo no Ocidente latino, sendo reforçada pelas traduções de obras árabes que se referiam à corrupção do esperma dos leprosos e à herança da doença. Esta hipótese foi de fácil adoção na Europa medieval, onde encontrou um terreno favorável no tema antigo da lubricidade dos leprosos e no hábito de vê-los na Escritura Santa como a alegoria de diversos pecadores, em especial os luxuriosos. Esta noção da lepra como uma doença hereditária girava em torno dos excessos sexuais, como por exemplo, os relatados durante o período menstrual e a gravidez, reforçando a impureza menstrual das mulheres e as proibições determinadas pelo texto bíblico.
No caso da idéia da infecção ab uterum, apesar de uma origem mais remota, sua introdução seria mais recente na Europa. Françoise Bériac identifica esta hipótese claramente formulada na Índia e transmitida à medicina ocidental pela tradução dos tratados árabes, tornando-se bastante conhecida, mesmo fora dos círculos médicos, desde o século XIII. As considerações medievais sobre a transmissão venérea da lepra foram por longo tempo rejeitadas como fantasiosas, tomadas como argumento essencial de uma confusão entre lepra e sífilis, o novo mal que se disseminara na Europa de forma epidêmica nos últimos anos do século XV. A crença na corrupção do esperma dos leprosos forneceu um abundante substrato científico à teoria venérea, bem como o apetite sexual excessivo atribuído, nos textos médicos, aos leprosos. A infecção ab uterum poderia ainda se dar de inúmeras formas, incluindo a concepção durante as menstruações, por ser filho de pais leprosos ou pelo contato sexual entre a mulher grávida e um leproso.
Mesmo de introdução mais tardia na Europa, a hipótese venérea encontrou ressonância no imaginário cristão da lepra, que congregava elementos como o pecado e a luxúria. A contaminação venérea e a hereditariedade da lepra seriam a punição para os excessos sexuais dos leprosos, a corrupção do corpo era tomada como distintivo da transgressão moral. O castigo pela lascívia foi uma das explicações mais recorrentes para a lepra, o contágio através do ato sexual era a materialidade do vício e da tendência aos excessos da luxúria. A devassidão sexual justificava não só acometimento da doença, como também o isolamento do leproso, reforçando ainda a crença em sua hereditariedade. Na hipótese venérea a lepra se configurava como uma doença física, mas também moral, associando à tradição religiosa à medicina medieval. E, finalmente, aos olhos dos cristãos, a lepra, como qualquer outra enfermidade ou doença grave, manifestava nas crianças a luxúria dos pais, o que tornava transmissões venéreas e hereditárias causas complementares para o acometimento da lepra.
A partir do século XII, momento onde a figura do pobre lázaro se torna familiar ao espírito dos cristãos, podemos observar um duplo movimento: o conhecimento médico da doença passava por profundas transformações e, ao mesmo tempo, as leprosarias proliferavam a ponto de se tornarem um elemento ordinário nos arredores de qualquer grande povoação ou vila. Raros até o século XI, entre os anos de 1070 e 1130 verificamos o aumento do número de leprosarias, o que pode evidenciar não só sinal de uma menor tolerância social com o leproso, como também o incremento no número de doentes. O surgimento desta rede de leprosarias pode ser analisado como parte integrante de um processo que, dos séculos XI ao XII, associou diferentes aspectos da experiência da sociedade medieval com a lepra. Um dos elementos a se considerar para o aumento dos leprosários e o isolamento dos leprosos foi o desenvolvimento hospitalar que se verificou neste período, somado ainda ao aumento populacional, ao crescimento demográfico das cidades e à maior visibilidade dos leprosos. Por outro lado, não podemos deixar de considerar também que estes fatores forneceriam um terreno favorável para o lento recuo da lepra a partir deste período.
A época onde floresceram as leprosarias não foi assinalada por nenhum texto jurídico comum organizando-as ou codificando a exclusão dos doentes; o isolamento dos leprosos revela-se primeiro como prática para, posteriormente, ser objeto de regulamentação. As interdições de ordem sanitária, impostas aos leprosos, foram esboçadas inicialmente pelos concílios a partir de 583, e tornaram-se presentes nos textos sobre costumes de diversas regiões da Europa e nos sínodos, dos séculos XII ao XIII. Assumindo proporções preocupantes, provavelmente devido às Cruzadas, a lepra mobilizou precocemente medidas de controle que seriam assumidas pela Igreja, tendo como fio norteador o conceito de contágio expresso no Velho Testamento. Na verdade, o isolamento não foi uma medida inédita para os leprosos. Tratava-se de um hábito bem antigo, como nos mostra o exemplo dos gregos que, desde o século III, rejeitavam impiedosamente os acometidos por elefantíase. Se os primeiros leprosários aparecem na Europa no século XI, eles chegaram a quase dezenove mil no continente europeu durante todo o período medieval. Os procedimentos sanitários a partir do século XIII previam a denúncia do doente a uma autoridade secular ou religiosa, seu comparecimento perante um júri, seu exame e sujeição a numerosos testes. Confirmada a doença por um tribunal laico e religioso, o doente era excluído da comunidade dos fiéis e de toda vida social, sendo submetido ainda a um ritual eclesiástico de exclusão antes de ser encerrado numa leprosaria. Esses costumes variavam bastante em toda Europa, a morte civil que era imposta ao leproso não se generalizou, mas sua capacidade jurídica era limitada pelo regulamento da leprosaria em que fora admitido. Ainda que muitas das imagens recorrentes sobre a doença tenham sido generalizadas a partir de realidades bastante específicas, o que de comum podemos ressaltar na experiência medieval com a lepra foi a publicização da doença e a exclusão do doente do convívio social, associando a patologia a uma gama de considerações morais que explicariam o acometimento do doente.
A descrição clínica da lepra já estava estabelecida no século XIII e, a partir desta data, verifica-se pouca variação sobre a definição de suas causas, sintomas ou tratamento até a primeira metade do século XIX. A maior parte das obras médicas do século XII já identificava quatro tipos de lepra, cada uma delas causada por um determinado humor: a elephantia (atrabile), a tiria (fleuma), a leonina (bile) e a vulpina ou alopicia (sangue). A lepra leonina e a vulpina seriam, segundo o Compendium, de Arnaud de Villeneuve, quase totalmente incuráveis, “especialmente quando acometem por longo período e as extremidades do doente já começaram a cair”. Verifica-se, neste mesmo período, um grande progresso concernente ao reconhecimento dos sintomas da lepra. Não que tenha havido novas descobertas ou uma crítica aos sinais tradicionalmente descritos da doença, mas observa-se um grande avanço dos conhecimentos em anatomia e a adoção de um vocabulário médico mais preciso.
No fim da Idade Média a lepra entra em declínio, tendo desaparecido quase completamente da Europa e as leprosarias esvaziaram-se. As causas para o refluxo da doença na Europa serão explicadas por diferentes hipóteses, não havendo justificativa segura para o fenômeno. De forma geral, este arrefecimento da lepra teria sido causado pela conjugação de variados fatores como as melhorias ocorridas no nível de vida das populações; o fim das Cruzadas e da ocupação mulçumana, que diminuíram a rota oriental de comércio; a melhoria das condições higiênicas; o antagonismo entre lepra e tuberculose; a epidemia de peste que varreu a Europa no século XIV e a fome no mesmo período, que teriam diminuído drasticamente a população, especialmente das leprosarias. Há ainda a hipótese de que este conjunto complexo de fenômenos pode ser interpretado como o efeito de um recuo perceptível da calamidade leprosa, mas também como sinal do desenvolvimento da assistência, e mais tarde, das medidas de higiene pública.
Nos séculos XV e XVI os médicos começam gradualmente a substituir os sacerdotes, civis, os próprios doentes e os funcionários das leprosarias na identificação de novos leprosos. Antes deste período os médicos seriam ainda pouco numerosos para ter uma importância decisiva na identificação dos sinais da doença, a conversão da lepra numa questão médica fez parte de um longo processo que envolveu não só a organização das universidades e do ensino médico na Europa, como também a difusão da profissão médica. Curiosamente, este período que sugere uma prática do diagnóstico da lepra fiel ao ensino universitário correspondeu ao período de seu refluxo e, conseqüentemente, a preocupação com a elucidação das muitas incertezas sobre a doença foi substituída pelas exigências sanitárias trazidas pelos novos desafios da peste, das cidades e do Novo Mundo.
Aos poucos a idéia de transmissão venérea e da hereditariedade da lepra tendem a perder gradualmente terreno, ainda que tenha perdurado sua associação com a sífilis até o século XIX. Na verdade, o retrocesso da doença foi associado, pela medicina medieval, ao conjunto de práticas sanitárias e à complexa rede de exclusão das leprosarias, reforçando a hipótese contagionista. Além disto, ainda que muitos dos sinais da lepra tenham sido identificados pela medicina medieval, a doença continuaria como uma entidade biológica inespecífica, associada ao mesmo complexo causal que entrecruza evento orgânico, elementos ambientais e cósmicos.
A medicina medieval legou ao século XIX não apenas os principais elementos da descrição clínica da lepra, como também o modelo explicativo da doença, formatada pela teoria neo-hipocrática, que estabelecera um quadro etiológico onde se agregavam diferentes fatores na relação entre corpo e meio ambiente, como a permeabilidade do organismo e o equilíbrio dos humores. O conceito de doença no mundo medieval esteve profundamente marcado pela noção de decomposição orgânica, a própria representação do corpo constituído por substâncias corruptíveis, os humores, reforçou esta imagem da ameaça de seu constante desequilíbrio e corrupção. E a lepra foi, por excelência, a moléstia que sintetizou a equivalência entre doença e degeneração orgânica no mundo medieval e, por ocasião de seu ressurgimento na Europa, poderemos observar que a doença estava ainda formatada por muitos dos elementos que constituíram este constructo. A lepra na primeira metade do século XIX era uma doença provocada pela perturbação dos humores, cuja natureza e grau da discrasia caberia ao médico determinar. O já conhecido tema da corrupção dos humores para o acometimento da lepra combinará diferentes elementos, somará as novas referências da medicina às ameaças de fatores como clima, alimentação, topografia, estações do ano ou qualidade do ar.”
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Fonte:
Dilma Fátima Avellar Cabral da Costa: “Entre idéias e ações: lepra, medicina e políticas públicas de saúde no Brasil - 1894-1934”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em História, da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em História. Área de concentração: Poder e Sociedade. Orientador: Prof. Dr. André Luiz Vieira de Campos). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2007.
Nota:
A medicina grega reputava ao meio ambiente um papel fundamental no equilíbrio do corpo humano, destacando a importância de considerar as estações, os climas, os ventos, as propriedades das águas e outras influências naturais na ocorrência de doenças. Na racionalidade hipocrática, a doença seria um desequilíbrio dos quatro humores que comporiam o corpo, uma reação com intenção terapêutica para obter novo equilíbrio. Logo, encarada como uma perturbação do equilíbrio e harmonia da physis, a doença representaria uma totalidade e faria parte da própria natureza do homem, não apenas não se localizaria em alguma parte, como não se constituiria a partir de uma ameaça externa.
Hipócrates não teve ocasião de fundar uma patogênese humoral da lepra, doença então desconhecida na Grécia. Foi somente no século IV que Oribase de Pergame afirmou que a elefantíase derivava de um excesso de ‘atrabile’ para anular o humor oposto, o sangue. Dois séculos antes, Galeano já explicara que a lepra era uma doença freqüente em Alexandria em razão do clima e dos hábitos alimentares, o que produzia igualmente uma onda de atrabile. Da mesma forma, esta concepção da lepra como decorrente da atrabile ou da melancolia foi reafirmada em tratados médicos em língua árabe, que eram rapidamente traduzidos na Europa.
A tradução para o latim destes tratados árabes, ou a versão árabe das obras gregas, ocorreu entre os séculos X e XIII, período em que renasceram os estudos médicos no Ocidente e os europeus entraram em contato com o pensamento médico estruturado. Se a medicina ocidental extraiu o essencial da etiologia, clínica e terapêutica da lepra das obras árabes, também incorporou ajustes e novas proposições para a origem da doença. Ao mesmo tempo, nesta época surgiram novos centros de estudos médicos na Europa e a hipótese das causas humorais da doença gradualmente ganha complexidade, os trabalhos que antes se limitavam a considerar os prejuízos da atrabile natural no organismo incorporam novas teorias para a causa da lepra, como por exemplo, a combustão da bile ou a disfunção do fígado na produção do sangue.
É importante ressaltar que o conceito de lepra foi formatado pela medicina medieval através de uma tradição cultural complexa, em que se combinava a tradução de antigos textos médicos à Bíblia, acrescidos ainda de adaptações que acumulavam inúmeras distorções. Os deslizamentos semânticos e os diferentes significados da lepra, seus derivados e correlatos, não parecem ter sido uma preocupação dos médicos ou teólogos medievais, eles não colocavam em questão a identidade da lepra. Françoise Bériac chama atenção que, a partir do século XII, lepra e a morféia foram objeto de capítulos distintos e nem sempre vizinhos nos tratados médicos europeus. A lepra é herdeira da elefantíase greco-latina e da judham dos árabes, a morféia é legatária da lepra greco-latina, e isto via a al’baras dos árabes. Assim, ao mesmo tempo em que a medicina européia recebia do mundo mulçumano uma consciência aguda do polimorfismo da lepra, idéia relativamente estrangeira nas obras antigas, herdava também reflexões sobre as diferenças e analogias entre lepra e outras afecções dermatológicas.
Como vemos, a medicina medieval associaria a etiologia da lepra a uma diversidade de fatores, num complexo quadro de causas que incluía alimentação, clima, topografia e predisposição. A constituição do indivíduo, mais melancólica ou fleumática, tornava-o mais receptivo à doença, favorecendo ainda o contágio. A dietética também exercia um importante papel na etiologia das doenças, muitos textos médicos imputavam ao uso de determinados alimentos certas características capazes de provocar o desequilíbrio dos humores. Os alimentos tornavam-se perigosos para o consumo ao serem rotulados como melancólicos, coléricos ou os fleumáticos, de acordo com a qualidade dos elementos básicos. Seguindo ainda a tradição hipocrática-galênica, o clima desempenhava uma ação determinante na saúde e, associado à topografia, seria capaz de explicar o acometimento do indivíduo ou de uma coletividade. Além do clima havia também certos tipos de trabalhos que expunham o organismo a situações de risco, como aqueles que exigiam uma proximidade com o fogo, o que favoreceria o desenvolvimento da lepra.
Mas a corrupção do organismo também poderia se dar pelo ar que cerca o doente que, quando inalado pelas pessoas sãs, as contaminaria. De Constantino Africano (1020-1087), que evocava a fumaça maligna que sai do corpo do leproso, a Guillaume de Salicet (1210-1277) e Arnaud de Villeneuve (1245-1313), que acreditavam que a respiração do leproso causaria o contágio, os textos médicos medievais evocavam a forma aérea de contágio como uma das causas da lepra. Se a respiração do leproso contaminava o ambiente, o temor das emanações deletérias provenientes das leprosarias ou da aglomeração de leprosos pedintes, foi capaz de alimentar incessantemente o imaginário do período produzindo, verdadeiramente, uma sociedade de excluídos.
Se o desequilíbrio dos humores poderia ser provocado por fatores externos ou secundários, geralmente identificados nos tratados médicos medievais pela corrupção do ar ou a ingestão de alimentos contaminados, a causa da lepra também esteve associada à infecção congênita ou à transmissão sexual. Doença ao mesmo tempo contagiosa e hereditária, a idéia da infecção in útero se manifestou cedo no Ocidente latino, sendo reforçada pelas traduções de obras árabes que se referiam à corrupção do esperma dos leprosos e à herança da doença. Esta hipótese foi de fácil adoção na Europa medieval, onde encontrou um terreno favorável no tema antigo da lubricidade dos leprosos e no hábito de vê-los na Escritura Santa como a alegoria de diversos pecadores, em especial os luxuriosos. Esta noção da lepra como uma doença hereditária girava em torno dos excessos sexuais, como por exemplo, os relatados durante o período menstrual e a gravidez, reforçando a impureza menstrual das mulheres e as proibições determinadas pelo texto bíblico.
No caso da idéia da infecção ab uterum, apesar de uma origem mais remota, sua introdução seria mais recente na Europa. Françoise Bériac identifica esta hipótese claramente formulada na Índia e transmitida à medicina ocidental pela tradução dos tratados árabes, tornando-se bastante conhecida, mesmo fora dos círculos médicos, desde o século XIII. As considerações medievais sobre a transmissão venérea da lepra foram por longo tempo rejeitadas como fantasiosas, tomadas como argumento essencial de uma confusão entre lepra e sífilis, o novo mal que se disseminara na Europa de forma epidêmica nos últimos anos do século XV. A crença na corrupção do esperma dos leprosos forneceu um abundante substrato científico à teoria venérea, bem como o apetite sexual excessivo atribuído, nos textos médicos, aos leprosos. A infecção ab uterum poderia ainda se dar de inúmeras formas, incluindo a concepção durante as menstruações, por ser filho de pais leprosos ou pelo contato sexual entre a mulher grávida e um leproso.
Mesmo de introdução mais tardia na Europa, a hipótese venérea encontrou ressonância no imaginário cristão da lepra, que congregava elementos como o pecado e a luxúria. A contaminação venérea e a hereditariedade da lepra seriam a punição para os excessos sexuais dos leprosos, a corrupção do corpo era tomada como distintivo da transgressão moral. O castigo pela lascívia foi uma das explicações mais recorrentes para a lepra, o contágio através do ato sexual era a materialidade do vício e da tendência aos excessos da luxúria. A devassidão sexual justificava não só acometimento da doença, como também o isolamento do leproso, reforçando ainda a crença em sua hereditariedade. Na hipótese venérea a lepra se configurava como uma doença física, mas também moral, associando à tradição religiosa à medicina medieval. E, finalmente, aos olhos dos cristãos, a lepra, como qualquer outra enfermidade ou doença grave, manifestava nas crianças a luxúria dos pais, o que tornava transmissões venéreas e hereditárias causas complementares para o acometimento da lepra.
A partir do século XII, momento onde a figura do pobre lázaro se torna familiar ao espírito dos cristãos, podemos observar um duplo movimento: o conhecimento médico da doença passava por profundas transformações e, ao mesmo tempo, as leprosarias proliferavam a ponto de se tornarem um elemento ordinário nos arredores de qualquer grande povoação ou vila. Raros até o século XI, entre os anos de 1070 e 1130 verificamos o aumento do número de leprosarias, o que pode evidenciar não só sinal de uma menor tolerância social com o leproso, como também o incremento no número de doentes. O surgimento desta rede de leprosarias pode ser analisado como parte integrante de um processo que, dos séculos XI ao XII, associou diferentes aspectos da experiência da sociedade medieval com a lepra. Um dos elementos a se considerar para o aumento dos leprosários e o isolamento dos leprosos foi o desenvolvimento hospitalar que se verificou neste período, somado ainda ao aumento populacional, ao crescimento demográfico das cidades e à maior visibilidade dos leprosos. Por outro lado, não podemos deixar de considerar também que estes fatores forneceriam um terreno favorável para o lento recuo da lepra a partir deste período.
A época onde floresceram as leprosarias não foi assinalada por nenhum texto jurídico comum organizando-as ou codificando a exclusão dos doentes; o isolamento dos leprosos revela-se primeiro como prática para, posteriormente, ser objeto de regulamentação. As interdições de ordem sanitária, impostas aos leprosos, foram esboçadas inicialmente pelos concílios a partir de 583, e tornaram-se presentes nos textos sobre costumes de diversas regiões da Europa e nos sínodos, dos séculos XII ao XIII. Assumindo proporções preocupantes, provavelmente devido às Cruzadas, a lepra mobilizou precocemente medidas de controle que seriam assumidas pela Igreja, tendo como fio norteador o conceito de contágio expresso no Velho Testamento. Na verdade, o isolamento não foi uma medida inédita para os leprosos. Tratava-se de um hábito bem antigo, como nos mostra o exemplo dos gregos que, desde o século III, rejeitavam impiedosamente os acometidos por elefantíase. Se os primeiros leprosários aparecem na Europa no século XI, eles chegaram a quase dezenove mil no continente europeu durante todo o período medieval. Os procedimentos sanitários a partir do século XIII previam a denúncia do doente a uma autoridade secular ou religiosa, seu comparecimento perante um júri, seu exame e sujeição a numerosos testes. Confirmada a doença por um tribunal laico e religioso, o doente era excluído da comunidade dos fiéis e de toda vida social, sendo submetido ainda a um ritual eclesiástico de exclusão antes de ser encerrado numa leprosaria. Esses costumes variavam bastante em toda Europa, a morte civil que era imposta ao leproso não se generalizou, mas sua capacidade jurídica era limitada pelo regulamento da leprosaria em que fora admitido. Ainda que muitas das imagens recorrentes sobre a doença tenham sido generalizadas a partir de realidades bastante específicas, o que de comum podemos ressaltar na experiência medieval com a lepra foi a publicização da doença e a exclusão do doente do convívio social, associando a patologia a uma gama de considerações morais que explicariam o acometimento do doente.
A descrição clínica da lepra já estava estabelecida no século XIII e, a partir desta data, verifica-se pouca variação sobre a definição de suas causas, sintomas ou tratamento até a primeira metade do século XIX. A maior parte das obras médicas do século XII já identificava quatro tipos de lepra, cada uma delas causada por um determinado humor: a elephantia (atrabile), a tiria (fleuma), a leonina (bile) e a vulpina ou alopicia (sangue). A lepra leonina e a vulpina seriam, segundo o Compendium, de Arnaud de Villeneuve, quase totalmente incuráveis, “especialmente quando acometem por longo período e as extremidades do doente já começaram a cair”. Verifica-se, neste mesmo período, um grande progresso concernente ao reconhecimento dos sintomas da lepra. Não que tenha havido novas descobertas ou uma crítica aos sinais tradicionalmente descritos da doença, mas observa-se um grande avanço dos conhecimentos em anatomia e a adoção de um vocabulário médico mais preciso.
No fim da Idade Média a lepra entra em declínio, tendo desaparecido quase completamente da Europa e as leprosarias esvaziaram-se. As causas para o refluxo da doença na Europa serão explicadas por diferentes hipóteses, não havendo justificativa segura para o fenômeno. De forma geral, este arrefecimento da lepra teria sido causado pela conjugação de variados fatores como as melhorias ocorridas no nível de vida das populações; o fim das Cruzadas e da ocupação mulçumana, que diminuíram a rota oriental de comércio; a melhoria das condições higiênicas; o antagonismo entre lepra e tuberculose; a epidemia de peste que varreu a Europa no século XIV e a fome no mesmo período, que teriam diminuído drasticamente a população, especialmente das leprosarias. Há ainda a hipótese de que este conjunto complexo de fenômenos pode ser interpretado como o efeito de um recuo perceptível da calamidade leprosa, mas também como sinal do desenvolvimento da assistência, e mais tarde, das medidas de higiene pública.
Nos séculos XV e XVI os médicos começam gradualmente a substituir os sacerdotes, civis, os próprios doentes e os funcionários das leprosarias na identificação de novos leprosos. Antes deste período os médicos seriam ainda pouco numerosos para ter uma importância decisiva na identificação dos sinais da doença, a conversão da lepra numa questão médica fez parte de um longo processo que envolveu não só a organização das universidades e do ensino médico na Europa, como também a difusão da profissão médica. Curiosamente, este período que sugere uma prática do diagnóstico da lepra fiel ao ensino universitário correspondeu ao período de seu refluxo e, conseqüentemente, a preocupação com a elucidação das muitas incertezas sobre a doença foi substituída pelas exigências sanitárias trazidas pelos novos desafios da peste, das cidades e do Novo Mundo.
Aos poucos a idéia de transmissão venérea e da hereditariedade da lepra tendem a perder gradualmente terreno, ainda que tenha perdurado sua associação com a sífilis até o século XIX. Na verdade, o retrocesso da doença foi associado, pela medicina medieval, ao conjunto de práticas sanitárias e à complexa rede de exclusão das leprosarias, reforçando a hipótese contagionista. Além disto, ainda que muitos dos sinais da lepra tenham sido identificados pela medicina medieval, a doença continuaria como uma entidade biológica inespecífica, associada ao mesmo complexo causal que entrecruza evento orgânico, elementos ambientais e cósmicos.
A medicina medieval legou ao século XIX não apenas os principais elementos da descrição clínica da lepra, como também o modelo explicativo da doença, formatada pela teoria neo-hipocrática, que estabelecera um quadro etiológico onde se agregavam diferentes fatores na relação entre corpo e meio ambiente, como a permeabilidade do organismo e o equilíbrio dos humores. O conceito de doença no mundo medieval esteve profundamente marcado pela noção de decomposição orgânica, a própria representação do corpo constituído por substâncias corruptíveis, os humores, reforçou esta imagem da ameaça de seu constante desequilíbrio e corrupção. E a lepra foi, por excelência, a moléstia que sintetizou a equivalência entre doença e degeneração orgânica no mundo medieval e, por ocasião de seu ressurgimento na Europa, poderemos observar que a doença estava ainda formatada por muitos dos elementos que constituíram este constructo. A lepra na primeira metade do século XIX era uma doença provocada pela perturbação dos humores, cuja natureza e grau da discrasia caberia ao médico determinar. O já conhecido tema da corrupção dos humores para o acometimento da lepra combinará diferentes elementos, somará as novas referências da medicina às ameaças de fatores como clima, alimentação, topografia, estações do ano ou qualidade do ar.”
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Fonte:
Dilma Fátima Avellar Cabral da Costa: “Entre idéias e ações: lepra, medicina e políticas públicas de saúde no Brasil - 1894-1934”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em História, da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em História. Área de concentração: Poder e Sociedade. Orientador: Prof. Dr. André Luiz Vieira de Campos). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2007.
Nota:
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As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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